“VOCÊ NÃO ESTAVA AQUI”, A UBERIZAÇÃO DA VIDA.

Por Celso Sabadin.
 
Muitas vezes, para causar um forte impacto no cinema, para dar um soco na boca do estômago do espectador, não é necessário apelar para nenhum monstro, zumbi, assassinato, nem mesmo uma única gota sangue. Do jeito que o planeta caminha, basta mostrar a realidade do cotidiano. E quando o assunto é filmar o horror que o mundo capitalista se tornou, poucos cineastas são tão eficientes como o inglês Ken Loach, o mesmo de “Ventos da liberdade” (2006), “Eu, Daniel Blake” (2016) e “A Parte dos Anjos”, entre cerca de 50 outros.
Em seu novo longa, “Você Não Estava Aqui”, Loach aborda a mais recente crise sócio-econômica-moral da contemporaneidade: a uberização da vida. O roteiro de Paul Laverty, costumeiro colaborador de Loach, fala do casal Ricky (Kris Hitchene) e Abby (a estreante em cinema Debbie Honeywood), que ainda não se recuperou – e provavelmente não se recuperará – da grande crise financeira de 2008.
Ela, abnegada, cuida de idosos, faz o que pode. Ele “vira empresário”, o que nos tempos atuais significa alugar uma van para trabalhar “por conta própria” (leia-se para um patrão igual a qualquer outro) como entregador, sem nenhum tipo de benefício empregatício, convênio médico, horário ou seguro. É a neoescravidão do século 21.
 
Em essência, é um filme sobre um desmoronamento. Um desabar geral da dignidade, da condição humana, da esperança, das possibilidades, dos sonhos, das relações familiares, de todo e qualquer limite lógico da existência, enfim, da vida, tendo o capitalismo exploratório como dinamite.
A única tábua de salvação dos protagonistas é a pequena mesa quadrada onde eles constantemente tentam se reencontrar como família, uma minuscula ilha de sanidade onde buscam se reinventar a cada dia na tentativa de não deixar que seus principais valores naufraguem.
Pelas lentes de Loach, este desmoronamento acontece de forma sóbria, porém, inexorável. Sem maneirismos nem explosões de dramaticidade, mas com a crueldade de um tsunami que avança lenta e destrutivamente, sem possibilidade de ser detido. Apenas acompanha-se a tragédia e, pior, sabendo-se ser parte dela. É mais do que um filme: é a realidade. Que não sai da gente quando as luzes se acendem.
 
“Você não Estava Aqui” foi exibido em Cannes, em San Sebastian – onde levou o Prêmio do Público de Melhor Filme Europeu – em Toronto, Zurique, Atenas e Rio, sempre causando comoção às plateias.