VERSÁTIL LANÇA CAIXA COM QUATRO CLÁSSICOS DE SAMUEL FULLER. LEIA AQUI CRÍTICAS COMPLETAS.

Por Celso Sabadin

Quando dirigiu seu primeiro filme, Samuel Fuller já tinha 37 anos. Pouca experiência como cineasta, mas uma vastíssima vivência de vida. Morando em Nova York desde garoto, arranjou emprego de “copy boy” (espécie de office boy das antigas redações de jornais) ainda adolescente, e logo conseguiu uma vaga como repórter policial. Saiu às ruas, cobriu crimes, ouviu testemunhas, conviveu com a polícia, conheceu criminosos, escreveu matérias. Tomou gosto por escrever histórias, fossem elas reais ou ficcionais.

Em 1936, aos 24 anos, viu pela primeira vez uma de suas histórias virar filme, ao vender um texto para o produtor e diretor Boris Petroff, um russo radicado nos EUA que, assim como Fuller, também estreava nas telas. A singela trama sobre um casal de profissionais de relações públicas que compete entre si para vender ações promocionais para um evento comemorativo do centenário do Texas transformou-se no filme “Feira de Sensações”, estrelado por John Payne e Mary Jo Allen. Não foi um grande sucesso, mas no ano seguinte Fuller já estava trabalhando como roteirista para a Columbia Pictures.

Quando estoura a 2ª Guerra Mundial, o jovem criador de histórias troca a máquina de escrever pela metralhadora, e vai para as frentes de batalha. Esteve no norte da África, Itália e Normandia, mas não parou de escrever, mantendo um diário de guerra onde anotava tudo. Inclusive ideias para um filme que queria fazer contando as mazelas do conflito.

Terminada a Guerra, Fuller continua escrevendo argumentos e histórias para o cinema, até que sua grande oportunidade surge em 1949. Robert Lippert, proprietário da pequena mas prolífica Lippert Films (que no ano seguinte produziria o clássico da ficção “Destino à Lua”), abre as portas para que o roteirista dirija seu primeiro filme. Surge “Eu Matei Jesse James”, onde Fuller, já iconoclasta e inquieto, busca provar sua teoria que Jesse James não era o pistoleiro heroico que o folclore americano dizia ser, mas sim um cruel assassino psicótico. O filme consegue boa repercussão e distribuição mundial, e a carreira de Fuller decola.

Sem deixar de escrever, ele se torna diretor e produtor tanto de longas para cinema como de seriados de TV (onde chega a produzir comédias televisivas com Jerry Lewis e Dean Martin). Trabalha junto à Fox, NBC Television, RKO e vários outros estúdios, sempre mantendo como marca registrada sua eterna inquietação criativa.

Na contramão das facilidades comerciais do cinema americano, Fuller não acreditava em heróis. Preferia filmar histórias de pessoas comuns, que erram e acertam, com virtudes, defeitos e verdade. Muitas vezes personagens inspiradas em tiras e criminosos que conheceu em sua época de repórter policial. Em vários de seus filmes costumava batizar algum personagem de Cliff, em homenagem a um amigo morto na Guerra.

Premiado em Veneza por “Anjo do Mal”, em Valladolid por “Paixões que Alucinam”, e presença constante em festivais e premiações pelo mundo, sua carreira parecia ter atingido o auge em 1980, quando finalmente lançou a obra autobiográfica com a qual sonhava desde a 2ª Guerra: o belíssimo drama bélico “Agonia e Glória”, concorrente em Cannes.

Dois anos depois, porém, foi acusado de racismo após dirigir “Cão Branco”, sobre um cachorro treinado para atacar somente pessoas negras. A polêmica foi tanta que a Paramount decidiu sequer lançar o filme nos Estados Unidos. Como para o mercado norte-americano perder dinheiro é o pior pecado que um cineasta pode cometer, Fuller muda-se para a França, onde realiza seus últimos três longas: “Ladrões do Amanhecer”, “Uma Rua Sem Volta” e o telefilme “La Madone et le Dragon”.

Morreu em Hollywood, aos 85 anos.

 

A caixa “A Arte de Samuel Fuller” lançada pela Versátil reúne quatro de seus grandes filmes produzidos nos anos 50 e 60, além de um ótimo documentário de 55 minutos conduzido por Tim Robbins, entrevista com Fuller, e depoimentos de Jim Jarmusch e Martin Scorsese, com participação especial de Quentin Tarantino, um verdadeiro arroz de festa de extras de DVD, que pra variar não diz nada que se aproveite.

 

Os longas são:

 

Casa de Bambu (“House of Bamboo”, 1955)

“Casa de Bambu” foi rodado em 1954, ou seja, pouco tempo depois do término da ocupação norte-americana no Japão, pós 2ª Guerra, que durou de agosto de 1945 a abril de 1952. No filme, vê-se claramente que o Japão ter retornado à sua condição de país independente, fato garantido pelo Tratado de Paz de San Francisco, não significou de maneira alguma que a influência e a presença norte-americana tivessem cessado por ali. Percebem-se ainda as bases dos EUA, os militares e, principalmente os costumes ocidentais se espalhando irreversivelmente pela famosa Terra do Sol Nascente. Ah, e os criminosos também, claro. “Casa de Bambu” fala de um atuante grupo de norte-americanos que promove grandes assaltos em Tóquio. A quadrilha rouba trens, bancos, e tem como cruel regra de honra matar seus próprios companheiros, caso algum deles seja ferido e possa ser capturado pela polícia.  Caberá ao exército americano infiltrar um sargento nesta operação, para tentar desbaratá-la.

Antes de mais nada, chama a atenção a qualidade do roteiro de Harry Kleiner (de “Salomé” e “Carmen Jones”), que desenvolve com sabor de mistério de espionagem uma série de personagens dos mais interessantes, pelo menos três deles num mesmo patamar de protagonismo. O chefe da gangue é Sandy Dawson (Robert Ryan), homem de gestos refinados, grande poder de sedução e persuasão, capaz de alternar atitudes cavalheirescas e animalescas em fração de segundo. O americano misterioso de modos grosseiros que desembarca em Tóquio logo no início da ação e não hesita em surrar um ou dois comerciantes japoneses para tentar lhes vender proteção é Eddie Kenner (Robert Stack, do famoso seriado de Tv “Os Intocáveis”). Logo mais perceberemos que o roteiro reservará boas surpresas para ele. E a garota oriental que se casou em segredo com um americano que acabou de ser assassinado e agora está perdida no mundo é Mariko, vivida por Shirley Yamaguchi, uma chinesa que adotou sobrenome japonês e construiu carreira de sucesso como atriz e cantora no Japão, vindo a falecer quase centenária no ano passado (2014). Seu papel é de uma mulher intrigante que exala toda a conhecida submissão feminina típica da cultura japonesa daquela época, ao mesmo tempo que demonstra sólidas força, atitude e caráter determinado.

Percebe-se aliás que esta subserviência extrapola o conceito do feminino, e se estende para toda a população japonesa. Em toda e qualquer situação do filme os personagens japoneses estão em posição de total inferioridade em relação aos personagens ocidentais. São reféns em seu próprio país, compondo as cenas e os quadros quase como fantoches. Compreende-se. Faz apenas dez anos que a guerra terminou, e os americanos, fortemente escorados pelo seu cinema, continuam sua infinita campanha de marketing para tentar mostrar a todo o mundo que não há nação como aquela em todo o universo (incluindo Marte que, naqueles anos de Macartismo, era o planeta vermelho, logo, comunista, mas isto já é um baita de um outro assunto).

Considerações sociológicas a parte, o filme trabalha com três personagens, cada a qual à sua maneira, divididos. E que acabam representando o período histórico de um Japão igualmente dividido entre suas tradições milenares e a sedução da onda consumista ocidental pós-guerra. O choque cultural é intenso, rico e constante. Nas ruas de Tóquio (muito bem fotografadas por Joe McDonald, o mesmo de “Viva Zapata!”), os mais coloridos quimonos contrastam com as cores sóbrias de paletós e gravatas. Uma cena em especial retrata fortemente esta situação: durante uma tradicionalíssima apresentação de dança japonesa, as dançarinas de repente tiram suas roupas e revelam que sob o quimonos elas vestem aquelas típicas saias rodadas dos anos 50 com suas inevitáveis meia soquete. A música vira para o jazz e todas saem dançando no melhor estilo Bill Halley e Seus Cometas.

O filme começa com uma narração estilo policial, por vezes redundante, bastante utilizada inclusive em seriados de TV como “Os Intocáveis”, que Stack protagonizaria mais tarde, entre 1959 e 63. Talvez a ideia fosse dar a “Casa de Bambu” uma espécie de verdade documental, mas o fato é que, após algumas sequências, o recurso é abandonado e não se fala mais nisso. Literalmente.

Há um par de belas cenas entre Eddie e Mariko onde o diretor Samuel Fuller deixa fluir seu talento também para momentos românticos. E o final, meio a la Hitchcock (gran final num grande parque de diversões) pode não trazer a mesma genialidade do Meste do Suspense, mas é bastante bem resolvido.

 

O Quimono Escarlate (“The Crimson Kimono”, 1959)

Sem dúvida ter realizado “A Casa de Bambu” no Japão, em 1955, influenciou bastante a carreira de Fuller, que salpicou sua obra de referências à cultura oriental. “O Quimono Escarlate”, de 59, ratifica ainda mais esta tendência.

Fiel aos seus princípios de criar cenas iniciais impactantes, “O Quimono Escarlate” começa com uma intensa dança de uma não menos intensa dançarina. Poucos segundos depois, tiros, um atentado, a garota sai correndo com pouca roupa pelas movimentadas ruas de Los Angeles, onde é cruelmente morta no asfalto. Praticamente abatida. Tem início uma investigação empreendida pelos policiais Charlie (estreia de Glenn Corbett) e Joe (o havaiano James Shigeta, astro de sucesso em papéis orientais, falecido em 2014). Ambos são amigos inseparáveis, lutaram juntos na Coréia, dividem um caprichado apartamento duplo, e são colegas na Polícia. Até o momento em que se apaixonam pela mesma mulher, a bela artista plástica Chris (Victoria Shaw), que colabora nas investigações como testemunha. É sobre este potencial triângulo amoroso que o filme se debruçará, inclusive esquecendo durante boa parte de sua narrativa o próprio crime que originou a trama, também escrita e roteirizada por Fuller.

Talvez para as plateias de hoje soe estranho o grande complexo de inferioridade demonstrado pelo personagem Joe, que se sente absolutamente incapaz de sequer cortejar Chris, por ter feições orientais. Mas vale lembrar que o filme, rodado apenas 14 anos após o término da 2ª Guerra Mundial, traz em seu íntimo todo o peso da derrota japonesa no conflito, bem como a campanha difamatória que os Estados Unidos empreenderam contra o povo, o governo e a cultura nipônicos.

Não era fácil ser japonês nos anos 50, e talvez este seja o ponto mais crucial de “O Quimono Vermelho”.   

  

Paixões que Alucinam (“Shock Corridor”, 1963)

Motivado pela ambição de ganhar um Prêmio Pulitzer, o jornalista Johnny (Peter Breck) empreende um estranho e perigoso plano: infiltrar-se num hospital psiquiátrico como paciente, conversar com os internos, e assim desvendar o caso de um assassinato ali ocorrido. Este ponto de partida serve para o diretor e roteirista Samuel Fuller criar uma intrigante e perturbadora análise sobre a loucura humana, de uma maneira mais ampla, e a loucura norte-americana, de forma mais particular.

O hospital acaba se transformando num microcosmo da sociedade, onde Johnny vai, aos poucos, tomando contato (e enlouquecendo) com três das principais paranoias norte-americanas personificados por três internos. O primeiro, que pensa ser um general confederado, destila o ódio e a paranoia anticomunista. O segundo, que acredita ser membro da Klu-Klux-Klan, é motivado pelo mais profundo racismo… mesmo sendo negro. E o terceiro, um cientista premiado com o Nobel, é atormentado pelas mortes que causou em testes nucleares. A metáfora é brilhantemente completada com a inclusão final do próprio protagonista nesta loucura institucionalizada, ele própria a personificação da ambição desmedida e do “ser alguém” a qualquer custo dentro de uma sociedade ensandecidamente competitiva.

Novamente aqui percebe-se a inserção de outro elemento oriental na obra de Fuller, e não de maneira elogiosa: o eticamente duvidoso Dr. Fong (Philip Ahn, que viveu quase 200 papeis orientais no cinema americano), que treina o protagonista para se fazer passar por doente mental.

A exemplo de “O Beijo Amargo”, o perturbador “Paixões que Alucinam” também não conseguiu obter o certificado para exibição no Reino Unido, onde permaneceu inédito até os anos 90.

Curiosidade: nas duas sequências de alucinações que acontecem durante o filme (as únicas em cores), são reaproveitados outros filmes feitos por Fuller. A cena do parque de diversões é sobra de material de “Casa de Bambu”, e a dança indígena é um excerto de “Tigrego”, produção jamais finalizada que o cineasta começou a filmar no estado de Mato Grosso.

 

O Beijo Amargo (“The Naked Kiss”, 1964)

O próprio documentário sobre Samuel Fuller que faz parte dos extras desta caixa cita um “mandamento” do cineasta: “Se você começa a escrever um roteiro e logo nas primeiras páginas não tem uma ereção, rasgue tudo e comece novamente”. Esta máxima de Fuller é respeitada com louvor em “O Beijo Amargo”: poucos filmes têm um início tão explosivo. Considerando, é claro, o termo “ereção” como metáfora do prazer cinematográfico.

Logo na primeiríssima cena a plateia é impactada por uma série de closes de um rosto sendo surrado. Câmera na mão, vigor total, susto, inquietação, surpresa, violência, ritmo frenético. Os murros parecem acertar o próprio espectador. O homem surrado simplesmente pede para não apanhar por estar embriagado. A mão que o agride é impiedosa. E logo percebemos ser as mãos de uma mulher, que derruba seu oponente, tira-lhe uma parte de seu dinheiro, e vai se recompor diante de um espelho. Onde se exibe totalmente careca. Um grande momento do cinema.

Exaurido o fôlego da plateia, Fuller aquieta sua câmera e seu ritmo para começar a contar sua história: a agressora sem cabelos é Kelly (Constance Towers), uma bela e elegante mulher que se muda para uma pequena cidade do interior para tentar apagar seu passado de prostituição. Sua sonhada redenção começa a se concretizar sob a forma do quase angelical emprego de enfermeira que ela consegue no lugarejo.

Sempre com sua fina ironia, Fuller arma uma impagável galeria de personagens: a prostituta arrependida, o policial durão, a idosa virgem que venera a imagem do marido que nunca teve, a dona de prostíbulo que batiza suas garotas com nomes de doces e, a cereja do bolo, o herdeiro milionário benfeitor por fora, pedófilo por dentro. Todos emoldurados pelas cercas brancas e  belas pracinhas floridas de uma típica e asséptica cidadezinha norte-americana.

Um dos grandes méritos de Fuller era o de não ter medo do exagero, explorando os limites do razoável (e várias vezes superando-os) em nome de uma boa dose de impacto cinematográfico. A cena da apresentação musical das crianças deficientes, por exemplo, é um primor inenarrável de cafonice melodramática. Mal sabe o espectador, porém, que o cineasta se aproveitará desta mesma melodramaticidade para reinterpretar  a cena, recontextualizada, no momento chave da revelação de um dos personagens principais. Coisa de gênio, e os gênios não têm medo de errar. Muito menos de se divertir: são várias as autorreferências que Fuller espalha pelo filme, como por exemplo, o cinema do lugarejo estar exibindo “Schock Corridor”, produção anterior do cineasta. Há também um diálogo onde o policial diz ter aprendido a palavra japonesa “Ichiban” (Número Um) em viagem feita a Tóquio. De fato isso acontece com o protagonista de “Casa de Bambu”, que Fuller realizara na capital japonesa anos antes. E um punhado de outras.

O cineasta se dá ao luxo de discutir, dentro de um mesmo filme, prostituição e pedofilia. Isso em 1964, época onde o Código Hays de censura ainda predominava e não deixava sequer que um casal aparecesse na mesma cama. Não é de admirar que “O Beijo Amargo” não conseguiu obter o certificado para exibição no Reino Unido, onde permaneceu inédito até os anos 90.
Curiosidades: Michael Dante (ator que interpreta o milionário), agora octogenário, estava aposentado desde 1989, mas retorna ao cinema em 2015, com uma nova produção. E Constance Towers (a ex-prostituta), atualmente com quase 82 anos, nunca parou de atuar, e continua sendo atriz bastante requisitada principalmente para seriados de TV.