TIRADENTES 2016: FICÇÃO CARIOCA E DOC PERNAMBUCANO ABORDAM PEDOFILIA E QUESTÕES INDÍGENAS.

Por Celso Sabadin.

 Para o leitor menos iniciado, vale explicar a importância da Mostra de Cinema de Tiradentes no panorama cinematográfico brasileiro. Em rápidas palavras, Tiradentes é a vitrine a anual de um cinema brasileiro que nunca, ou quase nunca, consegue uma distribuição comercial minimamente razoável. São filmes que não buscam o chamado “mercado”, muitas vezes utilizam uma linguagem mais experimental, e visam novos caminhos e novas pesquisas na comunicação audiovisual. Não curto a expressão, mas são filmes mais, digamos, “artísticos”. Ou “alternativos” (outra expressão que não curto muito).

Um pensamento mais imediatista (e por isso mesmo menos elaborado) poderia perguntar: “Por que fazer filmes que poucas pessoas vão ver?”. Ora, porque nas artes em particular e em todas as áreas do conhecimento humano em geral a experimentação é um importantíssimo motor propulsor dos novos caminhos. Impossível viver sem vanguarda.

 

Foi com este pensamento que acompanhei ontem (25/01) dois interessantes longas metragens exibidos aqui na 19ª Mostra de Cinema de Tiradentes: “Urutau” e “Índios Zoró – Antes, Agora e Depois?”

 

Produzido no Rio de Janeiro, “Urutau” marca a estreia na direção de Bernardo Cancella Nabuco. A ficção trata com aridez do difícil tema da pedofilia. São planos longos, intimistas e claustrofóbicos que investigam a perturbadora relação entre o jovem Fernando (Nicolas Sambraz) e o professor Josias (Gerson Dellano). As impossibilidades deste relacionamento são sublinhadas pela seca opção estética de uma narrativa dolorosamente silenciosa que trancafia tanto os protagonistas quanto o público num sufocante cárcere privado.

Destaque para a interpretação do também estreante Nicolas Sambraz, que consegue transmitir com seu magnético olhar tanto a delicada ingenuidade de uma criança encantada por um pedaço de bolo de chocolate, como a dor e o desespero de uma inocência ultrajada.

 

Na sequência, foi exibido o documentário pernambucano “Índios Zoró – Antes, Agora e Depois?”.  Ironicamente, o filme integra a Mostra Aurora, destinada a primeiros trabalho de jovens realizadores… e o seu diretor, Luiz Paulino dos Santos, tem 83 anos. Faz sentido: graças às novas tecnologias digitais, antigos talentos apenas agora conseguem recursos para dar continuidade à sua obra, muitas vezes interrompida pelas crônicas dificuldades de se fazer cinema no Brasil.

Denotando alguma influência de Eduardo Coutinho, “Índios Zoró – Antes, Agora e Depois?” registra a volta do cineasta Luiz Paulino à comunidade  dos Zorós, em Rondônia, onde esteve nos anos 80 para produzir “Ikatena? Vamos Caçar”, seu documentário anterior. Despojado, o filme é uma amálgama das memórias, indignações e pensamentos do cineasta com imagens atuais e antigas da mesma comunidade. É através deste fio condutor que o longa traça um panorama de algumas das inesgotáveis questões indígenas brasileiras, ao mesmo tempo em que ajuda a cozinhar o riquíssimo caldeirão das diversas manifestações culturais da região e suas cada vez mais rápidas transformações temporais.

Uma cena emblemática reduz ricamente a questão: um típico índio brasileiro dirigindo uma potente camionete japonesa por estradas barrentas e alagadas enquanto ouve em seu rádio canções evangélicas de arranjo sertanejo. É puro Brasil.

 

Celso Sabadin viajou a Tiradentes a convite da organização do evento.