“UMA HISTÓRIA DE FAMÍLIA”: O CRUEL SHOW DA VIDA.

Por Celso Sabadin.

Prestes a completar 80 anos (em setembro de 2022), Werner Herzog continua surpreendendo com sua energia criativa e capacidade de se reinventar. Um dos grandes nomes do cinema mundial nos anos 1970 e 80 (embora ele prefira dizer que não fez parte do importante movimento do Novo Cinema Alemão), o diretor dos consagrados “O Enigma de Kaspar Hauser” e “Fitzcarraldo” (entre tantos outros) entrou pelo século 21 realizando impressionantes documentários como “O Homem Urso” e “A Caverna dos Sonhos Esquecidos” (também entre tantos outros), e em 2019 escreveu e dirigiu este surpreendente “Um História de Família”, que chega agora aos cinemas brasileiros.

Rodado em Tokyo com não-atores japoneses e produção norte-americna, o longa tem início com a emotiva situação de um pai (Yuichi Sato) tentando reestabelecer relação com sua filha de 12 anos (Mahiro Tanimoto), que abandonou ainda muito pequena, após divorciar-se da mãe da garota. O pai se desculpa, abre seu coração com a filha, que parece, aos poucos, compreender a situação e estar disposta a dar uma chance ao relacionamento. Tudo muito intimista, sóbrio e até pendendo para o poético.

Na cena seguinte, a surpresa: ficamos sabendo que Yuichi não é o pai de Mahiro, mas sim um ator contratado pela mãe para interpretar este papel, sem que a menina tenha conhecimento da armação. Outras situações semelhantes se desenrolarão diante da câmera de Herzog: uma mulher contrata um grupo de atores que simulam ser paparazzi, para que ela se sinta uma celebridade; uma noiva contrata um “pai falso” para levá-la ao altar no dia de seu casamento; um funcionário contrata um ator para que ele leve uma reprimenda de seu patrão, e assim por diante. O desenrolar da história entre Yuchi e Mahiro permanecerá como o fio condutor do longa.

Herzog filma todas estas situações sem deixar claro se estamos vendo uma ficção, um documentário, uma reconstituição, uma fantasia, ou mais uma das várias maluquices de um cineasta que já fez um barco atravessar uma montanha em plena floresta amazônica. Explorar esta zona nebulosa entre a ficção e o real é uma das grandes genialidades do filme que – sabiamente – não se preocupa em explicar nada. Apenas mostra, exibe.

Para escrever este texto, tive de recorrer ao oráculo (Google) que me informa que Yuchi Sato não é, nunca foi, e provavelmente nunca será um ator: ele é, na verdade, o idealizador e fundador da Family Romance, empresa constituída no Japão em 1991 para alugar pessoas para as mais diversas finalidades.

Sim, o que o filme mostra é real.

Se o longa registra a prestação de serviços da Family Romance enquanto eles efetivamente estão sendo prestados, ou se seus contratantes reencenaram suas próprias representações diante das câmeras, isso eu não consegui apurar. E tampouco importa, posto que – na essência – todas o que o filme escancara de fato aconteceu. Incluindo iludir uma menina de 12 anos fazendo-a crer que ela tem um pai que na verdade não tem.

Confesso minha dificuldade em desenrolar este texto com um mínimo de sensatez. Penso recorrer aos filósofos contemporâneos que nos deram as teorias de sociedade liquida, da espetacularização das comunicações, da derrocada das grandes narrativas, do apagamento das fronteiras entre o real e sua representação midiática, o escambau. Mas não consigo. Mesmo depois de passadas algumas semanas de eu ter visto “Uma História de Família”, ainda estou sob o efeito deste poderoso psicotrópico cinematográfico que é saber que tem gente pagando gente para profissionalmente ludibriar a si próprio e a seus entes queridos. E isso desde 1991.

E que cada vez mais estamos trocando a realidade pela sua representação simbólica turbinada pelas mídias, tanto as tradicionais, como as sociais.

Assistindo a “Uma História de Família” percebe-se cada vez mais os motivos pelos quais nem os melhores roteiristas ficcionais do mundo conseguem superar a inventividade dos construtores da vida verdadeira. Para o bem e para o mal`.

A estreia é nesta quinta, 28 de outubro.