CAIXA “GODZILLA – ORIGENS” É AULA DE SÉCULO 20.

por Celso Sabasin.

O lançamento da caixa “Godzilla – Origens”, do selo Obras Primas, faz mais do que simplesmente disponibilizar no mercado um importante título clássico. Trata-se de uma verdadeira aula de história sobre um dos momentos mais significativos do século 20: a era do pânico atômico.

A embalagem traz três filmes: o “Godzilla” original japonês, de 1954; o similar americano “O Monstro do Mar”, feito um ano antes, que poderia ter inspirado e influenciado o clássico nipônico; e o curioso “Godzilla – O Rei dos Monstros”, de 1956 (que o site Imdb registra como “Godzilla, o Monstro do Mar”), um significativo pastiche coproduzido entre EUA e Japão para conquistar mercado internacional.

 

Godzilla (Gojira) Japão, 1954.

Direção de Ishiro Honda

 

Consta que o produtor da Toho Tomoyuki Tanaka teria desenvolvido a ideia original de “Godzilla” ao sobrevoar o atol de Bikini, local que ficou mundialmente famoso por ser palco de dezenas de experiências com bombas nucleares. Tanaka teria imaginado um roteiro onde a força de uma destas experiências libertaria um terrível monstro que por ali hibernava há milhões de anos. Nasce assim Godzilla, neologismo que combina as palavras japonesas “gorira” (gorila) e “kujira” (baleia).

Contudo, há quem diga que “Godzilla” teria se inspirado na produção estadunidense “O Monstro do Mar”, de 1953, que mostrava exatamente um gigantesco ser destruidor libertado pela energia nuclear.

Polêmica a parte, o fato é que “Godzilla” marcou época e transformou-se numa franquia internacional. E não por acaso. O filme acabou se tornando um marco histórico, um verdadeiro manifesto político que, depois de nove anos, finalmente transformava em catarse o pânico da população japonesa em relação aos terríveis episódios de Hiroshima e Nagasaki.

 

Mal sobrevivi a Nagasaki, e agora isso…” diz uma das personagens do filme, referindo-se ao monstro. “Precisamos encontrar um lugar para nos esconder”, responde seu interlocutor. “Não, eu não aguento mais fugir”, finaliza a desolada personagem.

 

Cabe aqui uma breve explicação histórica. Apesar das duas primeiras bombas atômicas terem devastado parte do Japão em 1945, foi somente em 1952 que os nipônicos voltaram a ter liberdade dentro de seu próprio país, com o fim da ocupação estadunidense. Entre 45 e 52 prevaleceu uma forte censura norte-americana sobre o Japão, onde vários fatos e ideias eram terminantemente proibidos de ser veiculados. Entre eles, os efeitos devastadores da radiação disseminada pelas explosões nucleares. O Japão e o mundo foram mantidos em total ignorância sobre o fato, já que os EUA não divulgavam suas pesquisas no setor. E impediam que outros o fizessem. Somente após 1952 os meios de comunicação japoneses – cinema inclusive – começaram a discutir a questão, e “Godzilla” vem na esteira desta discussão.

Assim, “Godzilla” é muito mais que apenas um simples filme de monstro. Ele é o exorcismo de toda uma população, um grito de socorro e de indignação contra o massacre que o início da era atômica provocou no país.

A direção ficou a cargo de Ishiro Honda, que passou a ser conhecido como diretor de grandes filmes de aventura e ficção científica japoneses, mas que desenvolveu também um trabalho diferenciado e respeitado junto ao mestre Akira Kurosawa, de quem foi assistente e consultor em várias oportunidades.

Alardeado como o filme mais caro produzido até aquele momento pelo cinema japonês, “Godzilla” foi rodado de forma praticamente simultânea ao clássico “Os Sete Samurais”, de Kurosawa, que também consumiu um orçamento desproporcional. Ambos os filmes, juntos, quase provocaram a falência da Toho, mas seus ótimos resultados de bilheteria salvaram a situação financeira da empresa, que continua atuante até hoje.

 

Godzilla – O Rei dos Monstros! (Godzilla – The King of Monster!) EUA/ Japão, 1956. Direção de Terry Morse e Ishiro Honda.

 

“Godzilla – O Rei dos Monstros!”, com exclamação e tudo, pode ser considerado um verdadeiro 171 cinematográfico. Visando pegar carona – e põe carona nisso – no sucesso do “Godzilla” japonês de 1954, a obscura produtora norte-americana Jewell Enterprises (que só fez três filmes em sua curta existência de 1952 a 1958) fez um acordo com a Toho e remontou o filme original enxertando cenas de produção norte-americana. Foi “incorporado” à trama o personagem Steve Martin (Raymond Burr, famoso pelo seriado de TV “Perry Mason”), um jornalista americano que acompanha o ataque do monstro a Tóquio e cobre os eventos para a mídia de seu país.

Sob a direção de Terry Morse, e sem sair dos EUA, Burr rodou todas as suas cenas em apenas seis dias, e posteriormente elas foram inseridas no “Godzilla” original. A história sofreu algumas alterações, algumas dublagens forçadas, e o resultado ficou meio Frankenstein, e por isso mesmo divertido. Como não podia deixar de ser, esta “versão americana” eliminou todas as referências a Hiroshima e Nagasaki.

É curioso notar que quase 30 anos depois foi produzida uma comédia dentro do mesmo estilo, qual seja, inserir trechos de um filme novo dentro de outros filmes já pré-existentes. Ela se chamou “Cliente Morto Não Paga”, e foi protagonizada por Steve Martin… exatamente o nome do personagem interpretado por Raymond Burr neste “Godzilla – O Rei dos Monstros!”.

 

O Monstro do Mar (The Beast From 20,000 Fathoms) EUA, 1953. Direção de Eugêne Lourier.

Bastante pertinente a ideia de inserir “O Monstro no Mar” na caixa “Godzilla – Origens”. Afinal, produzido um ano antes do clássico japonês, este também clássico do terror/ficção é tido por muitos como o inspirador do monstro nipônico.

E de fato a história “The Fog Horn”, de Ray Bradbury (o mesmo escritor de “Farenheit 451”), publicada originalmente no Saturday Evening Post, tem muitos pontos em comuns com “Godzilla”. Aqui, o pavor atômico também é o pano de fundo. Tudo começa com experiências nucleares desenvolvidas por cientistas norte-americanos que, claro, libertam das profundezas das geleiras um gigantesco dinossauro adormecido.

 

Cada vez que lançamos uma bomba destas eu me sinto escrevendo mais um capítulo do Gênesis”, diz um dos personagens. Seu colega retruca: “Espero que não estejamos escrevendo o último…

 

Assim como o Godzilla japonês segue rumo à Tóquio, o dinossaurão norte-americano toma o caminho de Nova York. E – interessante – enquanto no filme japonês há um personagem importante que lamenta o fato de quererem matar Godzilla, que poderia servir como uma inesgotável fonte de pesquisas, no similar estadunidense o belicismo é alto e claro: tem que matar mesmo, e fim de papo.

No quesito efeitos especiais, as diferenças também são marcantes. No filme japonês, o monstro é um ator de teatro kabuki trajando uma fantasia de 100 quilos de peso, ao passo que no norte-americano toda a magia é realizada por Ray Harryhausen, o papa da animação em stop motion. É de estranhar, inclusive, uma informação dada pelo próprio Harryhausen num dos extras do DVD: a de que “O Monstro no Mar” foi feito com muito pouco dinheiro. Não parece. Segundo ele, tudo teria custado em torno de US$ 200 mil para o produtor independente Hal Chester, que por sua vez, acreditando fazer um excelente negócio, revendeu o filme concluído para a Warner por menos de meio milhão… sem saber que ele renderia US$ 5 milhões nas bilheterias.

 

A caixa “Godzilla – Origens” ainda traz vários extras, como entrevistas com profissionais envolvidos nas produções, trailers, e um breve documentário produzido pela própria Distribuidora Obras Primas sobre o cinema após as bombas atômicas.

Colecionadores não devem perder.