COM PRODUÇÕES DO SUL E DO NORDESTE, O CINEMA BRASILEIRO RESISTE COM QUALIDADE.

Por Celso Sabadin.

A poucos meses de terminar o pesadelo que se instalou no país desde as eleições de 2018, o cinema brasileiro continua mostrando sinais de força, criatividade e resistência, provando que a recuperação cultural do Brasil, a partir de 2023, será das mais viáveis. Trabalhosa, sem dúvida, mas possível.

Nestas duas últimas semanas do primeiro semestre do último ano desta era de trevas, dois ótimos filmes brasileiros entram em cartaz nos cinemas: um vindo do sul, outro do nordeste.

A Colmeia

Do Rio Grande do Sul chega “A Colmeia”, suspense dramático com toques de terror finalizado em 2019 e que finalmente conquista seu espaço no circuito, a partir deste 30 de junho. Tudo se passa na zona rural gaúcha, na época da Segunda Guerra, quando era proibido falar alemão no Brasil. Mas que não parece muito distante do atual panorama de imutabilidade social e cultural do país.

Uma casa isolada abriga um grupo de imigrantes alemães formado pelo casal Bertha (Janaina Pellizon) e Werner (Rafael Franskowiak), os adultos Kasper (Samuel Reginatto), Uli (Matina Fröhlich), Lila (Renata de Lélis), e os gêmeos adolescentes Christoffer (João Pedro Prates) e Mayla (Andressa Matos), além da empregada Erika (Thais Petzhold).

Fechados entre si, eles resistem à ideia de Christoffer ir à escola, já que o lugar “precisa de braços, e não de cabeças”, como é dito ao rapaz. Mayla, porém, vê no ensino uma possibilidade do irmão finalmente escapar da opressão local, e espera empreender tal fuga junto com ele. Um inexpugnável e quase místico imobilismo, porém, prende o jovem às suas simbióticas e destruidoras raízes, afundando-o nesta propriedade simbolizadora de retrocesso e hipocrisia. À volta deles, indígenas oprimidos e brancos opressores ajudam a compor um painel de horror fincado em preconceitos, exclusão e violência.

Filme gaúcho vence prêmio em festival na Espanha

 

 

O argumento é de Diones Camargo, a partir de seu próprio esquete teatral. O roteiro é assinado por Diones, Matheus Borges e pelo diretor, Gilson Vargas, o mesmo do longa “Dromedário do Asfalto” (2014) e do ótimo curta “Casa Afogada”. Assinada por Bruno Polidoro, a fotografia de “A Colmeia” é um escândalo de bela, compondo com a direção de arte (de Gilka Vargas e Iara Noemi) e o desenho de som de Gabriela Bervian (também montadora) um trabalho de altíssimo nível técnico embalado pela notável trilha sonora de Leo Henkin.

Não por acaso, “A Colmeia” venceu o prêmio de Melhor longa estrangeiro do Festival Internacional de Zaragoza, na Espanha, além de  cinco Kikitos na mostra gaúcha do 49º Festival de Gramado (direção, ator, fotografia, som e arte).

 

A Jangada de Welles

Do nordeste vem o documentário “A Jangada de Welles”, longa dirigido pelos cearenses Firmino Holanda e Petrus Cariry, e que retoma o sempre instigante tema da tempestuosa passagem do cineasta estadunidense Orson Welles por Fortaleza. Passagem, por sinal, que está comemorando 80 anos agora em 2022.

Não é uma simples efeméride. Ao buscar em Welles o chamado “gancho“, ou seja, o pretexto para abordar o tema, Holanda e Cariry lembram que o Brasil de oito décadas atrás talvez não seja muito diferente do país que temos hoje. A babação de ovo em cima do talento vindo dos Estados Unidos, o eterno descaso para com a profissão de jangadeiro (e, por extensão, com várias outras profissões populares), a irresponsabilidade social que sempre permeou os rumos políticos, a manipulação imagética do povo, tudo está lá, tanto em 1942, como em 2022. E é tudo verdade.

Chama a atenção, contudo, a astúcia do então presidente Getúlio Vargas, que reverte uma manifestação de jangadeiros – a princípio, contra sua política de governo – em evento midiático a seu favor, transformando críticas em elogios como quem transmuta água em vinho. Isso é diferente dos dias de hoje: astúcia no governo.

Após ser exibido em mais de 20 festivais de cinema em 10 países, “A Jangada de Welles” entrou em cartaz no último dia 23 de junho em Fortaleza, Salvador, Aracaju, Recife, Maceió, Goiás, Manaus, Porto Alegre, Vitória, Rio de Janeiro e São Paulo. A partir de amanhã, 30, entra também em Aracaju, João Pessoa, Recife, Goiânia e Vitória.