TRAVESTIDA DE OUSADA, A ATUAL COMÉDIA AMERICANA É PURO CONSERVADORISMO.

Por Celso Sabadin.

Tive a oportunidade de ver, entre o final de 2015 e este início de 2016, quatro comédias norte-americanas: “Os Seis Ridículos”, “Irmãs”, “Tirando o Atraso” e “Cinquenta Tons de Preto”. Não quero entrar, pelo menos neste texto, no mérito da qualidade destes filmes. Particularmente, detestei os quatro, mas isto é uma outra questão que poderemos abordar futuramente. O que tem me chamado a atenção é que tais filmes – e outros similares – invariavelmente são descritos como de mau gosto, de apelo meramente escatológico, abusivos na linguagem, e politicamente incorretos. Concordo com tudo, menos com o politicamente incorreto.

Explico: esta tendência de utilizar linguagem chula e situações cômicas ofensivas em comédias populares norte-americanas não é exatamente uma novidade. Começou timidamente em Porky´s, estendeu-se pela série American Pie, e teve nos irmãos Farrely seus principais representantes. A ideia era atingir o adolescente médio norte-americano, um público pouco exigente em termos de conteúdo, e que poderia ver, no cinema, piadas picantes e alguma nudez que eram proibidas na TV. Deu muito certo: as bilheterias bombaram. Cansada a formula, e sempre pensando de forma mercadológica, os executivos de cinema tiveram então a ideia de reproduzir exatamente as mesmas ideias, mas agora para o público maior de 18 anos, de maneira que a linguagem chula poderia ser mais chula ainda, e as baixarias alcançariam profundidade jamais experimentada antes pelo cinema dos EUA. Se Beber Não Case (para o público masculino), Missão Madrinha de Casamento (para o feminino) e seus seguidores exemplificam bem esta nova tendência.

Para tentar rebater as críticas que certamente viriam, os produtores começaram a divulgar a falsa ideia que tais filmes teriam um humor “politicamente incorreto”, sendo, portanto, à sua maneira, “contestadores”, já que ninguém aguenta mais a tal chatice do politicamente correto. Só não chamaram os filmes de “revolucionários” porque o consumidor republicano execra esta palavra. E aí vem o problema: a mídia mundial comprou esta bobagem. Hoje vemos veículos nacionais e internacionais repetindo a estratégia mercadológica produzida nos estúdios de chamar este tipo de comédia de “politicamente incorreta”, quando na verdade elas são a repetição do que há de mais careta, conservador e reacionário na sociedade estadunidense.

Pode reparar: quando um personagem se posiciona na trama como transgressor, até o final do filme este mesmo personagem negará veementemente esta sua suposta transgressão e assumirá uma postura diametralmente oposta a tudo o que ele pregava antes. As fachadas contestadoras nunca se sustentam até o final da trama.  Repare também como invariavelmente após a primeira hora do roteiro o filme começa a mudar de tom, e passa a flertar com o piegas. Sempre há um segredo dramático ou romântico a ser revelado, uma cena de “lição de vida” a ser sentimentalmente desenvolvida. Com o perdão do trocadilho, toda comédia escrachada vem com uma centelha de Nicholas Sparks embutida. Todos os roteiros destas supostas comédias politicamente incorretas rezam milimetricamente pela esquemática, previsível e cansativa cartilha de roteiros de Syd Filed. Formalmente, estes filmes também ganham zero em transgressão e criatividade.

Isso sem falar, é claro, na eterna e inexplicável “mania” do norte-americano de fazer sexo vestido. Até hoje não consegui compreender como os EUA têm tantos habitantes se eles não tiram a roupa para transar. Nestas comédias, fala-se muito de sexo; faz-se pouco. E quando ele é feito, nada é mostrado. Parece que o cinema estadunidense não consegue nunca se libertar do trauma causado pelo pesado código Hays de censura, que castigou os cineastas dos anos 30 aos 60. O código morreu; seus fantasmas sobrevivem. E fica claro como estas comédias de politicamente incorretas não têm nada, e como nas entrelinhas de todos os seus diálogos, roteiros e situações, elas continuam a defender os mesmos valores tradicionais e conservadores que norteiam aquela sociedade desde a época das 13 Colônias. Tudo cuidadosamente pensado para não tirar o espectador/consumidor de sua zona de conforto. E o resto do mundo comprando e engolindo isso tudo.

O brasileiro, de uma forma geral desconhecedor do seu próprio cinema, assiste a tudo sem perceber que nossas comédias sempre foram muito mais revolucionárias, transgressoras,  contestadoras e politicamente incorretas que qualquer filminho dos irmãos Farrelly. Numa época em que os militares proibiam qualquer tipo de cinema político, social e humano, a resposta era dada através da guerrilha das comédias eróticas. Comédias que cutucavam a podridão de valores reacionários de uma forma que os censores sequer percebiam. Parte da resistência civil ao golpe militar saiu destes filmes. Comédias que, por aqui, acabaram sendo erroneamente batizadas de “pornochanchadas”. Filmes que de “porno” nada tinham, nem de “chanchadas”, palavra que vem do espanhol (chancho = porco).

Quem anda fazendo muita “chanchada” (no sentido espanhol da palavra) é este cinema norte-americano de baixa qualidade e péssima categoria que não cansamos de importar e consumir. Uma pena para o nosso cinema, nossa história e nossa cultura.