BRASÍIA 2012: “A MEMÓRIA QUE ME CONTAM” RETOMA OS RUMOS DE “QUE BOM TE VER VIVA”.

*Quarta-feira (19/09)

No segundo dia da mostra competitiva, antes, durante o dia mesmo, de calor forte, mas secura realmente impensável, o que mais ansiava era não ter de enfrentar uma noite com filmes ruins. Assim, assim, os filmes vistos não ferindo, mas não salvando (afora o curta A Cidade, excepcional, mas já visto por duas vezes anteriormente). Assim, assim, o que anda ferindo mais do que o tempo climatológico (nada do tempo como metáfora – ainda não) são as cadeiras do teatro, que este ano está sendo a sede das exibições enquanto o lendário cinema sofre necessária reforma: há gente que duvida quanto à reforma ser pra valer… não sou daqui e só vendo no ano que vem.

Hoje, ao acordar, sair ao corredor do hotel, sentir cheiro de umidade no ar e ar mais refrescado: será que ainda teremos chance? Voltando um pouco para a noite de ontem: sinto chateação em alguns festivais, onde somos muitos os da crítica e da imprensa, pois resta sempre a necessidade urgente (deles, não minha) de se discutir em alto e bom som o filme que se acabou de ver, já num fim de dia, onde se pressuporia cansaço físico e mental. Não me sinto capaz disso: acho que sou meio lesado, e penso que (mesmo dentro dessa urgência de um festival) algumas horinhas, com uma noite de sono no meio, são necessárias para que o trabalho funcione bem em meu restrito cérebro.

Como já estamos nesse dia seguinte – e ainda por cima mais ameno na temperatura e na secura – aos filmes.

MOSTRA COMPETITIVA DOCUMENTÁRTIO – CURTA

A Cidade, de Liliana Sulzbach. Documentário, cor, 35mm, RS, 2012.

Liliana Sulzbach construiu um documentário que de forma rara percorre seu trajeto como se fosse extensão factual – nas velocidade e nas sensações – das pessoas que lhe interessaram e do entorno que as abriga. Fez um trabalho onde não parece haver intromissão modificadora de sua parte, e onde o resultado do respeito demonstrado se insere de modo plácido e natural nas retinas que assistem a tudo. Plácidas também são as pessoas retratadas – todos com bem mais do que 60 anos de idade -, vivendo num mundo que parece deslocado no tempo e no espaço. Teríamos ali o retrato lúdico de um local e suas gentes que são coisa rara diante de um mundo exterior tão mais ruidoso e veloz.

Mas há um truque por trás de toda essa placidez, que se revela quando aparecem as primeiras explicações escritas para tentar situar nossas atenções sobre fatos e dados, quando já estávamos acostumados com o ritmo e crentes de que não seriam necessárias mudanças de ritmo e foco. E tal truque, ao quebrar a cadeia da acomodação – mas sem romper o ritmo tranquilo que se instalara desde o início -, modifica também e radicalmente o que se preconizava como possíveis razões do filme. E fica mais lindo saber o que se passa – mais lindo do que acompanhar o ritmo plácido de um local e pessoas lúdicas -, tanto quanto mais cativante, constatado de forma respeitosa no modo pelo qual Liliana optou a inserção das “novidades”, e na dignidade que impõe àqueles seres.

Há invenção no curta, pois se é filmada a atualidade, as imagens de arquivo que passam a existir a partir das primeiras explicações escritas também se encaixam de forma bastante orgânica ao todo (imagens nem PB de qualidade excepcional para a época em que forma feitas); há a invenção que é justa quando remete a entender o trabalho por modos simples de aceitação, sem que isso tenha advindo de inocência técnica e estética (muito ao contrário, já que o casamento das partes é fruto de compreensão dos mecanismos); e há a invenção que encerra tudo com alternância de imagens específicas (sobre indivíduos, não o todo), alternância dos tempos espaciais, e muita emoção gerada quando se nota que a vida é tão mais importante para uns do que para outros.

P.S.: a crítica feita já há um tempinho merece um adendo após o filme visto no “45º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro”, pois o constatado agora é resultado de corte novo, com 15 minutos de duração (quando anteriormente foi constatada a versão de 25 minutos… um corte de quase metade do trabalho): e, evidentemente, A Cidade perdeu tanto de seu impacto com essa decisão; restando ainda um belo curta, sim, mas com urgência imposta que fez notar o quanto ele não tinha excessos e nem “aparas a serem aparadas”.

MOSTRA COMPETITIVA DOCUMENTÁRIO – LONGA

Kátia, de Karla Holanda. Documentário, cor, digital , 74min, PI, 2012.

Nem que seja mais tão novidadeira a coisa de retratar pessoas únicas, indivíduos, isoladas, que pertencem a minorias (não étnicas, mas de apelo e opção sexual – o que por muito tempo da história moderna gerou mais rancor e apreensão do que as “diferenças” de carga genética e sanguínea) quase sempre entendidas por viés, digamos, desconfiado, a partir da percepção do grosso da sociedade. Especificamente no caso dos travestis, que para além da questão de pertencerem à esfera referente aos homossexuais, contam com o “agravante” da opção pessoal em transformarem o visual exterior em busca de identidade de capa com o sexo feminino, o que já foi considerado quase caso de execração tem ganhado espaço cada vez mais simpático ao olhar de diversos ramos das artes.

Cineastas (ficcionais e documentaristas) tem se incumbido de concretizar aproximação interessante entre “partes” sociais que por muito tempo trafegaram por vias conflitantes, quando não opressoras e violentas em detrimento dos travestis. Há cada vez mais filmes trazendo pessoas que optaram por tal modo comportamental (e reforço: quando cito “optaram”, é porque o fato da indumentária funciona num canal que me parece mais opcional mesmo) ao mundo, e isso acaba por refletir de modo interessante modificações sociais que por vezes passam despercebidas ante os olhos dos que atacam a caretice e cegueira diante de uma realidade que sempre existiu.

Tão óbvio quanto saber que existe ainda muito preconceito é termos de perceber que há muito mais compreensão e aceitação, e Kátia Tapety – de nascimento José, e para parte da família, Zezão – acaba por representar um exemplo dos mais interessantes e divertidos disso. Quando se lê que a diretora Kátia Holanda acompanhou a ex-vereadora (sim: Kátia foi o primeiro travesti a ser eleito para um cargo político no país – e note-se que isso se deu no interior do Piauí, o que automaticamente se faria inacreditável se fosse tomada a máxima de que o preconceito é crescente, e não ao contrário, já que esses interiores do Brasil, profundo são representação quase cabal de feudalismo) por somente vinte dias de filmagens, e se constata o que ela conseguiu, algumas impressões ficam afloram rapidamente. Há, antes de mais nada – e surpreendentemente pelo tempo de captação -, muito cinema nas imagens obtidas: não sabendo o quanto houve de perícia ou sorte, entre várias situações fílmicas raras, se faz necessário lembrar uma que ocorre no “Saara” (rua de comércio popular do Rio de Janeiro), quando um comerciante dá desconto automático de 5º% a Kátia, emendando para a câmera opiniões nada elogiosas sobre políticos, sendo ainda observado em momento de “arrependimento” pelo proferido, e ainda contando com a possibilidade de uma conclusão bastante engraçada quando faz gestos na direção da “compradora ilustre” (tudo obtido com levas guindas das lentes); e recordar uma outra de absoluta qualidade estética, quando o quadro toma dois ambientes numa mesma tomada (o interior da sala à esquerda com depoimento para as lentes, enquanto do lado direito ocorre cena de amamentação de leitõezinhos do lado externo), rendendo quadro raro de ser obtido; e ocorre um exemplar posicionamento para a observação, de longe, de uma estrada reta e esburacada que rende grandes momentos visuais. Três exemplos, mas há mais.

Há também nesse pouco de tempo de trabalho em campo devassamento suficiente para se notar o grau de sabedoria e esperteza da ex-vereadora, ao mesmo tempo que se faz possível notar sua origem de pouca instrução (o que somente confirma que não é a somente erudição que faz a inteligência e perspicácia); percebe-se nitidamente sua relação com diversos setores de sua família (entre acordantes e discordantes), enquanto a diretora ainda obtêm depoimentos interessantes e esclarecedores do que ocorreu a partir da opção sexual sendo exposta aos seus; fatores religiosos (com compreensões que pareceriam inacreditáveis para os que tentam segmentar o mundo entre contras e prós – os que não entendem que existem mais camadas funcionando) expostos e rendendo bons instantes de cinema; casos políticos (inclusive com acompanhamento em dia de eleição) sendo relatados; e possibilidade ainda para explanação sobre amores e paixões, inclusive com tentativas de encontros e encantamento ocorrendo diante das lentes. Para resumir: se pode-se pensar que talvez com alguns minutos a menos Kátia poderia render trabalho de dinamismo mais atraente (no sentido de fruição da narrativa), pode-se também compreender que (diante do que foi exposto) o material era tão interessante que ficou difícil para a diretora limar setores. E, ao final, restam muito mais os aspectos positivos na memória, num doc que cumpre de maneira exemplar o papel que docs sempre deveriam cumprir: o da informação que cola de modo “fácil” no espectador.

MOSTRA COMPETITIVA FICÇÃO – ANIMAÇÃO

Mais Valia, de Marco Túlio Ramos Vieira. Documentário, cor, digital, 80min, PR, 2012.

Animações em 2D (com traço e pintura no lápis, como é o caso dessa) são sempre e sempre bem-vindas: principalmente nesses tempos em que as de 3D têm tomado os espaços, deixando a originalidade de lado. E é bem bom o trabalho de Marco Túlio Ramos: correto, com dedicação extremada à quantidade de frames necessárias ao bom “andamento” de seu macaco (por vezes é comum notar animadores retirando frames para ganhar tempo de trabalho), e atenção bacana na “falsificação” dos movimentos de câmera (consegue criar sensações de zoom e câmera que se move de forma bastante convincente.

A metáfora do ser que é infeliz na mesmice do dia-a-dia, e que busca “refúgio” em alguma atividade lúdica é tema recorrente quando se imagina outros bichos para substituir o bicho-homem: Mais Valia transita bastante por esse esquema, mas como no capricho utilizado na confecção, a condução da história consegue imprimir nuances e sutilezas mais interessantes do que um procedimento de cartilha. Vale.

MOSTRA COMPETITIVA FICÇÃO – CURTA

Vereda, de Diogo Fiorentino. Ficção, cor, digital, 18min, PE, 2012.

Se é de referências que não buscam camuflagem que se nutre Vereda – há diversas e inseridas de modo que busquem parecer corpos estanques dentro de um trabalho que se suporia mais razoável se costurasse suas emendas sem abas a serem notadas – que Diego Florentino quis inflar de vida seu Vereda, talvez seja possível compreendê-lo e aceitá-lo melhor. Pois o curta se revela por todos os seus recantos algo que busca o diálogo com instantes iconográficos e mais marcantes da arte: principalmente se for possível e justo acreditar que há os filmes que buscam na arte cinematográfica a beleza mais rara da arte plástica contemplativa, se impondo às narrações e histórias.

Se, no entanto, dirigirmos nossas avaliações pensando no curta como resultado de aglomeração de conhecimento acontecidos à época da escola – mesmo com toda a beleza plástica obtida (utilização de cores esmaecidas tratadas com tremenda dignidade e respeito na edição, iluminação adequadíssima para que se chegasse a tal resultado, sobriedade ou ousadias das lentes sem que haja nítidas falhas nas captações), ou com músicas resgatadas que são de profundidade emocional e técnica irrepreensíveis -, algo de necessidade de questionamento quanto a independência mais ampla pode ser tentado. Mas mesmo em se pensando numa certa ingenuidade por não ampliação dos trânsitos das acumulações, não resta dúvida que muitos dos momentos são daqueles que grudam na retina para sabe-se lá quando conseguirem se despregar: e numa arte que é das imagens – prioritariamente -, convenha-se, isso já é para ser considerado com carinho.

MOSTRA COMPETITIVA FICÇÃO – LONGA

A Memória que Me Contam,, de Lúcia Murat. Ficção, cor, 35mm, 100min, PE, 2012.

Ao sair da sessão do novo longa-metragem de Lúcia Murat ontem aqui em Brasília, cruzei com uma das situações que mais me incomodam quando em festivais: na Van, em direção ao hotel, já se discutia insanamente sobre o filme, e de modo unânime as opiniões que ouvia eram contrárias ao resultado. Tentava me isolar, não ouvir o que era falado, enquanto novamente me questionava sobre como pode ser possível explanarem-se opiniões tão “certeiras” poucos minutos após um filme ter sido visto, sem nenhum tempo para depuração (particularmente, mesmo obsessivo em festivais, pois sou um que faz críticas individuais de todos os filmes que vejo) , sem que ao menos se durma para o trabalho se acomode um tanto…

Até porque, as “malhações” giravam muito em torno do eterno retomar por parte da diretora do mesmo assunto que lhe tem sido a marca de “autoralidade”, que é o ressuscitar os tempos de nossa última ditadura militar. Ora: quando se discute isso nos Facebooks da vida e em outras mídias, quando se faz isso num contexto de envolvimento político (no sentido de explanação das preferências políticas), muitos dos que vi criticando negativamente a opção de Lucia são dos que mais vociferam contra a pasmaceira do país quanto aos envolvidos (e quanto às não punições), invariavelmente tomando o exemplo de alguns países vizinhos (principalmente a Argentina) como louváveis para que não esqueçamos jamais aquele período.

Bem: se havia empecilho quando uma diretora faz disso seus motes (e que se compre a diferença entre ela tocar no assunto e os críticos de ontem fazendo-o: vá lá), que se notasse naquele breve caminho de volta do cinema sobre o cinema executado por ela em A Memória que Me Contam. Trazendo para a percepção particular, já no dia seguinte, e afastado do estupor ante “tanta capacidade” de opinião definitiva brotada de instantâneo: o filme é complexo ao retomar os rumos adotados em Que Bom Te Ver Viva (1989), quando a mesma Irene Ravache que comparece novamente aqui, cumpria o papel de alter-ego de Lúcia, se fazendo centro de discussão sobre o tema, e tentando percebê-lo como objeto que a angustia demais (é óbvio que a diretora ainda mantém aquele momento de maneira forte e presente em seus pensamentos), mas passível de ser objeto de cinema.

A impressão que fica agora é a de que o que se tentou dessa vez – para além da evidente tentativa de expurgação -, é um filme desfecho a essa jornada da diretora: com alguns problemas (principalmente na invenção do idílico casal homossexual, que percorre a história, sofrendo sim diante da iminente morte de Ana – interpretada por Simone Spoladore -, mas como representação de felicidade quase pueril, e colocação politicamente correta em tempos nos quais “se exige” isso; ou na figura da garota que chega da França, que poderia representar leveza ante desfecho que se aproxima, mas que acaba emitindo opiniões aparentemente desconexas e que assume o risco do peso ao optar por se instalar no apartamento de Ana; ou ainda numa situação que parece ultrapassada, referente à compreensão das artes plásticas por prisma meio ultrapassado e com aderência estranha de um marchand…) evidentes, a narrativa acaba por sofrer de uma espécie de descontinuidade, fazendo com que algumas inserções dramáticas destoem de outras possibilidades, atravancando e pesando no ritmo.

Por outro lado, essa questão da linguagem, que deveria ser sempre tão cara aos críticos, afora a fluidez, recebe carinho interessante da diretora, pois o trabalho é bem filmado (diria que “finamente filmado”), e bastante bem editado; bom na solução das elipses que trazem a Ana do passado para o momento com naturalidade, impedindo a chateação que flashbacks costumam causar; e inventivo por algumas soluções de cortes que se emendam de modo a casar bem situações importantes para o contexto todo.

Contexto que parece bastante importante, apesar de parecer para os incrédulos repetição de um mesmo tema, pois situa as ações nas possibilidades atuais, pois discute um dos que batalharam à época sendo participante de comissão governamental de averiguação, pois não exime a consciência individual de um ou outro da turma de Irene (a protagonista de Irene Ravache) ante a morte de inimigos ou amigos para o bem da causa… Pois parece, ao final, na figura de Ana que está para morrer, metáfora possível (já que ela é personagem personificado de vários modos de ser dos daquele momento) de que está ali o encerramento, o fim, já que a vida tem de continuar. Vejo virtudes suficientes para camuflar os equívocos.

Cid Nader viajou a Brasília a convite da organização do Festival.
Matéria publicada sob licença de www.cinequanon.art.br