TRÁGICA PERSEGUIÇÃO: BELO, CRUEL E ATÉ PROFÉTICO.

Por Celso Sabadin.

Quando se fala em Neorrealismo Italiano logo se pensa em Roberto Rossellini, Luchino Visconti, talvez Vittorio De Sica, mas poucos se recordam de Giuseppe De Santis, autor de – no mínimo – duas obras primas obrigatórias deste importante momento do cinema: “Trágica Perseguição” (1947) e “Arroz Amargo” (1949).

Um dos sete membros da equipe de escritores, roteiristas e dialoguistas do clássico “Obsessão” (dirigido por Visconti, em 1942 e lançado em 43), Giuseppe De Santis estudou literatura, filosofia, foi aluno do Centro Sperimentale di Cinematografia de Roma e crítico de cinema. Lutou como Partigiane (resistência civil) contra o fascismo de Mussolini e a ocupação nazista da Itália na Segunda Guerra, e logo após o término do conflito integrou a equipe do histórico documentário “Giorni di Gloria”, de 1945.

Dois anos depois, estreia como diretor em “Trágica Perseguição”, longa escrito e roteirizado por um invejável time de talentos formado por Carlo Lizzani, Lamberto Rem-Picci, Corrado Alvaro, Michelangelo Antonioni, Umberto Barbaro e Cesare Zavattini, além do próprio De Santis.

A trama mostra um ousado assalto a uma cooperativa agrícola no interior da Itália. Além de roubarem todo o dinheiro que seria destinado às 300 famílias de trabalhadores do lugar, os assaltantes levam como refém a jovem Giovanna (Carla Del Poggio), que acabara de se casar com Michelle (Massimo Girotti), um dos campesinos da cooperativa.

O assalto propriamente dito não é o ponto principal de “Trágica Obsessão”, que até funciona bem como filme de ação, mas que tem na deterioração das relações humanas o seu principal tema.  Se, num primeiro momento, parece que a ação criminosa é cometida por um grupo de soldados alemães contra os campesinos, logo se percebe que, na realidade, os nazistas são comandados por Alberto (Andrea Cecchi) e sua namorada Daniela (Vivi Goi), italianos traindo seus próprios compatriotas por dinheiro. Como se percebe, as ruínas do pós Guerra não são apenas as visíveis nas casas e prédios bombardeados.

A situação ganha contornos ainda mais pungentes quando o roteiro revela que Alberto e Michelle – oponentes nesta trágica perseguição do título – foram companheiros prisioneiros do mesmo campo de concentração nazista, pouquíssimo tempo atrás.

O retrato humano e social, montado por De Santis, desta Itália que tenta se reerguer após a Guerra é nunca menos que soberbo. Os conflitos de dor e consciência que se estabelecem entre os dois extremos – Alberto que optou por uma vida de crimes mancomunado com seu ex-algozes, e Michelle que se manteve fiel à terra e aos seus valores de campesino – jamais caem na armadilha do maniqueísmo melodramático que o tema facilmente sugere.

Sem se precipitar em julgamentos rasos, o filme simplesmente expõe a chaga social do tempo e do lugar. A viagem no chamado “Trem da Miséria”, onde os veteranos de guerra “abandonados à própria sorte pelo mesmo governo que nos chamou a lutar” –  como diz um dos personagens – se unem aos trabalhadores rurais roubados e a homens, mulheres e ex-prisioneiros de campos de concentração, é uma verdadeira jornada de horror pelos caminhos de um país em escombros físicos e morais.

Tudo fotografado com a cruel veracidade sem retoques que o próprio nome do Neorrealismo exigia, sob o comando de Otello Martelli, que já havia realizado a marcante fotografia do clássico neorrealista “Paisá”, e que pouco mais tarde seria um dos principais colaboradores de Fellini.

“Será necessária outra guerra para nos livrarmos destes patifes”, diz um personagem, referindo-se aos exploradores do mercado negro. “A quem devemos matar agora para nos vingar? Quem ainda não matamos?”, pergunta outro. Em clima de desespero e desconsolo, alguém diz que “gente que nunca trabalhou na vida faz pacto com o diabo para não perder nem um centavo de sua imensa fortuna”. E que “os que morreram tiveram mais sorte do que nós”.

Não por acaso – e até profeticamente – uma cena especial chama a atenção: o caminhão que leva o dinheiro roubado da cooperativa parece perdido. O motorista reclama. Alberto, líder do bando, desolado, diz que “depois da guerra tudo aqui parece um outro país, onde mais nada se reconhece”. O motorista lhe pergunta que caminho, então, deve tomar. E a resposta do criminoso vem rápida: “Direita, sempre para a direita”.