AOS GRITOS DE “FORA TEMER”, COMEÇA O 44º FESTIVAL DE GRAMADO.

Urgente e imprescindível, "Aquarius" é longamente aplaudido.

Por Celso Sabadin, de Gramado.

Havia muitas expectativas pela noite de abertura deste 44º Festival  de Cinema de Gramado. Expectativas políticas e cinematográficas. Por um lado, havia sido anunciado – sem muito alarde, é verdade – que o Ministro da Cultura do governo internino-golpista participaria da solenidade, o que por si só já gerou um certo clima de tensão. Por outro lado, o filme escalado para abrir o festival era “Aquarius”, exatamente o pivô de toda esta polêmica sobre a ilegitimidade da comissão que a Secretaria do Audiovisual está montando – ou tentando montar – para escolher o representante brasileiro para concorrer ao Oscar 2017. A noite se prenunciava quente.

O Ministro interino-golpista, como tem sido marca registrada deste patético desgoverno, acovardou-se. Optou por fazer seu discurso duas horas antes do horário marcado para a abertura oficial do evento, e mesmo assim na Rua Coberta, do lado de fora do Palácio dos Festivais, para um público primordialmente formado por turistas que não pareciam compreender exatamente quem era aquela pessoa tão deslocada por ali.  Pelo menos ele foi coerente: ficou do lado de FORA, como cabe a esta tropa. Mesmo porque, se tentasse discursar dentro do Palácio do Festivais, não conseguiria: havia um clima francamente hostil ao governo internino, do lado de dentro. Antes mesmo de Sônia Braga receber sua homenagem (belíssima, por sinal) e seu Troféu Oscarito, parte do público já  se manifestava com  vigorosos gritos de “Fora Temer”, “Golpista” e outros menos publicáveis. Cada vez que aparecia na tela alguma menção ao Ministério da Cultura ou mesmo o logotipo do governo interino, a plateia reagia ruidosamente.

Quando a equipe de “Aquarius” foi chamada ao palco para apresentar o filme, o diretor Kleber Mendonça Filho, elegantemente, disse se tratar de uma história de resistência, de luta pelo que se acredita, com democracia. A simples menção da palavra ”democracia” detonou nova reação no público.

Acalmados, finalmente, os ânimos, teve início a projeção. Assim como já havia acontecido em “O Som ao Redor”, o trabalho anterior de Mendonça, “Aquarius” também abre com imagens do passado. No caso, fotos em preto e branco da orla do Recife num tempo no qual a especulação imobiliária ainda não havia destruído parte da cidade. Tudo ao som da música ”Hoje”, de Taiguara, um forte ícone musical dos anos 70.

Assim como já havia acontecido em “O Som ao Redor”, “Aquarius” começa envolvendo o espectador lentamente, aos poucos, sem sinalizar os caminhos que percorrerá, misturando aqui e ali pistas falsas e verdadeiras do que será abordado, e talhando uma nunca menos que magnífica construção de seus fascinantes personagens. Paulatinamente vamos conhecendo Clara, mulher forte que transita com desenvoltura entre o passado e o presente. Que curte com a mesma intensidade tanto as descobertas musicais que o sobrinho lhe disponibiliza em formato digital, como sua invejável coleção de LPs em vinil. Muito bem resolvida, Clara exibe invejáveis equilíbrio emocional e beleza física de quem soube passar pelo tempo com sabedoria. Como ela própria diz, diante de uma grande contrariedade, ela pode até “ficar puta; mas estressados ficam vocês”. Direta e honesta, a protagonista levanta a bandeira da cristalinidade que seu próprio nome representa. Será justamente contra ela que se posicionarão as metralhadoras giratórias da ganância, do poder econômico e da livre concorrência. Como se fosse um edifício antigo e ultrapassado, Clara também precisa ser demolida, pois representa uma ética que não encontra mais lugar nos novos tempos do Deus dinheiro. E estorva os caminhos dos novos donos do poder.

Assim como já havia acontecido em “O Som ao Redor”, “Aquarius”  tem uma direção hipnótica, recheada de detalhes, olhares, inflexões de vozes que conquistam o espectador que, quando menos espera, se vê atrapado até o pescoço na trama proposta. Bem dosados, alguns enquadramentos, movimentações de câmera e inserts de imagem pouco usuais tiram o público de sua zona de conforto sem nunca correr o risco de cair em maneirismos gratuitos. O filme ainda arrebata com  um final catárquico que aqui em Gramado rendeu longos minutos de aplausos entusiasmados. E merecidos.

Novamente, Mendonça cria outra obra imprescindível para a filmografia brasileira, discutindo com criatividade temas urgentes da nossa sociedade divida.  Assim como já havia acontecido em “O Som ao Redor”. .

Celso Sabadin viajou a Gramado a convite da organização do Festival.