CINEASTA ISA GRINSPUM FERRAZ FALA DE SEU DOCUMENTÁRIO “MARIGHELLA”.

Socióloga e cineasta, Isa Grinspum Ferraz trabalhou com Darcy Ribeiro, esteve na equipe que desenvolveu o Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo, e atualmente projeta o Museu Luiz Gonzaga, em Recife. Após 25 anos tentando, ela conseguiu finalmente terminar
um documentário de longa metragem que fez sobre seu tio, um tio muito especial chamado Carlos Marighela.

Há quanto tempo você vinha desenvolvendo a idéia para o filme Marighella?
Isa [com um sorriso e pensativa] – Bom, para você ter uma idéia o primeiro roteiro que fiz para este filme foi depositado e registrado na Biblioteca Nacional em 1986! Na época, o projeto entrou pela Lei Mendonça [de incentivo à cultura], foi aprovado, e obviamente não conseguiu captar um único tostão. Em 1986 este tema não era exatamente uma coisa fácil, não é?
Mas eu tinha esta pulsão de entender melhor a figura do Marighella, tanto do ponto de vista pessoal, mas principalmente de entender quem foi esse homem que, apesar de meu tio, eu conhecia tão pouco, quase nada. Sim, eu tinha minhas referências familiares, mas por mais que eu lesse tudo o que havia sobre ele ainda era muito pouco.
Enfim, fiz o roteiro mas não consegui verba para fazer o filme, e isso ficou na minha cabeça. Com a aproximação do centenário de nascimento de Marighella, agora em dezembro, decidi ir à luta novamente. Comecei a prospectar, revi o roteiro, fui atrás de patrocínio; estava convicta de que era a hora mesmo de fazer o filme.
Neste processo, foram muitos os amigos que me ajudaram. Principalmente Mário Magalhães, repórter especial da Folha de S.Paulo, que há sete anos está pesquisando incansavelmente e fazendo uma importante biografia de Marighella. Ele está desenvolvendo um trabalho incrível, fiquei amiga dele, e acabou se tornando consultor especial do filme, me ajudando a selecionar quem seriam os meus entrevistados, e assim por diante.
Assim eu fui reunindo o pouquíssimo material que existe sobre Marighella. Conversei muito com a família, e tive todo o apoio da Clara, a viúva, que é minha tia, e do Carlinhos, que é o filho dele. Reuni ao máximo o pouco que havia e montei uma equipe muito boa.

Imagino que as dificuldades da pesquisa tenham sido muitas.
Isa – Olha, não existe nenhuma imagem em movimento do Marighella vivo. Nenhuma! Isso apesar de ele ter vivido no século 20, o século da imagem. É uma loucura ele ter tido uma participação tão grande na vida política por 40 anos, ter sido deputado na época da Constituinte, em 1946, e não haver uma imagem em movimennto dele. A única imagem em movimento que existe é a da câmera da TV Tupi chegando no carro, já com ele morto.

Você acredita que tudo tenha sido apagado pela ditadura?
Isa – Pela ditadura ou pelas ditaduras, porque ele enfrentou duas: a de Getúlio Vargas e a de 1964. Não sei se foi apagado ou se ele assumiu a clandestinidade com tanta competência que não deixou rastros. Existem pouco mais de 20 fotos dele, e praticamente só isso. Não há nada na imprensa! É muito difícil achar material sobre ele, mas o que conseguimos é incrível: o Jornal da Ação Libertadora Nacional-ALN, panfletos, e a cereja do bolo do filme, que é uma entrevista que ele deu para a Rádio Havana, em Cuba.

Como foi isso?.
Isa – Foi o grande achado! Quando foi para Cuba, em 1967, ele acabou ficando por lá durante sete meses. Não tenho certeza, mas parece que o próprio Fidel ficou segurando o Marighella lá, já sabendo que não tinha mais jeito com o Che Guevara. De qualquer maneira, Marighella foi ficando por lá e só voltou em dezembro, depois da morte do Che. Como nós sabemos que tudo que o Fidel faz é filmado, começamos a pesquisar imagens de Marighella em Cuba. Fizemos altas tentativas por altos escalões para conseguir algum material sobre o Marighella, mil contatos através da Clara, até o Presidente Lula ajudou, falando diretamente com Raúl Castro pedindo pra ele abrir os arquivos. Não se encontrou nada de imagens! Até que no Instituto Cubano de Artes e Indústria Cinematográficos-Icaic encontramos uma série de entrevistas que Marighella concedeu à Rádio Havana. É um material maravilhoso que tem, inclusive, a carta de rompimento dele com o Partido, que é linda. A coisa mais incrível é que aquele homem fala palavras duríssimas com a voz terna de baiano, uma coisa legal de ouvir. Enfim, essa foi a grande cereja no bolo desse filme, que é a voz do próprio Marighella, que é muito forte. Quando a voz dele entra no filme, é muito forte.
E foi isso que a gente encontrou. É quase um filme arqueológico porque fui atrás de pistas, de indícios, e meu critério foi entrevistar gente que conheceu Marighella. Com a exceção de alguns historiadores, que no corte final eu usei pouquíssimo, e de um antropólogo, Antônio Risério, todos os outros depoimentos são de gente que conheceu Marighella. Porque eu queria mesmo reconstruir esta figura, e essa era a maneira que eu tinha. Assumi como linguagem o fato de não ter imagem.

Uma das coisas que mais surpreende no filme é o lado poeta de Marighella. Isso era conhecido?
Isa – Não sei se todos conheciam, mas pessoalmente, como sobrinha, eu sabia porque ele fazia poemas pra mim. E não eram só poemas, fazia paródias de canções do Roberto Carlos para meus coleguinhas de classe, também. Ele tinha uma memória incrível, era muito engraçado, divertido. Era um grande tio! Foi um grande tio. Eu sabia que ele era poeta por isso, e também porque eu conversava muito com a Clara, depois que ela voltou do exílio. A gente conversava muito, porque eu sempre fui muito inquieta para entender esse homem. Eu perguntava muitas coisas à Clara a vida inteira porque eu gostava muito dele e tinha vontade de entendê-lo. Existia um livrinho publicado de poemas dele, e a Clara também tinha algumas coisas.

Mas a informação de que ele era poeta era pública ou algo somente familiar?
Isa – Havia alguns poemas publicados, mas as coisas de Marighella nunca tiveram espaço em lugar nenhum. E o curioso são os temas que ele trabalhava nos poemas. Não que ele fosse um grande poeta, mas alguns poemas dele são muito bons. Ele tinha a necessidade de se expressar também por esta via, o que é bem interessante. Mas os temas dele são: morena, Bahia, sempre algo relacionado ao Brasil, às vezes com uma pegada política. Ele amava o Brasil de uma maneira incrível. Ele era mulato, baiano, um mestiço que adorava ser mestiço, adorava coisas do Brasil, da Bahia, conhecia o País profundamente. Tanto que na hora de editar o filme tive de cortar muitos depoimentos incríveis. Tem um depoimento, que acabei tirando, que falava que ele sabia os nomes de todos os rios, de todas as montanhas, de todos os vales, e que conhecia o Brasil, estudava a História do Brasil profundamente. Estudava o cangaço, estudava os movimentos populares, Canudos, as rebeliões populares todas. Ele era uma figura muito interessante, de verdade: passou por todas as esquerdas que o século 20 viveu, a Revolução Russa, o stalinismo, tudo aquilo. Ele foi stalinista, depois se decepciona profundamente e rompe.
Acho que o grande interesse do Marighella é que ele foi conversando com o tempo dele. Como homem muito inquieto, ele tinha esta flexibilidade de ir mudando com o tempo dele. Quando resolve optar pela luta armada diante de uma ditadura feroz no Brasil, ele já tinha tentado vários caminhos, inclusive o parlamentar, e só foi dando errado. Só dá para entender a opção dele pela luta armada no contexto do mundo: Guerra do Vietnã, Cuba, Argélia, movimentos de libertação na África, nos Estados Unidos, o movimento negro se impondo, maio de 1968, enfim, há um contexto mundial de efervescência muito grande, e só assim se entende Marighella e a opção pela luta armada. Não era um louco, irresponsável, que saiu matando.

Você começa o filme falando do seu susto quando seu pai lhe conta que seu tio Carlos era o Marighella. Como você recorda este momento?
Isa – Eu me lembro de cada detalhe desse momento. Meu pai [Salomão] estava me levando para a escola. Nós morávamos no Jardim São Paulo, que na época era um bairro afastado, justamente para poder hospedar o Marighella e a Clara. Era longe demais, numa casa sem telefone, uma coisa toda estranha para mim. Eu não entendia muito aquilo. Meu pai estava me levando para a escola e estava exatamente na Avenida Cruzeiro do Sul [Zona Norte de São Paulo], eu estava sentada no banco de trás do carro, tinha 10 anos. Como foi logo depois do seqüestro do embaixador americano, a barra estava muito pesada, e meu pai imaginou que eu fosse reconhecer o Marighella nas fotos dos cartazes de “Procura-se”, que estavam por todos os lugares. Só que até então eu nunca tinha associado as capas de revistas, de jornais, os cartazes, ao meu tio Carlos. Parece que criança só vê o que quer, não é? Meu pai me contou e eu fiquei desesperada, comecei a chorar, tive que voltar para casa. Nem consegui ir para a escola nesse dia.
Daí pra frente, nunca mais vi Marighella nem a tia Clara. Porque a partir do seqüestro do embaixador foram dois meses da caça mesmo, e ele não apareceu mais em casa.

Provavelmente seu pai lhe contou já prevendo algum desfecho mais trágico?
Isa – Meu pai chegou a se encontrar com Marighella um pouco antes da morte dele. O Marighella chamou meu pai, mandou um recado, e meu pai se encontrou com ele já bem no final. Inclusive meu pai me deu muitas informações para o filme, mas não quis gravar entrevista. Mas ele falou para o Marighella: “Mariga, ainda dá tempo de você sair, vai embora porque o cerco está muito forte”. E Marighella falou: “Não, eu não vou porque tem muita gente envolvida, que eu levei nesse momento, e eu não vou deixar. Eu vou morrer mas vou ficar até o fim aqui”. Foi o último encontro com meu pai com ele. Ele era muito amigo do Marighella. Eu nasci com Marighella em casa, ele trocava as fraldas da gente.

Por que seu pai não quis falar no filme?
Isa- Meu pai depois foi preso, foi torturado, ficou muito marcado pelo que sofreu depois. Eles queriam saber onde estava minha tia depois que mataram meu tio. A Clara foi para Cuba, para o exílio. Prenderam meu pai porque queriam saber onde ela estava. Ele foi para o Doi-Codi, passou por tudo aquilo, ficou muito marcado, preferiu não falar.

Seu filme dialoga com vários outros filmes brasileiros, tanto documentários como de ficção, que abordam o período da ditadura. Você acha que já chegamos num distanciamento histórico necessário para mostrar este período às novas gerações, que mal sabem o que aconteceu naquela época?
Isa – Eu utilizo materiais diversos, sejam de ficção ou documentários, para contar a minha história. É uma linguagem que uso. Fiz, por exemplo, uma série grande chamada O Povo Brasileiro, a partir da obra do Darcy Ribeiro, com quem trabalhei muitos anos. Acredito que tudo o que a gente usa de bons materiais, materiais relevantes que já foram feitos, somam muitos significados, por vários motivos, não só pelo o que eles revelam, mas pelo que significam. O Gláuber Rocha, por exemplo, era um marighelista radical. Ele se encontrou com a Clara, em Cuba, quando ela estava no exílio. Um dia alguém chega e diz para a Clara: “O Gláuber Rocha está aí e quer conversar com você”. Era incrível o Gláuber ter encontrado a Clara, em Cuba, porque ela estava clandestina, usando nome falso, e sendo cuidada pelo Governo cubano até a anistia, em 1979, quando ela volta. “Bom, tudo bem, o que será que ele quer comigo?”, Clara perguntou. Então ele chegou para ela e falou: “Clara, o que pensava Marighella?” Ela riu e falou: “Um monte de coisas”. E ele insistiu: “Me diga tudo”. Na época, o Gláuber queria fazer um filme que se chamaria História do Brasil, e queria saber o pensamento de Marighella. Aí Clara falou, falou, falou, e quando acabou, Gláuber, muito emocionado, abraçou-a e falou assim: “Concordo com tudo”.
Então tem várias camadas de sentidos em você trazer outras referências, sejam musicais, sejam informativas. Até por isso eu estou no filme, tem a minha voz, e eu assumo o recorte de que é um filme feito por uma sobrinha curiosa, mas ao mesmo tempo sou socióloga. Mas não há um distanciamento científico, não busquei isso, mas de qualquer forma, meus entrevistados falam com algum distanciamento. Enfim, é o filme que eu podia fazer. Há outros filmes a serem feitos sobre Marighella? Muitos, porque é uma vida tão densa, um homem com uma história tão impressionante, que atuou tantos anos do século 20 na História do Brasil, que merece muitos filmes, inclusive acho que merece um filme de ficção à altura do personagem. Que não seria nunca eu a fazer, porque não sei fazer ficção.

Você teve de descartar muita coisa na montagem final do filme. Pelo jeito o dvd vai estar cheio de extras.
Isa – Vai ter milhares de extras! [risos]. Eu fiz 31 entrevistas, tem 25 ou 26 no filme, porque depois tive que fazer opções, o que foi bem difícil, foi um sofrimento. O primeiro corte do filme tinha quatro horas e meia! Foi um sofrimento ir cortando coisas, mas cada um destes entrevistados foi de muita generosidade, e eu acho que ser sobrinha de Marighella ajudou as pessoas a se abrirem de um jeito especial. Tem depoimentos de duas horas e meia. Nem sei o que vou fazer com este material todo, porque tenho a obrigação moral de divulgar este material de algum jeito, porque são depoimentos incríveis, que eu agora preciso primeiro me distanciar um pouco do tema para poder pensar melhor. Mas depois eu vou ver o que fazer com isso. Acho que é um material para ir para escolas, para universidades, bibliotecas, no exterior, para festivais no exterior. Marighella tinha uma penetração incrível na Europa. Tanto que seu Manual do Guerrilheiro Urbano foi traduzido até em árabe. Ele teve apoio do Miró, do Godard, Sartre, vários ídolos meus que eram marighelistas, que mandavam dinheiro para a causa. Quero tentar mostrar este filme em festivais na Itália, na França, na Alemanha… Marighella inspirou até as Brigadas Vermelhas.

O filme já tem data de estréia definida?
Isa – No momento [novembro de 2011] ainda não. Estou negociando com algumas distribuidoras porque é um perfil de filme que não é para um distribuidor comercial comum. Eles não se interessam por filme assim. Eu quero que entre em circuito nas capitais, mas quero também mostrá-lo nas escolas, na periferia. Com este filme, até a Clara, que ficou mais de 20 anos casada com Marighella, descobriu coisas que não sabia. E ainda tem muito o que se descobrir. O Mário Magalhães, por exemplo, não consegue terminar o livro sobre o Marighela porque não pára de descobrir coisas.

Qual a sua visão do Brasil hoje?
Isa – Sou superotimista. Tenho paixão por este País. A história da minha vida, as oportunidades que eu tive de trabalhar com gente como Lina Bo Bardi, com Darcy Ribeiro, a minha formação familiar de esquerda, o próprio tio Carlos e as minhas experiências pela vida… eu sou otimista com o Brasil. As dificuldades que se encontram para fazer qualquer coisa no Brasil são tão brutais que dá até desânimo. A gente acha que não vai dar certo, que este País não tem como dar certo. Mas ao mesmo tempo a gente vai e faz. O povo brasileiro é poderoso. O Brasil tem uma energia que é uma loucura, mas ô coisa difícil..!

Matéria publicada originalmente no Jornal da ABI – Associação Brasileira de Imprensa.
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