“UMA MULHER É UMA MULHER”, A DELICIOSA ANARQUIA COMPORTAMENTAL DE GODARD”.

por Celso Sabadin.

O Godard cerebral, hermético, denso (e, convenhamos, pedante) que conhecemos abre espaço em “Uma Mulher é Uma Mulher” para um Godard mais cheio de cores, frescores e humores.

Embora tenha sido o segundo longa lançado pelo diretor (após sua triunfante estreia em “Acossado”), “Uma Mulher é uma Mulher” foi o seu terceiro a ser realizado, posto que seu filme anterior – “O Pequeno Soldado”, concluído em 1960 – estava entravado na censura gaullista.

A história mostra Angela (Anna Karina, estão companheira do diretor), uma dançarina parisiense que mora com Émile (Jean Claude Brialy, de “Os Primos”) ao mesmo tempo em que namora Alfred (Jean Paul Belmondo, astro de “Acossado”). Tudo em perfeita harmonia, sem falsos moralismos. O problema surge quando Angela deseja engravidar, ideia radical e desesperadamente rechaçada por Émile. A opção, então, passa a ser Alfred. Com roteiro do próprio diretor, o argumento básico do filme teria sido da atriz e ocasionalmente escritora Geneviève Cluny, mas seu nome não está creditado na obra.

É interessante notar a simultaneidade do tema com o trabalho que praticamente no mesmo momento era desenvolvido por Truffaut em “Jules e Jim”. Há inclusive no longa de Godard uma rápida cena na qual Belmondo encontra casualmente com Jeanne Moreau (em participação especial) e lhe pergunta sobre Jules e Jim.

Ainda que cada qual à sua maneira, os então grandes amigos Truffaut e Godard perceberam no frescor criativo daquele início de Nouvelle Vague e na sintonia com a revolução de costumes que começava a se prenunciar naquele início de anos 60 a necessidade/oportunidade de enfocar o que mais tarde seria chamado de poliamor.

Porém, se o triângulo de Truffaut é tragirromântico, o de Godard é assumidamente cômico e sarcástico, de leveza e gaiatice irresistíveis. Com destaque para a sequência na qual Angela e Émile, brigados, não se falam, mas se insultam através dos títulos dos livros da estante do casal.

A fotografia de Raoul Coutard – grande parceiro de Truffaut e Godard – explode em cores vibrantes que se contrapõem fortemente com o preto e branco dos primeiros filmes da Nouvelle Vague.

Com a soltura e a quebra de paradigmas – tanto técnicos como temáticos – que o momento exigia, “Uma Mulher é uma Mulher” transpira juventude e descompromisso por todos os seus poros, ousando inclusive – e muito! – em sua trilha sonora, assinada pelo mestre Michel Legrand. Dentro dos típicos experimentalismos godardianos, as músicas do filme simplesmente “não combinam” com as imagens – pelo menos dentro do que nos acostumamos a ouvir como convencional – inclusive “brigando” ferozmente com elas e, consequentemente, assumindo o ruído como linguagem. O resultado é deliciosamente anárquico e ímpar!

O filme recebeu um prêmio especial no Festival de Berlim, além do troféu de melhor atriz para Anna Karina.

O trocadilho do título (Une femme est une femme pode ser ouvido como uma mulher é uma mulher, ou uma mulher é infame) só funciona em seu idioma original.

Lançado em DVD no Brasil pela Focus Filmes.