21o. VITÓRIA CINE VÍDEO: AS DIVERTIDAS AVENTURAS DE UM TIOZÃO ASSISTINDO “LASCADOS”.

Mesmo estando num festival onde há curtas em boa quantidade – e, especificamente num ano de bela quantidade -, onde entre os longas também há três que são no mínimo muito bons (um deles excelente), e ainda contando com boa safra de filmes locais, o que sempre me instiga e coloca em “risco” (aliás, acho importante alertar para o fato de imaginar no mínimo estanho estar em alguma mostra ou evento que abre a chance de vermos a produção local e não acompanhá-la minimamente) porque vou lá e escrevo sobre, hoje arrisquei um filme comercialzão (na realidade nem tanto, já que nem conta com aporte de Globo Filmes ou quetais, mas contando com grupo de atores que chama a atenção da garotada voltada ao que é mais à mão, mais de venda fácil), por insistência de colegas de trabalho, e ainda penando na possibilidade de, por vê-lo, enfim, aproveitaria para adiantar trabalho já que estreará no dia 18 próximo.

Texto originalmente publicado em www.cinequanon.art.br
Cid Nader viajou a Vitória a convite da organização do evento.

Meio da tarde e lá chegamos nós na Van ao lado do Theatro, com fila enorme na porta – de longe me parecia mais uma fila de parque de diversões porque me pareciam seres muito jovezinhos ali -, pipoqueiros e algumas pessoas com cara de mães em acompanhamento dos filhos, e não indo a algum programa próprio. Chegando já na porta, a constatação de que eram mesmo crianças (pré-adolescentes de seus 12 ou 13 anos) e, mais especificamente, ao menos 90% delas meninas. Somos colocados às pressas para dentro, antes das portas abrirem, e finalmente quando nos encaminhamos para sentar logo no meio, na segunda fileira, o meio retardado que sou resolve se inteirar melhor da razão de toda a aquela molecada ali: “é porque elas estão esperando pelo Chay, que aliás não virá…”. Já que meio retardado, retardado e meio, então, e lá vou eu perguntando: “quem?”. “Chaya Sued, o galã das menininhas. Da TV. Da Série ‘Os Rebeldes’. Não conhece não?”. Retardado e meio somado a meio retardado nem sei que número dá, mas bobo não: “lógico que sei. Mas ele não vem, você disse? Elas sabem disso?”. É assim: a gente escapa pela tangente e desvia um tanto do foco, e a pessoa normalmente aceitar e muda: “é, parece que não avisaram as meninas que ele não vem. Você viu todas com caderninhos e suas câmeras preparadas?”. “putz, será que não avisaram?”, perguntei, realmente já entristecido pela decepção que teriam.

Ruídos, gritos: muitos agudos e se aproximando. Haviam aberto a porta para o público e as meninas vieram voando para a frente – coisa que público comum de cinema não costuma fazer -, cercando-nos aos três rapidamente e tomando a fileira de trás, para então o resto da sala ser todo preenchido: “mas ao menos parece que a Paloma Bernardi vem”. Sabem aquele barulhinho de vento que desenhos animados usam quando paira uma dúvida ou um “não entendi” no ar? Era o que ouvia vindo do meu cérebro diante da impossibilidade de simplesmente perguntar: “quem?”. Mas a colega que informou foi logo emendando: “aquela atriz bonita de olhos claros, da, blá blá blá blá…”. “Sim! Lógico que sei! Realmente ela é muito bonita!”. Antes que minha falsidade continuasse a ser testada, sobem os gritos, meus tímpanos realmente zumbem, sinto respirações no cabelo e solavancos nas costas: diretor (Vitor Mafra), produtor, outro jovem ator (José Trassi) e a bela atriz (“Sim! Reconheci! Acho que da Globo!”) sentam-se na nossa frente, cumprimentam-nos (seres realmente diferenciados – e tão assustados quanto eles – diante daquela excitação tão jovem), enquanto já vão avisando informalmente que nosso grande Chay não pode vir.

Foi triste por alguns segundos sentir a decepção das meninas… Muita decepção, realmente. Mas como suas idades tão frágeis ainda (pensemos que todas já são pessoas deste milênio), frágil também foi o instante de decepção e quando eles subiram ao palco a gritaria toda voltou em tom de elogios rasgados à beleza de Paloma, que visivelmente pasma com a situação nem sabia como agradecer, um tanto trêmula e outro tanto emocionada. A cada palavra e gesto seu, agudíssimos trinados ao lado, atrás, enquanto sentia todo meu complexo auditivo sendo limpo e invadido até seu mais profundo intrincado (desculpo-me se sou grosso nessa descrição): devo lembrar que meus colegas (aqueles que me convenceram) estavam mais assustados do que eu, que nesse instante já tentava “sociologizar” toda aquela situação que liga o ser humano à necessidade do ídolo – mas não derivarei meu texto para essa patacoada fácil e chata, plena de análises do outro, quando mal me conheço.

Mas o mais interessante disso tudo, de toda essa jovem jornada, foi que fiquei muito é fã mesmo de uma garota sentada bem atrás de mim, de uns 12 anos, voz meio rouca e opiniões e desejos muito afiados. Como quando o ator José Trassi diz que “foi uma honra trabalhar com o ausente Chay”, e ela: “cara sortudo!”. Ou quando a produtora do festival sobe ao palco antes do filme iniciara e entre outras fala da “honra que é ter a equipe do filme por lá”, enquanto minha “idola” emenda um: “mas você não trouxe o Chay, e daí?”. Diretor no palco: “eu sou o diretor…”; ‘ídola” atrás de mim: “cala a boca! Eu não queria te ver!”. Já no filme,quando ele abraça uma mulher num baile de carnaval e ouço da garota, “eu quero…”. Quando o Chay levanta da Kombi e sai andando: “ai que bunda linda”. Numa cena que envolvia creme de barbear e um dos atores dormindo: “nossa, eles vão mesmo repetir a cena do ‘Rebeldes’?”. Quando abraça a Paloma: “cara, você tem muita sorte”. E quando eles se beijam, “ai, ai, ufa. Meu Deus…”. Além de ter percebido pelas suas reações orais que só olhava para o Chay em todas as cenas, com comentários sobre “olhar de malandro”, “olha ele fazendo biquinho”, e tal. Uma fã/gênio!

Ah, o filme? Era o Lascados. A crítica? Apesar de ter até me surpreendido com ele, e perceber algumas coisas realmente boas, creio que deva deixar prum outro instante: ou não.

P.S.: sei que nesse instante minha imagem deve estar rolando em Youtubes e Instragrans da vida. O que com certeza acarretará inúmeras perguntas sobre quem e por que esse tio está aí atrapalhando tudo?

CURTAS-METRAGENS

Malha, de Paulo Roberto (DOC, 14 min/PB)

E lá vem novamente o cinema recente da Paraíba – para reforçar uma tradição, afinal, num estado que tem seu forte cinema “antigo” – novamente estampando em tela novidades e genialidades, brotadas das ações que parecem as mais simples na feitura, que são normalmente de ordem das coisas locais (muito mais justo e rentável filmar-se a si mesmo, aos seus, à sua aldeia), mas que na realidade tem mesmo é revelado uma garotada bastante antenada com a arte, e que se vale de referências amplas para suas construções: sem deixar, porém, que tais referências se isolem do todo para serem notadas como aparatos ilusórios de sedução do espectador cinéfilo (ou dos críticos) que necessitam notar o que influenciou o trabalho, fora dele.

E não é de notar a grandiosidade de um western ou de um clássico bíblico quando tudo inicia sob a música clássica, que pareceria incompatível com as imagens mostradas, e que no fundo acaba como que criando o clima para o espetáculo que sucederá? E o que sucederá, não irá surpreender ao máximo (desde o tema, que refere a tradições de Semana Santa, com Judas e açoites sendo a bola da vez) quando revelar não desertos ianques, ou terras antigas do Velho Mundo, mas ao aportar definitivamente sobre acontecimentos totalmente de cá do mundo (se bem que de lá das grandes urbes, o que confere a beleza de ser trabalho que só poderia ser imaginado por quem vive aquilo de alguma maneira, num quinhão pequeníssimo do país) em região de tendência rural e ancestral, mas de paisagem de local urbanizado nas cochas?

Pois então: Paulo Roberto professa um monte dessas possibilidades na hora em que resolve construir seu doc-curta, Malha, por onde persegue uma tradição meio marginal (isso se notará no desfecho, com a chegada da cavalaria), onde traz às lentes assustadores seres mascarados (e é genial o instante em que eles surgem correndo e a câmera os persegue), quando um tanto antes filma situações que se saberá a razão somente no trecho final (o da tradição estranha), e ao conseguir contar sem palavras organizadas, mas por imagens, puramente, o quanto há de tradições nesses interiores que mescla a selvageria à fé, o profano ao sagrado (com compreensões muito particulares), o proibido ante a lei ao desejado como expurgação ou modo de desabafo festivo. Curta bom de história e ótimo no modo como a conta.

O Porto, de Clarissa Campolina, Julia de Simone, Luiz Pretti e Ricardo Pretti (DOC, 21 min/RJ)

É difícil conversar com outras pessoas, ou ir aos debates, quando se tem mente escrever crítica versando sobre o que foi assistido. Difícil porque – tanto nos prós como nos contras -, sempre haverá alguém com certezas que te deixarão com mais informações do que somente as desejáveis para um crítico (que deveria sempre se nutrir basicamente de suas sensações e impressões para transportar sua opinião). Ontem à noite, incorri no equívoco de estar numa conversa que se alongou sobre esse trabalho em conjunto, que para mim havia funcionado de maneira bem ok (nada demais, mas justo no que se propunha), como um relato/denúncia sobre transformações urbanísticas (e existenciais, nas opções burguesas que acabam sempre sendo as principais responsáveis por esses “cataclismos” em cima de urbanidades antigas ou da natureza) na região do porto do Rio de janeiro.

Havia funcionado justamente por abdicar da palavra, num “veículo” que pode prescindir dela de forma até agradecida como é o cinema, e mesmo assim contar o que os diretores queriam contar: por imagens de uma região que tem seu lado degradado, quem tem seu passado usurpado, que convive ao lado do que é representação do Rio antigo (isso se dá na passagem de alguns elementos carnavalescos por trajeto lá próximo de tudo), e que, ao final, notar-se-á ser destino de quem não liga muito mesmo para isso, e sim só para o que interessa para abastecer seus sonhos de consumo (viagens em transatlânticos, por exemplo). Acontece que na conversa questionava-se se o modo de fazer isso não impunha a estética como um escudo para que não se necessitasse da grita contra o que estava sendo denunciado; questionava-se sobre as razões para as opções pelo desfoque de uns trechos, para as imagens lavadas em outros… E mesmo ainda certo – agora mais ainda de que a estética não estava como escudo, e de que a estética tem função primordial numa maneira de fazer cinema (que pode ser sim de reclamações gritadas, mas que fica melhor quando reclama por montagem e edição do que foi filmado) – do que sento no momento, passo a conviver com o conversado, para num futuro perceber o quanto mudaria de opinião: ou não.

Dia Branco, de Thiago Ricarte (FIC, 19 min/SP)

A expressão “dia branco” utilizada nesse novo curta-metragem de Thiago Ricarte, se perceberá durante o trajeto, tem a ver com uma luz opacizada que nubla o visual por quase todos os momentos, quando três amigos (três crianças, que ao final ganharão a companhia de uma amiga) passam o tempo em região montanhosa do interior de São Paulo: entre brincadeiras, conversas, observações. Como já disse em outra ocasião, Thiago Ricarte parece ter adotado um momento da vida (o que situa seus personagens entre o fim da infância e a adolescência) para transitar com suas lentes e microfones: e tão complexos quanto são esses períodos da vida, são ricos – o que pode talvez ser a razão de sua aparente opção.

Junte-se a busca de uma luz inesperada para a composição dos quadros e o fato dos moleques estarem sob ela, adite-se a opção de fazer do terreno onde eles estão um campo que será o ideal para ousadias e tentativas nas captações, mais os diálogos e momentos absolutamente justos onde se explanam e vivem um instante comum de suas vidas, e já se teria filme suficiente para prender a atenção. Mas, já que estão em montanha, com terreno curvo causando sempre a impressão/sensação (para quem vê as situações através do ponto de vista em 2D, que uma tela de cinema oferece como troca entre as imagens que são nela projetadas e quem as vê de frente) de que se está sempre à beira de abismo, com curvas nos campos de sustentação do que baseia o olhar, ao invés da quase sempre mais comum horizontalidade que se estende alguns poucos metros, que seja, o que Thiago consegue pelo posicionamento de lentes que parecem por vezes flutuar é efeito de desamparo ao olhar.

Toda a estrutura técnica do filme mantém as situações que ocorrem entre os três nessa espécie de “sustentação desamparada” (coisa que não vale no instante em que “estrangeiros” entram na história, como quando dois casais são observados pelos moleques, sobre chão mais amplo e “palpável”): e há então uma sensação novidadeira, que raros tentam ou obtém, nos atos sobre as imagens, especificamente (imagens que são a matéria prima dessa arte). Passamos pelo tempo quase integral sob impactos antagônicos, que impõem ao nosso olhar o a sensação de bloqueio imposta pela luz e pelas nuvens, enquanto retira o bloqueio mais “físico” que estaria no terreno, num “físico” palpável. Tudo, acompanhando esses instantes em que as crianças simplesmente agem, falam pérolas ou desimportâncias, passam a sensação de que há “aquele” momento, enquanto um futuro não tão mais distante as distanciará: como é da vida. Enquanto batem fotos, como o que segurará mecanicamente as sensações, talvez possa-se pensar na “sustentação desamparada” como uma metáfora para vidas que não querem ser sustentadas ou freadas: como é da vida.

Ensaio, de Sofia Saadi (FIC, 19 min/RJ)

Apostar as fichas de um curta-metragem – tão exíguo em seu tempo para imaginar divagações – apontando as lentes para uma atriz se interpretando, e se representando, pode ser risco dos mais cabeludos. Atores e atrizes raramente salvam filmes – nem tão raramente, ok, mas havemos de convir que o bom cinema pode existir sem a boa atuação, enquanto um mau filme jamais será salvo pela grande atuação -, e pensar nisso disposto no enxuto espaço do curta, parece à primeira vista que será tiro n’água inapelável, de difícil arrumação após o desastre estabelecido. Quando, então, as primeiras tomadas revelam a atriz Xuxa Lopes ensaiando texto diante de uma prateleira repleta de coisas, sob um plano mal ajambrado e de pífio resultado estético, e ainda mais notando-se que tom e modos remetem ao teatro, ao palco, todos os sentidos de alerta disparam e a vontade de sair correndo em disparada da sala só é controlada porque, afinal, estou ali diante do trabalho na função de crítico, não de um acovardado “mero cinéfilo”.

Mas a sequência de Ensaio, aos poucos, se não revela que havia engano de minha parte por estar na realidade de um gênio na direção (não chega a ser o caso), Sofia Saadi, ao menos atenua os temores, pois passo a notar que há por parte da diretora bom sentido de construção, que se fortalece com a boa execução, de elaboração bastante mais variada do que o início ameaçava. E as lentes passam a criar planos melhores, quadros mais elaborados; a atuação de Xuxa revela-a estando coparticipe em consonância total com a criação de um filme que é de nuances e variações, de brincadeiras justamente sobre isso que é o ato de atuar e sua “sacralização”, de até buscas estéticas e viradas de jogo a dois por um: o que salva mais ainda a lavoura, porque se está, a partir dessa constatação, diante da solução mais preciosa para que um curta se saia bem em tela, que tem a ver com sabedoria em dinamizar o curto tempo de vida dele. Ao final, a atriz não salva o filme: não era a função dela; e a diretora revela-se bastante interessante – não um gênio, repito: e quem os quer sempre gênios? – e segura de onde iria pisar pelo caminho optado.

Mundo Incrível/Remix, de Gabriel Martins (FIC, 24 min/MG)

De um mundo que se transforma constantemente, mas que na realidade se reaproveitando de elementos que jamais sumirão pra valer: é um tanto disso que trata Mundo Incrível/Remix. Mundo que ode ser muito mais compreensível no sonho (campo onde tudo é plausível e de fácil encaixe), e que talvez só possa ser recriado nos planos “do palpável, do factível consciente e ordenadamente, do tocável”, pelo cinema, de técnicas e cortes, edições e tal. Quando o diretor Gabriel Martins fala com a namorada de sonhos de cada um e levamos a sério demais o relato dela, corta-se para o sonho dele relatado, que carrega significados tão complexos quanto (é do onírico, isso), mas jocosidade, também (para que não nos percamos em devaneios interpretativos demasiados complexos, que com certeza não são de suas intenções na criação do curta): e tudo para recontar de recriação, de reaproveitamento, renascimento, reencarnação, reespiritualização… de remix.

Há a sensível ligação dessa galera mineira – me parecendo diversa do que ocorre nas criações pernambucanas (em geral, e por serem gerações criadoras que têm a cumplicidade do período em que surgiram, por estarem transitando por cinemas que sempre buscam a invenção e, principalmente, por serem – não só eles, já que poderia citar a Paraíba e o Ceará, também – de camaradas) – com as coisas da família, dos locais de origem, com a criação e ligações de laços afetivos mais perceptíveis: diversos de seus trabalhos, mesmo buscando talvez até escapes de nós e laços, tratando por ordens diversas narrativas, por modos de operações técnicas complexas e, normalmente, bastante apuro estético, são construídos tendo como base, como caminho de andamento, as relações que são de campos mais reconhecíveis por eles mesmos.

Gabriel, aqui diversifica demais os métodos de cada compartimento do filme – um curta que parece caminhar por no mínimo três ou quatro compartimentos -: indo das tomadas “naturalistas” e claras, num início em terras ianques, sob a “Hallelujah”, de Leonard Cohen (como num retrato de viagem particularmente seu, e por seu modo de entender as coisas do mundo enorme); para conter-se dentro do lar paterno através de nuances e luzes bem mais agasalhantes, abrigadoras (com a leveza dos atos e o reconhecimento do terreno facilitando o trânsito), onde suas lentes atentam mais calma e placidamente, pouco deslumbradas e bem seguras, para todo um mundo de constituição e onde a religiosidade e questões do tempo podem estar contidas na figura de santos ou da antiga tartaruga, e mesmo na criação de elos entre isso ; extrapolando o próprio modo de captação para valer-se de filmagens dos pais em outros momentos, ao seu (deles) modo de entender esse mundão que também interessa ao diretor lá no início; e ainda (sem que eu tenha a certeza absoluta de que o filme se contém nesses quatro compartimentos ou pode ainda ter se valido de mais outros) quando finalmente faz de sonhos relatados os parceiros mais justos ao que se é possível obter em edição, indo para além de ditos sobre as coisas do mundo, da mesa posta, do cantor, para remixar tudo que lhe há de informações e compilá-las em criações visuais.

Talvez o diretor tenha tido ainda mais ideias do que muitos suporão alcançar quando virem o curta, tentando mil elucubrações sobre referências e reverências: já que de maneira justíssima é obra que se permite o embarque de olhos fechados, e já que tem gente que adora parecer querer encontrar ouro em cada migalha solta. Ou talvez não: querendo “somente” cumprir essa sina desses mineiros de suas cercanias, falando do que é de seu afeto e proximidade, de suas coisas e diversos amores, com simplicidade de olhar, jocosidade sutil, e muito apuro para costurar tais sensações: uma reapropriação de muitos elementos comuns.

O Completo Estranho, de Leonardo Mouramateus (FIC, 24 min/CE)

Leonardo Mouramateus é um garoto ainda. Faz muitos filmes para sua idade. E tem imaginação, já que não repete nem fórmulas, nem assuntos, nem manejos. Talvez repita uma assinatura justamente na jovialidade de seus personagens. E é de juventude que conta aqui. De um momento fugaz, que se dá entre uma cena de amor e uma festa num apartamento de desconhecido. E novamente oferece um trabalho bem filmado, que se vale demais das luzes e sons (sim, também é bom na opção de deixar com que o som de balada eletrônica invada a sala de cinema), para criar ambiente que revela domínios basicamente frequentados pelos de sua idade.

Mas é de resultado mais contido esse: se bem que tão amoroso nos relacionamentos citados como os outros seus. Tanto quanto consegue nessa contenção na qualidade – comparativamente – passar a impressão de que novamente conta sobre fatos reais que passaram por sua vida ou próximo. Enquanto é abandonado o virtuosismo das cenas de dentro do apartamento, dirige as atenções para um recanto de solidão, de isolamento em meio ao caos, onde é possível se falar de reconhecimento, de histórias e desejos. De todo modo, há um diretor instigado por ali.

Quinze, de Maurílio Martins (FIC, 25 min/MG)

Com tocada leve nas imagens, de captações certeiras e com iluminação muito pouco manipulada até a última sequência – essa sim toda planejada para criar o ambiente perseguido (não que as outras não fossem, mas eram em busca da manutenção realista dos momentos) -, onde as atuações ganham raro destaque pela leveza, não afetação, naturalidade, conseguidas, e drama dos mais cotidianos sendo o mote de condução, Maurílio Martins fez Quinze num clima que criou a sensação de imersão total (cumplicidade do espectador para com as mulheres de lá) nas vidas rolando em tela. Raros os trabalhos no tamanho de um curta que conseguem se valer do caminhar linear, da história contada, da vida quase comum, que não pareçam ao final retalho de longas, peças que remetam a trecho arrancado de umas histórias mais amplas, com jeito de arrancado mesmo.

Valendo sempre lembrar que conseguir naturalidade no cinema talvez seja mais complexo do que as obras que se valem do artificialismo como o que as conduzirão, que isso exige tanto ou mais atenção nos pequenos detalhes, desde a edição aos modos como os momentos serão filmados, e das atuações que deverão ser peças justapostas, fundidas, não coisas aparatadas e, após, coladas na marra, de/em um todo que terá de ser mais fluido, mais perceptível como da vida. Curta que conta a história de uma mulher das mais comuns – dessas que a TV cria para entupir os setores de coadjuvantes das novelas -, mas que na realidade tem de comum mesmo o que a vida exterior faz aparecer: já que ama e sente desejos, já que se esforça para viver e falha na hora de ter de ser da instituição (das que devem dinheiro, que têm dúvida se incertezas na hora de obtê-lo, que preferem viver outras realidades, mesmo tendo de sustentar uma filha que se prepara para a festa de debutante), já que anseia, ainda, e não só se conforma em ser peça de decoração.

Maurílio arranjou uma atuação rara de Karina Teles, conseguindo com que esse quesito merecesse tanta importância na qualidade quanto as ações técnicas. Méritos para ambos, que souberam, uma se entregar ao desejado, e outro, aproveitar com as captações e a edição sua entrega. É bonito (pela história e pelas imagens naturalistas), engraçado (por momentos entre mãe e filha e por alguns coadjuvantes – por falar em coadjuvantes – que são da turma do diretor aparecendo ao longe), e bem montado (principalmente quando após todo o processo de situações e quadros mais “comuns” embarca em momentos sob luz de velas coloridas, para desembocar numa cena final linda e toda tratada pela iluminação, que inicia com bela tomada em aproximação para encerrar no meio da rua sob papéis laminados e chão molhado).

Vento Sul, de Saskia Sá (13 min/ES)

Vento Sul é desses filmes totalmente ligados sentimentalmente a algum local – no caso, aqui, à cidade de Vitória -, que talvez até toquem um tanto a mais os habitantes desse local, mas que podem parecer peça totalmente descartável quando observados desrespeitando um tanto de qualidade no que diz respeito ás manipulações que a arte exige. A diretora Sáskia Sá (sua personagem) aparentemente retorna à sua cidade, mas com elementos narrativos de matiz juvenil (no sentido pejorativo do que pode significar juvenil), como que querendo falar desse retorno, mas com pouca ida ao mudo mais adulto: isso quando se atenta aos ângulos e modos de captação, que por vezes se atrapalham, e mais ainda diante de edição incorreta, que tenta fazer do sentido da observação de trechos da cidade algo que seja absolutamente ligado à sua (dela) existência ali, nessa volta, nessa passagem, criando a impressão de diário muito particular; isso no texto que por vezes é falho, por vezes é fraco, que até tenta numa discussão sobre sexualidade e opções algo de estofo, mas que soa mesmo a arremedo de ideias específicas mas com pouco “foco” (panfletário nesse sentido), que pode não encontrar sua razão de existir diante do público, mesmo mostrado sob olhar que tenta. E tenta, também, ao menos triscar riquezas pretendida pela sensação das saudades: mas sem o alcance ideal.

O Arquipélago, de Gustavo Beck (DOC, 28 min/RJ)

” Pela coragem em ser radical no plano-sequência de quase dez minutos no início – que parece não tratar de nada mais relevante do que da ‘vida’, afinal. Pela beleza da cena da mãe e filho andando na estrada ao lado da floresta. Pelos bichos sendo observados placidamente pela câmera no final: e suas reações e interações Por apresentar uma família, sem necessariamente criar mecanismos outros que não o da fluidez natural de suas vidas e tempos. Sofre o drama de ter quase meia hora de duração, mas todos os segundos tremendamente bem aproveitados”.. Fazendo parte de uma comissão de seleção neste ano deparei pela primeira vez com esse mais recente trabalho de Gustavo Beck: diretor que pouco se importa com caminhos facilitadores para que se admire suas obras, e que invariavelmente faz da observação do ser humano seu tema de repetição, mesmo que isso não seja a primeira coisa que salte á lembrança quando pensamos em sua obra. Havia um espaço para possíveis e fugazes justificativas sobre ter aceitado ou não o filme, e o pequeno textinho de acima foi o que constatei ter escrito no momento da visualização.

Indo um tanto além nesse instante de tentar palavras a respeito do trabalho, agora revisto em tela grande e tudo mais dos conformes, e alertando para que a primeira coisa que salta á lembrança quando se pensa na obra do diretor é a definição “radicalismo”, fica mais evidente que o não dizer a mais nas primeiras sensações tem muito a ver com o modelo de cinema praticado por Gustavo, que especialmente nesse aqui se completa por si mesmo, se contando e às intenções dele de forma muito nítida – apesar de parecer que não – e direta. Porque se poderia dizer da opção pelos quadros, que são evidentemente definidos previamente e com pouquíssima movimentação das lentes por quase todo o percurso para a valorização dos seres e objetos que os entornam; porque se poderia falar no diafragma aceitando a luz mais chapada (quase esbranquiçada) por quase todo o tempo – já que estamos no Rio de Janeiro, de luz naturalmente chapada, que pode ser o “mote” também dentro dos ambientes fechados – e que só ganha sombras na floresta e na estrada do zoológico, quando se sai da observação basicamente humana para a dos animais; porque se poderia falar de uma vida que ganhou outra chance após deixar o Chile em tempos de ditadura ferrenha – Álvaro o fotógrafo que busca o Brasil e tem de passar por um novo momento em tempos em que os jornais param de circular, dependendo menos e menos de fotógrafos como ele – observado no filme em instante que é metafórico de sua vida e comportamento; porque se poderia dizer que é bastante sagaz a ideia de retirar do ser humano isolado pelos tempos a expressão “ilha”, para em tempos atuais, de tanta informação e ruídos alcunhá-lo como parte de um arquipélago, onde todos estão sempre próximos, e de alguma maneira ligados – mesmo a contragosto…

Mas seria desenvolver sobre temas que se entregam por si, pelo filme, pelo relatado e placidamente mostrado. Obra que pode parecer radical, mas está bastante distante disso, na realidade, já que flui e permite ver o humano em diversas de suas questões e momentos, como parece apetecer ao diretor.

LONGAS-METRAGENS

A Vizinhança do Tigre, de Affonso Uchôa (DOC, 95 min, MG)

Quando A Vizinhança do Tigre inicia, revelando um mundo em que a pobreza e a vida de periferia incidem de modo agressivo e imperante sobre seus personagens, um certo receio de que estaremos diante de um trabalho à sub-Dumont em início de carreira (com seus personagens reais das periferias imigrantes francesas se reinterpretando), ou a parecer sub-Pedro Costa (que também trabalha por periferias imigrantes, mas, no caso, os caboverdianos em Portugal, só que numa chave de composição bem mais complexa, pois a rerepresentação se dá sem a firulação, sem a recriação – algo que confere ao diretor português um posto de raridade no cinema atual) toma a atenção e leva à desconfiança. O filme em seu primeiro trecho se vale demais de atitudes exacerbadas, como se impostas aos seus personagens para causar a sensação de reforço de como são entes despregados da sociedade, sem nenhuma atenção e que, portanto, a enxerga como inimiga máxima, indigna de suas admiração ou sequer de súplicas por mais atenção. Tais instantes iniciais, portanto, passam a impressão de serem chupados dos outros, para que o futuro do trabalho tenha muros mais sólidos onde se amparar.

Porém, o porvir revelará que há nesse filme daqui (definido na ficha como documentário, mas que poderia ser melhor classificado se o fosse por “híbrido”) vida própria, caminhos inéditos, modo de encarar as diversas situações semelhantes sim às dos dois diretores citados acima (pois é de vidas semelhantes que todos tratam), mas com muita personalidade própria emprestada pela direção rara de Uchôa. E isso se confirma com o andamento, por jamais deixar de lado pequenas questões, pequenos atos, em favor de “somente” grandes instantes, o que nos aproxima dos personagens/gente de modo muito mais cúmplice do que apiedado ou somente observador: de cima. Por trazer momentos intensos de interação entre duplas, normalmente, como se fosse uma aposta (certeira) na possibilidade de mais empatia e cooptação quando se pode notar com mais clareza cada modo de agir e ser quando o foco se atém sobre menos pessoas por vez.

Situação imaginada que acaba por permitir que todos os que entrarão em cena pelo decorrer terão seu tempo de explanação de reconhecimento, permitindo maior dissecação, o que levará a notar o quanto cada um pode ser um, particular (seres individuais, cada um com suas reações e trajetos). Ele não trata de uma massa isolada, de um grupo chutado para escanteio (somente): atenta a diversos de dentro dessa massa com grau de importância e atenção espalhando-se mais do simplesmente a um em especial. Se fez um filme onde observou pessoas com atenção por tanto tempo, seria injusto ter somente um eleito.

No caso, os seres que serão os perseguidos pelas lentes de Affonso Uchôa por quatro anos (entre 2009 e 2013) são daqueles imigrantes sociais, pois naturais de onde habitam mesmo, mas frutos de exclusão que os faz serem quase estrangeiros desamparados por uma instituição (o governo) que os nota como se fossem estrangeiros invasores e usurpadores do pouco que restaria para os outros. O diretor vai à periferia de Contagem (MG), no bairro Nacional, dando . atenção maior a Juninho, Menor, Neguinho, Adilson e Eldo. Mas não se esquece da mãe do mais velho – que será o mais atingido pelos impactos todos – que numa tocante cena reza e benze a água que dará para o filho beber pedindo Jesus e Maria o protejam . Cena tocante que parece quase um OVNI (quase, mas não a única) diante de sucessões incrivelmente boas, onde transparece o apego de alguns pela violência (na realidade não apego, mas a compreensão de que ela é natural em seu meio), ou o lado infantil na “caça” às frutas, ou ainda no nos momento de conversas em que uns fumam maconha de forma natural enquanto os mais novos parecem ainda só crianças em crescimento… A cena do skate dado significa que uns se preocupam com outros, mesmo parecendo impossível, mas como um tapa na nossa cara, que nunca nos preocuparemos pra valer; as de música bastante boas, sempre; o instante da tinta na cara e no cabelo extremamente hilário (e porque há infância e inocência teimando em resistir naquelas mentes); o da ida embora de um, o bilhete, sua imagem fora de lá, para um final já em 2013, com alguns andando de skate nas ruas (ligação linda do tempo que passou, do que presenteou porque se preocupava com o mais novo). Rara persistência essa a de Uchôa; rara sua sensibilidade; rara sua antevisão e mais rara sua obra.