“BRANCO SAI PRETO FICA” É DESTAQUE NO FESTIVAL DE VITÓRIA.

Já que resolvi me aventurar em pitacos – breves, porém sempre invasivos, como é sempre, aliás, o exercício crítico – sobre os filmes capixabas que abriram o festival de seu estado de origem, mesmo sabendo que isso por vezes pode parecer falta de educação prum convidado, como eu, aqui, insisto um tanto nesses comentários ligeiros que dediquei á produção local, novamente instado a fazê-lo após assistir a mais uma rodada deles aglutinados: interessante lembrar que há outros diversos trabalhos locais espalhados pela programação, mas como não estão “em turma”, como estão avizinhados por distantes deles, sinto-me um tanto menos indelicado no caso de ser mais chocante na opinião dedicada a desses. Brincadeiras à parte, é realmente real a sensação um tanto invasora que me toma em eventos onde a produção local ainda não tem bagagem carregada, ou casca mais grossa, onde pode estar engatinhando ou conter fragilidade por falta de possibilidades, espaços, incentivos mais longevos… Nem sei se seria o caso de sentir certo incômodo nesses instantes, se isso bate da mesma maneira em outros companheiros críticos que frequentam festivais com tais características, mas o fato de estar sempre botando minhas opiniões e a cara à mostra, quando outros jornalistas agem com coberturas de outras matizes, de outras nuances e alcances, sempre me deixa em evidência a partir de um dado momento dos eventos, quando passo por uns instantes a ser o alvo da atenção dos realizadores, que nem sempre ficarão felizes, que por vezes poderão sofrer a mais do que isso – isso da crítica, do pitaco – mereceria.

O tempo já bem alongado em que frequento eventos de alguma maneira menores – não menores especificamente no tamanho e nem na importância que cabe a cada um diante de suas ambições – me fez notar também que há certa importância nessa minha obsessão, e que a passagem dele (o tempo) quase sempre acaba por estabelecer boa relação de trocas e aprendizados mútuos (o crítico e o realizador conseguindo perceber mais importâncias e variantes, cada um em seu ofício)… mas confesso que ainda sinto tensão e certo abatimento inicial diante das notícias de que realizadores leram minhas críticas, para trabalhos muitas vezes iniciais.

De todo modo, pau que nasce torto morre torto e cá estou eu de novo, tentando ser ligeiro como ontem para contar da sessão Mostra Outros Olhares, com documentários locais. O melhor é que todos eles trataram de coisas do estado, de manifestações culturais, de locais especificamente marcados por atrair e agradar pela natureza, e até com falando de futebol, intrometido: melhor porque, mesmo com suas dificuldades e problemas – dois eram muito bons, ainda mais -, acabaram por cumprir uma das possibilidades que docs deveriam exercer, que é a da definição de traços e características de alguma região. Nem dá para falar mal demais dos que não foram tão eficientes porque todos, aglutinados, acabaram por auxiliar essa infeliz figura travestida vez por outra como crítico a compreender melhor algo daqui.

Mulheres do Congo, de Sandy Vasconcelos, e O Bom da Brincadeira, de Ricardo Sá, cada um ao seu modo acabam trazendo uma realidade festiva e tradicional daqui que realmente nem é tão sabida e conhecida pelo restante do país, principalmente em se penando na congada como lago de tamanha potência e antiguidade local, já que o imaginário de quem já ouviu ou conhece algo da manifestação/festividade remete às Minas Gerais. Pelos documentários, uma certa percepção dos “estrangeiros” de que o espírito Santo tem muito de Minas Gerias reforça de maneira considerável: na caracterização dos ritos que são da mesma “pegada”, na integração entre brancos e pretos de forma aparentemente de forte comunhão em torno do evento, acabando por remeter, automaticamente, a pescarmos sotaques e trejeitos que confluem e similarizam muito mais perceptivelmente através do que vimos e ouvimos vindo da tela do que no cotidiano daqui, no dia-a-dia desses instantes de reconhecimento. O filme de Sandy, como já se nota no nome, entrega preferência à atuação feminina nesse rito de misturas (é África, é Brasil), e tecnicamente vale-se de muitas imagens de arquivos, que por um simples truque caminham paralelas e em sutil fundição com momentos de depoimentos e músicas, funcionando bem como doc que explica, sem nenhuma ousadia a mais: mas justo dentro do que pretender dizer. O de Ricardo, ganha a curiosidade de ser trabalho de longo tempo (para falar do “Congo Roda D’Água”), quando notamos imagens de que iniciam com captações em 1992, passando por 2002 para chegar nos mais recentes 2011, 2012, e quase tudo com momentos tomados pelo próprio diretor; interessante sempre esses trabalhos que atravessam os tempos e que num momento podem gerar, juntos, outra obra, pois conferem atenção autoral de desapego, de evitar pressas e urgência demais em finalizar o que se quer contar – tecnicamente desagrada um tanto o modo de divisão da tela usado em alguns instantes, pois prescinde da habilidade e tranquilidade para o colhimento das imagens em favor de desnecessária “pressa” no que a edição pretende mostrado em tela.

Outro filme que fala da região, que nos revela Vitória (e o melhor dos documentários da sessão) é Ilhados, de Wayner Tristão e Lucas Bonini, em seus tempos, transformações, mar, peixes e pescadores. Meio que à maneira de denúncia à especulação imobiliária que se fez mote na produção recifense dos últimos anos, os diretores buscam na figura de um pescador que tem de viver sob uma das pontes da ilha (aparentemente um enorme e concreto agravante ao que era comum por aqui há não muito tempo). E são precisos no que querem dizer, mas construindo filme que se vale de ventos, de suaves desfoques, de música que cresce a partir de dado momento (“Expurgação”) para acabarem mesmo entregando algo que tangencia o drama (é de dramas, perdas e deslocamentos que falam, afinal): algo que, mesmo falando do que nunca queremos falar,é feito com qualidade arara de cinema – eles constroem um filme aqui. Baía de Todos os Santos, de Claudino de Jesus, também fala das transformações da cidade, mas utilizando padrões mais comuns ao que é da confecção documental: com alternância entre depoimentos e imagens de arquivo, constituindo com o total da sessão para bom apanhado dinâmico do que é e de onde surgiu essa cidade e suas pessoas nos tempos atuais – se fosse trabalho exibido só, solto num outro instante, seria menos “relembrável”, mas aqui é peça.

Hegli Lotério fez Anchieta, o filme mais despretensioso, mais intimista, mais divertido e solto da sessão. Fala do clube/time Anchieta e de seu pais na relação com a entidade: colhe depoimentos de amigos, reverencia a figura paterna e sua relação com todos que conviveram com ele – básico assim, mas falando de futebol, que é algo sempre pertinente demais quando se quer falar de locais e suas coisas. E indo mais às serras, às altitudes do estado do Espírito Santo – para desmistificá-lo como região da moqueca e torta capixabas -, Léo Gomes fez Tramas, com certeza o trabalho da sessão com mais aporte, mais dispendioso, bastante comum na forma narrativa imaginada, mas também direto e agradavelmente didático no que explana: e muito se explana lá dentro, como as coisas ainda existentes/lendas/crendices do interior (as histórias contadas dos lobisomens são geniais), como momentos dos tropeiros (sempre lindas essas histórias das tropas e sua importância), para finalmente deter-se por muito mais tempo na Serra do Caparaó, suas pousadas e jeito de lugar alternativo, frio e tal (instante em que o filme acaba parecendo um tanto a mais peça de propaganda) – é comum e correto nas captações das imagens, mas com ótima qualidade, tanto quanto o filme da sessão com melhor captação de áudio (algo que atrapalhou a compreensão nos outros trabalhos).

CURTAS-METRAGENS

A Cor do Fogo e a Cor da Cinza, de André Felix (DOC, 23 min/ES)

Não há tremendos equívocos em A Cor do Fogo e a Cor do Cinza. Mas, muito mais distante de ter acertos, o que vale mesmo seria o fato de um assunto de pouco conhecimento ter conseguido sua vez de vir a público mais ampliado, fazendo com que uma das possibilidades/função/etapa dos documentários fosse cumprida. Agora: até que ponto tal curiosidade pode ser vista de modo diverso daquela que impõe certa suspeita quando assuntos absolutamente familiares são levados à tela? Se for o caso de se aceitar que assuntos de qualquer monta podem ganhar seu espaço, em tempos em que tantas produções ganham espaços (que também são tantos, afinal de contas), então se passa a uma outra etapa: que é a de questionar se isso foi feito de modo bom, se a construção respeitou a arte ou se teve algo a mais de ousadia?

E tanto quanto pode ser curioso ver o momento em que Wagner arma suas novelinhas e programas com figuras recortadas em papel, como num jogo de crianças que brinca só, numa dessas periferias desamparadas da vida (e que se entenda “periferias desamparadas” como algo que pode referir mais do que somente a campo físico de habitação), tanto quanto o momento em que se vê diante da chance de dirigir gente de verdade (numa proposta para testá-las , já que são as novelas que o incentivam, os melhores momentos do doc), fica a questão sobre se vale mesmo a pena estar assistindo a A Cor do Fogo e a Cor da Cinza. E a resposta que fica piscando na mente surge com dúvidas entre o acerto da proposta e questões sobre relevância.

La Llamada, de Gustavo Vinagre (DOC, 20 min/SP)

Retratar Cuba, sempre e sempre parece ser um bálsamo para quem ainda imagine um lugar que seja como de moral de outros tempos, de maneira de pensar antiga mas plena de razões e de confiabilidade: e quase sempre deveria render filmes de muita atenção. Essa ilha, que ainda mantém em seu modo de vida algo de pureza, de crença, de vinco com amizades e reações espontâneas de tristeza que se nota somente nas crianças, nos dias de hoje, pelo mundão rendido fora de suas fronteiras. Local em que isso das fronteiras pesa mais do que em nenhum outro: isolada dentro delas pelo mais insano embargo da história humana (que gerou isso de manter honestidade antiga entre os que permaneceram dentro delas, e que causou uma certa sensação de tristeza constante, pela ausência e incomunicabilidade dos que resolveram que deveriam sair para fora – delas) .

Gustavo Vinagre (sem que eu saiba ao certo de sua ligação com Cuba, para além da Escola de Cinema, mas notando que dedica esse seu curta a alguém com seu sobrenome, o que faz intuir ser seu pai o homenageado – isso não importa tanto -, até pelo desenrolar da história, pela destinação de seu envolvimento com o velho Lázaro Escarne, dono de um armazém que só se imaginaria por lá nos dias atuais, ou nas periferias do Rio de Janeiro de algumas décadas “ayer”) criou A Chamada como uma metáfora que eleva diversas formas de fronteiras como as que o conduzirão por seus lindos e raros caminhos. Sim, porque o que se encontra no curta é de raridade e beleza única, antes de tudo (ou melhor, após: pelo que resta em nossas retinas, memória, sensações): não consegue escapar da lembrança o diálogo sentido de Lázaro com o diretor próximo do final, no instante em que a ficção se faz presente de forma mais evidente, e que o pega de improviso, atingindo-o no mais dolorido dos seus sentimentos.

E quando falo de seu trecho mais perceptivelmente ficcional, deve-se notar que é justamente nessa indecisão de certezas sobre os rumos, nas “fronteiras”, justamente, que Gustavo se escora, para criar ritmo e fluidez de mesclas, de fusões de situações, de beleza do visto (a fotografia em PB, aqui, escapando do que parece ser modismo anódino nas produções atuais, tem sua razão de ser como nunca: a Cuba que não é a dos turistas de hoje, que é a das pessoas que vivem, bem, por lá, como já disse acima, parece um bastião de pureza isolado no meio do oceano, é sessentista, é PB), de invenção. Ele fala do que pareceria impensável em tempos atuais nesse trecho capitalista que é o mundo inteiro fora a Ilha, de telefones fixos ainda a serem instalados (e, já aí, logo no início, uma grande sacada que mescla câmera subjetivando verdades locais), da mulher que pode tirar a paciência do octogenário senhor revolucionário ao reclamar de uma batata com um pedaço podre (país embargado, lembremos), de um filho que o é por opção carinhosa… E tudo encarado por outras fronteias propostas, aí, por ele: porque jamais se saberá até onde o ficcional que inicia o parágrafo o é mesmo, tanto quanto há de se intuir em que momentos há as “verdades reais”. Na realidade tudo é perceptível, mas funciona de forma tão harmonicamente híbrida, com resultado tão corretos, que soa justo acachapar de encanto, pensando que há no curta diversas fronteiras para contar de alguém, dentro do local máximo que todas as fronteiras podem abrigar ainda nesses tempos atuais tão iguais – para fora de lá.

Loja de Répteis, de Pedro Severien (FIC, 17 min/PE)

Quando se ouve comentários sobre um filme (principalmente se for curta-metragem) carregar em si diversos sentidos e possibilidades de interpretação diante do mote proposto, há de se deixar evidente que talvez essa seja a melhor maneira de trânsito de uma obra (se não a melhor, com certeza a mais bem-vinda) diante das sensações do público que atingiu. Toda e qualquer obra que não tenta se fechar para pensar-se aceita para fora da concepção do artista que a idealizou leva vantagens mil, de cara: isso pode ser no mundo das artes plásticas, no das escritas e outras tantas, mas com evidente ganho de campo por ser algo absolutamente coadunante com o princípio que o curta-metragem carrega em sua gênese, que está na busca de soluções para que trabalhos de imagens e sons sejam concretizados, sem o espaço por vezes modorrento e facilitador que horas e exposição possibilitam.

Pedro Severien é diretor egresso de escola que privilegia a invenção (a pernambucana), mas que ao mesmo tempo parece bastante distante de algumas questões reincidentes na cinematografia atual de lá, criando obra que acumula filmes que nem sempre carregam sentidos unificadores de discussões: mas que carregam inventividade, ah isso sim – poder-se-ia dizer que se há autoralidade sendo construída pelo amontoado e pelo viés da inventividade narrativa. E aqui, em Loja de Répteis, partindo até de um pressuposto real, de embrião existente, partiu mais loucamente (bem-vindamente loucamente, diga-se) na direção de concretizar seu trabalho mais rico e complexo.

Rico e complexo pela abundância de matizes que obtém de forma a seduzir totalmente o espectador que atenta demais ao olhar: há ali, por exemplo, um verdadeiro quadro (como se fosse obra de arte plástica pendurada num museu) na tomada inicial, com sombras, cores esmaecidas proporcionadas pelo roubo da luminosidade que a réstia de luz faz, semelhante ao que ocorre na retina e memória do pintor quando pinta ambiente escuro e sombreado, com utilização rara dos desenhos riquíssimos dos pisos em contrapartida ao couro escamoso e de pouca variação do jacaré que será “diversas figuras” centrais pelo decorrer. Rico e complexo nos belos zooms que intercalam com as tomadas fixas partindo de quase escuros, passando pelo breu para capturar figuras alvos por diversos instantes (a primeira delas, já antecipando a repetição do procedimento, cessando num aposento em frente, após traspassar corredor), feitas em linha reta e seca, de aceleração constante: se fosse para dar uma de crítico metido a sabido poderia insinuar que Pedro as executou pensando no caminhar do jacaré pelos aposentos com alvos definidos a serem alcançados – sendo que isso não tem importância diante da qualidade visual do obtido nessas execuções.

Rico e complexo, também, na opção dos acordes musicais que preenchem os momentos maiores da banda sonora sem parecerem elementos invasivos descabidos, já que “agem” como se fossem o complemento mais natural para a estranheza do mote e para a idealização pictórica das tomadas. O curta, que não conta somente de um jacaré – há uma cobra, também, por exemplo -, cata o que é possível de elementos a solto, transita e transmite as possibilidades das figuras (humanas ou não) sendo passíveis de serem diversas, com forte carga de sexualidade, podendo ser interpretado quando da transposição de “gêneros”, na possibilidade dos toques, gosmas, sangue e fluídos interagindo com o perceptível calor que sempre remexe nos desejos e ações extremadas, e provocando, por diversas fontes, origens e destinos. Há algo mais estranho do que manter um jacaré em cativeiro?

P.S.: detalhe genial para a música “Coração Materno” e seu momento de inserção no curta.

LONGAS-METRAGENS

Cidade de Deus, de Cavi Borges e Luciano Vidigal (DOC, 69 min/RJ)

Enquanto o documentário Cidade de Deus 10 Anos Depois persegue muitos dos que trabalharam no famoso filme de Fernando Meirelles (odiado e adorado por aqui, quase que num equilíbrio de opiniões, enquanto sucesso quase sem questionamentos fora do país) para saber, ou para que o público mate a curiosidade, sobre o destino de moleques que ganharam a fama repentina vindos das mais cruéis e excludentes das periferias, algo da função inequívoca (esperada) dos documentários vai sendo cumprida, aos poucos: por um amontoado, na acumulação de dados, entrevistas recentes, e muitos trechos do filme costurados em alinhamento quase fechado (as figuras entrevistadas ou observadas nos dias atuais, sendo emolduradas por momentos em que seus personagens ganhavam destaque maior). Desde o início, em momento algum se poderá cobrar do trabalho que não tenha sido meticuloso nessas buscas e no que renderam como elementos que abastecem a tela: daria para dizer que consegue muito a mais do que falar das figuras principais, do que abastecer o olhar e os sentidos que se interessam em saber o máximo, indo a detalhes que evidenciam o pregresso, passeiam pelo maior instante de fama, e derivam para dados bastante relevantes (quase matemáticos).

A escolha por esse modelo aglutinador é algo que deveria ser pensamento vigente em quem se aventura a trabalhos de resgate, de pesquisa, de trato com o assunto “ser humano”: alcançar bons modelos para cumprir a intenção sem parecer careta na forma escolhida, e mais, sem conseguir extrapolar (não escapar, não fugir do assunto) o que faria parecer trabalho a ser exibido nas salas de aulas para alunos ainda necessitados dos fatos como matéria, costuma ser a regra. E como os diretores conseguiram cumprir tal meta, sem ficar no que poderíamos resumir como mesmice facilitadora? Poder-se-ia pensar no modo como compuseram os instantes do doc, nas opções técnicas adotadas, que derivaram para resultados estéticos bem-vindamente aparteados: se dando na anteposição das imagens do filme em si (sempre de brilho imposto, de cores impostas, em ação que buscava num “visual fingido” a maneira de dialogar com um certo virtuosismo cativante – algo bastante comum às produções da época, e que rendeu a Fernando ataques até com a pecha de ser um dourador da pobreza) em relação às do doc, que não abdicam das cores (é um mundo de cores, afinal, aquele), mas que têm luz real/realista por todo o tempo (criando interessante rompimento/divisão entre “umas” e “outras”); poder-se-ia entender o dinamismo quase de videoclipe utilizado na ficção como algo que lhe dá a velocidade do andamento, das ligas, sendo substituído pelas imagens incríveis tomadas de cima , de helicóptero, com rasantes sobre telhados e chãos (que não são filmadas por Cavi e Vidigal, diga-se); ou, simplesmente, mesmo naquilo de emoldurar os seres de hoje com o que concretizaram em diversas cenas do filme, com a imagem de seus personagens dez anos mais jovens alternando com o que resultou.

Não há excessos onde poderia capengar: os depoimentos que sempre tendem a derivar para os choros e reclamos nessas situações por vezes triscam isso, mas a produção se faz correta ao não “comprá-los” como as ideias motivadoras; um início que poderia parecer louvação ao modelo da ficção, também não se concretiza assim (até citado acima, nos moldes técnicos que os diferenciam, e pelo que o decorrer do trabalho levará a notar); e sem endeusamento da pobreza (principalmente da que resta após a fama) ou ataques gratuitos aos que fizeram a obra de sucesso (só dados que parecem elucidar por si, sem necessidade de pirotecnias para tal).

Por ser filme bastante questionado, por algumas (lendas ou não) opções de Meirelles no trato com essa galera que vinha da pobreza e da ignorância quanto a assuntos relativos a faturamento e que tais, os mais antenados ficam sempre de olho para saber “verdades” que faltam na hora da especulação por parte da grande imprensas ou órgãos coadunados: e Cavi/Luciano, habilmente, e até optando por um certo didatismo na construção (os que fazem a obra derivar das alegrias e coisas mais informais, no início, para os dados mais acachapantes em busca da catarse), no crescendo das situações e a escolha da ordem dos entrevistados, imprimiram ritmos que fazem com que as variações de elucidações, aglutinadas com a consciência da exclusão do negro (ainda bastante notória) no trecho final bastante importante e de viés raro (onde se pode notar a questão da exclusão do que é da favela, pela cor, por raramente ser filho e pai conhecido, pela violência que entorna mitologicamente a região), desembocassem num trabalho que varia de matizes, é importante, sem jamais permitir um só modo de olhar.

Branco Sai Preto Fica, de Adirley Queirós (DOC/FIC, 93 min/DF)

A estrutura básica de Branco Sai Preto Fica é simples e facilmente identificável: são três núcleos que caminham paralelamente, dos quais em intui-se que após um trecho de suas trajetórias em tela terão destino que em algum instante se cruzará. Nada mais simples do que contar histórias que se cruzarão forçosamente, dando a cada uma seu quinhão de tempo para que se expliquem, para que o espectador se acostume: certo? Nas mãos de Adirley tal simplicidade mantém o status mesmo, mas as ideias embutidas para cada lado, para cada vértice, surgem como explosão criativa, como modos de revelação que somente num instante já próximo do final ganhará uma veloz faceta de depoimentos sobre ocorridos. Tal construção evidencia seus personagens em seus afazeres comuns: um como uma espécie de radialista que conclama e canta, que toca músicas negras sempre muito boas, que age com a malemolência necessária ao que as letras dessas músicas exigem, que anda de cadeira de rodas; outro, com sua perna mecânica vive de tentar melhores pernas, de pesquisar de ajudar outros amputados; e o outro, um estranho sujeito vindo de outros tempos. E siga-se com a história.

Mas, antes de seguirmos: Adirley propõe para referendar e botar potência nisso da exclusão, do apartar, uma brincadeira (nem tanto) que situa a ligação das duas cidades como que vigiadas por uma polícia especial, exigindo passaportes para a entrada legal dos ferrados de um lado na capital ostentosa. Isso é tão inusitado como de impacto, pela insanidade (nem tanto) imaginada. Aliás, parecendo uma reinterpretação muito mais pé no chão de Godard com seu Alphaville: momentos que rendem belos visuais na estrada: como somente um exemplo do apuro que o diretor preza pelas boas captações. Passaportes podem gerar mais clandestinidade, moeda de troca… Azar de quem os impõem.

Com a entrada de diversas fotos antigas (todas muito bonitas e significativas) – oitentistas – do clube Quarentão, lá da Ceilândia, começa-se a intuir sobre o que tratará a base da história, num filme híbrido, na mais completa acepção do terno em tempos de cinema atual: e passa-se a entender que os defeitos físicos dos dois negros de lá – Marquim Shokito e Dilmar Durães -, foram originados de um mesmo momento, de uma situação que evidencia de forma oficial o quanto os de lá são quase coco para os de cá. Um vive das recordações e da acumulação de músicas que incomodam aos de cá (ou os de Brasília, ou os “brancos”), para que a partir delas se faça a justiça. Personagem ágil e esperto em sua vida real, que empresta ao filme as características principais para a agitação: e tome música boa no vinil, e tome música engraçada “ao vivo”. O outro segue a vida, como que sendo obrigado a viver e acostumado com seu defeito, mas buscando melhores condições: até que esses dois lados da questão tornam-se parte da peça importante de compreensão que vai bem além do documental.

O sujeito que é mandado de um outro tempo para ver, resolver, obsevar, é “capturado” pelos atos dos “revoltosos” (o terceiro vértice), nos momentos dos engendramentos, com suas músicas interferindo diretamente nos locais onde ele se encontra à espera: e são belos visualmente, com truques simples de globo de luz refletindo nas parede de aço de um contêiner; e são de impacto visual nos instantes dos trilhos do metrô como os caminhos utilizados. Aliás, vale alertar para a significação mais palpável dos trilhos e do metrô em si, como o meio de ligação, da Brasília que exclui, com a Ceilândia, excluída: num dado instante, apesar de ser a metáfora temporal de distâncias e segmentações, ele grita contra as ações mais comuns das pessoas que fazem parte oficial do sistema que afaga, metendo a religião na história, e até grafiteiros…

E o diretor propõe a invasão, o mostrar a cara e a necessidade de seu povo gritar e se impor. São eles todos os “negros” de um país que finge e que afaga, impedindo, por conta de nossos traços herdados da “lusitaneidade gentil”, sempre, a sensação/necessidade do confronto: sempre fingimos (e de certa forma até conseguimos mais verdades nessa relação, quando comparados a outros povos) irmandade aos nossos excluídos, atitude que os impediu de reagirem, pelos tempos, como fizeram os negros ianques, por exemplo – já que lá, o modo anglo de ser constantemente mostrava na cara, sem firulas ou passadas de mão nas cabeças, que não consideravam mesmo os seus excluídos no mesmo patamar de respeito. Só que gênio que é, fino no trato da observação e das relações, a proposta que Adirley imagina de invasão da Brasília se faz do modo mais justo e assustador para essa burguesia que cresce de modo estranho no país (até indo na contramão histórica do falso trato gentil, sem máscaras e com os dentes brancos bem mais escancarados): é a invasão que se dará pelos terrenos da identidade, do que marca as diferenças, do que faz com que os da capital ataquem esses das margens da cidade (não é de se contar, seria injusto: é de se ver – mas tem sonoridade envolvida). Quem conseguiria propor o necessário confronto da maneia como foi feito no filme, aqui em nossa atualidade?

E então surge outra faceta de genialidade marota, outro jeito de como fazer isso sem grana para efeitos ou deslocamentos (e os efeitos usados na deflagração desse instante final/catarse momento são os mais bem-vindamente toscos esperados, de luzes e fumaças) que encerra o momento do ataque sob traços, desenhos, numa simplificação genial e linda de procedimentos que poderiam ser extremamente complexos e onerosos: casando com o lado futurista usado para um dos vértices do triângulo. Final que arranca reações de tão diverso do que se espera acontece.

Estar vivendo esse momento em que surge um Adirley Queirós – diretor do qual comecei a conhecer a obra lá em 2009, com o curta-metragem Dias de Greve, e a quem só notei genial no ano seguinte com a verdadeira obra-prima, outro curta, que é o Fora de Campo – com certeza é das maiores felicidades que quem mexe com cinema, ou é “somente” cinéfilo antenado, pode ter. Há a percepção total de estarmos num momento histórico dentro a produção nacional, onde alguém como ele surge como um inovador, um cara que arrisca na linguagem, ousado (como foi Tonacci em seu tempo de surgimento, um culto, e que cito aqui como exemplo por ser dos cineastas mais importantes do país, pelo seu não reconhecimento dentro das camadas amplas, e pelo jeito de estupefação que demonstrava após ter visto ao Branco Sai Preto Fica, me perguntando mais da carreira do Adirley, ao final da sessão, durante a Mostra de Tiradentes, quando fiz esse texto), e que faz isso a partir de pouca matéria para trabalhar (um misto de falta de recursos mesmo e de opção: para deixar evidente de que vem, fala, e cria a partir de um mundo de isolamento social). Na tenda de exibição de Tiradentes (quando vi ao filme pela primeira vez) a certeza total de que há situações que pagam a ida a Festivais e Mostras, e de que ver o filme dele sendo aplaudido em delírio em “cena aberta” já pagou ao menos umas mil idas a outros eventos. Bem-vindo definitivamente ao campo de admiração isolado e fechado que eu e muito poucas pessoas de sorte reservam para bem poucos, meu caro.

Batguano, de Tavinho Teixeira (FIC, 75 min, PB)

Interessante a investida que Tavinho Teixerira tenta em Batguano, o filme com mais tendência ao non-sense e a arriscar algo de comédia nessa edição da Mostra Aurora: até aqui. Arriscar comédia talvez seja o melhor meio para falar de esquetes e momentos que arrancam o riso, mas que na realidade falam da solidão imposta pela vida a quem algum dia foi conhecido e não consegue se conformar com o anonimato, tornando-se figuras patéticas ao olhar do espectador que as vê retrazidas para a telona. Após performance do diretor no palco, à época da Mostra de Tiradentes (que também faz o Robin no filme, velhusco, decadente e assumidamente gay: mas daquelas pessoas que buscam o prazer como uma espécie de necessidade doentia para aplacar ansiedades que lembram a dos viciados em período de abstenção), evidentemente o espírito estará preparado para buscar no filme situações que extrapolem o comum, mas que rejeitem uma certa tendência ao hermetismo que costuma pontuar as obras dessa seção da Mostra de Tiradentes.

E ver um Batman no futuro – futuro em que a Terra vê metade de sua população morrendo, debandada das urbes para o campo (e tome metáforas aí para indicar o que Tavinho deve pensar nesses nossos instantes aqui no planeta) – com defeito físico, com a barba branca sempre por fazer, desolado e desesperançado, sempre á espera do retorno de seu companheiro de jornadas heroicas (em tempos passados) sem dúvida é ousadia que talvez só pudesse ter brotado na imaginação de algum desses da galera paraibana, sempre disposta a ir ao máximo do inacreditável. Filme de altos e baixos, que não consegue se sustentar bem por todo o tempo, mas que nos bons instantes realmente alcança acertos bacanas. Filme que esteticamente varia, com momentos de arranjos cenográficos estranhos (dentro da proposta suja, sim, mas de resultados estranhos); e um início onde a câmera avança por entre plantas,em algum parque onde há pegação, de imagens impressionantemente sólidas e bem captadas, sob tenuidade e luz noturna, com aproximação bastante instigante dos objetos e os seres que por lá se buscam.

Ousado em duas cenas explícitas de felação, onde nem Robin (Tavinho) nem as lentes imaginam pudores, entregando sem meios tons os atos para a plateia. Insano na questão do defeito do Batman, que será, afinal, a esperança do porvir. Criativo na reconstituição dos personagens e momentos do – e ligados ao – seriado: das falas do Robin no mesmo tom ligeirinho e cheias de “ginga”, ao modelo das do dublado para o português na série da TV; o carro que dirigem em busca de homens se movimentando para as lentes, mas utilizado o truque em que o que se move mesmo são as imagens filmadas nas telas que o entornam (e que geram um instante bastante divertido, de grande solução técnica, quando param em frente dum garoto de programa – Arthur Lins, também cineasta e que faz parte da equipe do filme -, jogando uma luz sobre ele, daquela lanternona enorme deles, do seriado, interagindo como se fosse se tocar: bela sacada); a esperança em serem recontratado pela Paramount, sempre sentados diante da TV… Se não é imprescindível, trouxe consigo a vantagem de ser o filme mais “fácil” de se ver em Tiradentes: por adotar uma primeira camada de compreensão que não exige demais da mufa do espectador (não que isso seja bom, nem ruim).

Texto publicado originalmente em www.cinequanon.art.br
Cid Nader viajou a Vitória a convite da organização do evento.