VERSÃO 1934 DE “O HOMEM QUE SABIA DEMAIS” É UM DOS DESTAQUES DA COLEÇÃO LANÇADA PELA VERSÁTIL.

Por Celso Sabadin.

O novo lançamento da Versátil, “O Cinema de Hitchcock”, traz três DVDs com seis clássicos do famoso Mestre do Suspense, todos em inéditas versões restauradas. São eles: Rebecca, a mulher inesquecível , O homem que sabia demais, Correspondente estrangeiro, Os 39 degraus, Quando fala o coração e Interlúdio.

O Planeta Tela trará uma análise completa de cada um deles, começando por “O Homem que Sabia Demais”, de 1034. Acompanhe:

 

O HOMEM QUE SABIA DEMAIS

A filmografia de Alfred Hitchcock é marcada por muitos pioneirismos. Além de explorar os mais diversos recursos tecnológicos e cinematográficos que estavam à sua mão, em sua época, o cineasta também é conhecido por várias idiossincrasias. Por exemplo, quantos diretores na história do cinema tiveram a chance de fazer um remake de si próprio, em países diferentes? Michael Haneke com “Violência Gratuita”? Isto acontece com o filme “O Homem que Sabia Demais”, que tem duas versões, ambas dirigidas por Hitch: a primeira, inglesa, de 1934, presente nesta caixa da Versátil; e a refilmagem, americana, 1956, da Universal Pictures.

Nesta versão original, o cineasta explora um de seus temas preferidos: o do homem comum e inocente que se envolve inadvertidamente em tramas de espionagem e/ou situações limites. No caso, mais que um homem, temos aqui toda uma família comum passando férias numa estação de esqui em St. Moritz, na Suíça: Lawrence (Leslie Banks), sua esposa Jill (Edna Best) e Betty (Nova Pilbeam), a jovem, filha do casal. Certa noite, durante um baile de gala na luxuosa estação de esqui, um homem recebe um tiro silencioso e fatal enquanto dança com Jill. Antes de morrer, ele ainda tem tempo de sussurrar um segredo a ela, que imediatamente o retransmite ao marido. Antes mesmo que o espectador tenha tempo de saber o que exatamente está se passando, um bilhete anônimo informa que a pequena Betty foi sequestrada, e que ela sofrerá consequências se o casal seguir as instruções do homem recém-assassinado.

Em poucos minutos, de forma ágil e precisa, está armada a trama escrita a dez mãos por Charles Bennett, D.B. Wyndham-Lewis, Edwin Greenwood, A.R. Rawlinson e Emlyn Williams. Bennet depois também faria parte dos créditos de escritores e roteiristas de “Os 39 Degraus”, “Correspondente Estrangeiro” e dos seriados de TV “Viagem ao Fundo do Mar”,“Terra de Gigantes e “James West”.  Curiosamente, além do título, o filme não tem absolutamente nada a ver com o livro homônimo publicado pelo poeta e escritor inglês G.K. Chesterton em 1922.

Logo na primeira cena do filme percebe-se a falta de domínio técnico da edição de som, já que o cinema sonoro naquele momento ainda engatinhava, aos 7 anos de sua invenção. Trata-se de um quase atropelamento de ski, onde nitidamente os efeitos sonoros não acompanham nem de longe o apuro visual da montagem de Hitchcock. Mas é interessante notar como o cineasta, já com a experiência deste seu 17º longa, domina solidamente a narrativa através das imagens, como nos belos travellings feitos durante a cena do baile.

Ou quando a garota Betty diz não gostar de seu tio Clive (Hugh Wakefield) porque ele usa “brilhantina demais”. A fala é rapidamente interrompida por um corte que remete imediatamente ao close do cabelo englostorado do citado tio, que comandará o próximo plano, criando assim uma rápida, ágil, precisa e divertida apresentação de personagem.

Num primeiro momento, o protagonista se recusa a colaborar com uma trama de espionagem internacional com a qual, a princípio, ele nada teria a ver. Mas sua posição individualista é confrontada por outro personagem, através da seguinte fala: “Em junho de 1914 você tinha ouvido falar de um lugar chamado Sarajevo? Claro que não. Nem do Arquidique Ferdinando. Mas por causa de um homem que você nunca ouviu falar ter matado outro homem que você nunca ouviu falar, num lugar que você nunca ouviu falar, este país entrou em guerra”.

O discurso politizado e, por que não, globalizado (numa época em que esta palavra sequer existia), além de convencer imediatamente o protagonista que ele deveria, sim, se envolver, também carrega consigo uma crítica à sociedade da época. O filme foi rodado alguns meses após Hitler e seu partido nacional-socialista terem assumido a liderança na Alemanha. Observadores mais atentos já preconizavam o desastre que as posições radicais dos nazistas poderiam trazer para a Europa como um todo, enquanto outros setores preferiam fazer vistas grossas e considerar que tudo aquilo apenas como uma questão interna alemã. O filme abertamente critica esta visão isolada e egoísta dos fatos, tornando-se, de certa forma, premonitório sobre a guerra que estouraria cinco anos mais tarde.

Em “O Homem que Sabia Demais”, Hitchcock parece divertir-se bastante com suas “brincadeiras” favoritas, como seus longos passeios com a câmera mostrando e escondendo o que precisa ser mostrado e escondido nos momentos precisos, inesperados cortes súbitos, uma invejável desenvoltura e leveza de câmera, além, é claro, de seu sempre presente humor britânico.

Mesmo tratando-se de um filme de espionagem envolvendo crimes, mortes e sequestro, a ironia e o sarcasmo permeiam toda a trama. Em meio a um tenso tiroteio, por exemplo, um homem, assustado, pergunta ao policial:

“ – O que está acontecendo?

– É melhor tirar sua família daqui.

– Eu não sou casado.

– Melhor pra você”.

 

Num outro momento de tensão, um diálogo inquisitivo entre o gerente do hotel e o protagonista, um funcionário passa entre os dois personagens carregando ostensivamente o que parece ser uma grande bandeja com comida. Sem nenhuma função dramatúrgica, nem lógica, tampouco necessidade. Apenas uma intervenção tipicamente hitchcoquiana talvez para criar uma pista falsa, talvez para criar um contraponto inesperado ou, quem sabe, apenas para brincar.

Este constante contraponto tensão/humor atinge seu ápice na cena onde um fio de tricô é preso na casaca de um dos participantes do baile de gala que, na medida em que dança pelo salão, vai desfiando a lã por entre os participantes do baile, causando situações cômicas. Repare inclusive num rápido momento em que um homem e uma mulher, dançando com pares diferentes, se entreolham com ar de malícia após o fio de lã tê-los “acariciado” num ângulo baixo que a câmera, espertamente, não enquadra. E exatamente no momento em que o público se encontra embalado pelo humor, leveza e pela  descontração da cena que será desferido o mais que inesperado tiro que dará início aos aspectos policiais e policialescos da história.

Não por acaso, o antro dos conspiradores é localizado dentro de uma igreja, instituição com a qual Hitchcock, educado sob rígidos preceitos jesuítas, tinha vários problemas e traumas. Deve ter sido no mínimo divertido para ele fazer do templo um simbolismo de esconderijo de bandidos. É lá também que acontece outro momento de humor dentro da tensão, quando Lawrence e Tio Clive penetram num culto em andamento, fazem se passar por fieis, e começam a “cantar” o hino religioso do culto, trocando a letra por frases que externam suas desconfianças para com o lugar. Minutos depois, o alto som do órgão entoando hinos de louvor tenta encobrir a barulheira de uma violenta briga de cadeiras, para que a polícia não perceba o que está acontecendo dentro daquela igreja. Metáfora pouca é bobagem.

No comando dos vilões, um cínico e impagável Peter Lorre, ator austro-húngaro que três anos antes havia se notabilizado com o clássico “M – O Vampiro de Dusseldorf”. Sem dominar o idioma inglês, Lorre decorou a fonética de suas falas para poder interpretar o papel.

Ele também é o pivô de um brevíssimo mas muito bem urdido momento cênico bastante representativo do estilo de Hitchcock: no mesmo plano, vemos três vilões. O da direita é mortalmente alvejado por uma bala. O público e o vilão da esquerda percebem a morte; o vilão do meio (Lorre), ao contrário, está sorrindo e não percebe. Mas vê no colega da esquerda a transformação da expressão do seu rosto. Será esta transformação facial que fará com que Lorre olhe para o lado e perceba, assim, a morte do colega. O rosto do bandido serve de espelho para que Lorre perceba, através da face do outro, o que aconteceu exatamente ao seu lado, sem que ele notasse. São rápidos segundos, parece pouco, mas a cena trabalha com as diferenciações entre suspense, mistério e empatia com o público, que serão longamente utilizados durante toda a carreira do cineasta.

O suspense também é o elemento chave de um outro momento elegante e inteligentemente construído, onde através de uma montagem ágil e eficiente vemos que duas pessoas tentam ligar ao mesmo tempo para o mesmo número de telefone. Do sucesso ou do fracasso destas ligações dependerá a vida de Betty. E o público fica até o último segundo sem saber quem de fato conseguirá a conexão.

Mas é claro que tudo converge para a famosa cena do Royal Albert Hall, onde será executado um concerto (cuja música foi composta especialmente para o filme) no qual os criminosos planejam efetivar o atentado contando que o som do tiro será abafado pelo momento exato em que os instrumentos de percussão entrarem em cena. Para um filme que começou na terra dos relógios de máxima precisão, faz sentido.

Falando em música, vale ressaltar que todas as música que ouvimos no filme são também ouvidas pelos seus personagens, isto é, não há exatamente uma trilha sonora específica para emolduras as cenas. Isso, claro, 60 anos antes do badalado movimento Dogma do cinema escandinavo.

Como cereja do bolo, outra característica que será marca registrada hitchcoqueana: a perseguição/clímax num lugar alto.

Esta versão 1934 de “O Homem que Sabia Demais” é tida como o maior sucesso de publico da fase inglesa do Mestre do Suspense.