“CONDUCTA” e “ERRANTE”, DUAS ÓTIMAS SURPRESAS VESPERTINAS EM GRAMADO.

Por Celso Sabadin, de Gramado.

Nem sempre o que há de melhor num festival de cinema se encontra nas suas festejadas mostras competitivas. Muitas vezes, há verdadeiros tesouros escondidos nas mostras paralelas fora de competição, como aconteceu na tarde de ontem (11/08) aqui no 43º Festival de Cinema de Gramado.

O melhor filme do Festival – pelo menos para mim, pelo menos até agora – foi exibido numa sessão fora de competição, às duas da tarde, com a sala praticamente vazia: trata-se da produção cubana registrada no catálogo do evento como “Conducta”, mas que será lançada no circuito comercial brasileiro com o nome “Numa Escola de Havana”. Se formos analisar simplesmente a sinopse do filme, num primeiro momento a impressão será de total deja vu: numa escola cheia de problemas, uma dedicada professora faz o possível e o impossível para tratar seus alunos – vitimados pelas mais diversas carências socioeconômicas – com a maior dignidade possível, apostando no potencial humano de cada um em detrimento a qualquer tipo de mecanismo repressivo. Obviamente logo nos vêm à cabeça uma série enorme de “professores heróis” que nos acostumamos a ver no cinema desde Sidney Poitier em “Ao Mestre com Carinho”. Esqueça! “Numa Escola de Havana” passa longe da mesmice e da pieguice.

Não é tanto pela história contada, mas sim pela maneira como ela explode na tela. O roteirista e diretor Ernesto Daranas constrói seus personagens com extremas credibilidade e afeto. Não cria heróis, nem vilões, foge completamente do maniqueísmo, ao mesmo tempo que traça um belíssimo painel sócio cultural de Havana, por extensão, de Cuba e – por que não – de toda a América Latina. Com uma sutileza narrativa que contrasta com a dureza e a crueldade do meio social de seus personagens, “Numa Escola em Havana” é um filme de olhares, de pequenos gestos, grandes diálogos e, sobretudo, de soberbas intepretações de todo o elenco. Talvez os mais radicais torçam o nariz para algumas críticas feitas ao regime de Fidel, mas política à parte é praticamente impossível negar as qualidades cinematográficas do filme.

Ao ver uma professora datilografar um texto numa antiga e barulhenta máquina de escrever, uma colega lhe diz: “Por que você não usa o computador?”. A resposta vem célere: “Porque eu quero que as palavras soem”.

Numa cena de tensão entre a jovem diretora e a velha professora, o diálogo é dos mais afiados:

– Eu leciono aqui antes mesmo de você ter nascido.

– Talvez seja tempo demais.

– É menos que o tempo dos que governam este país…

É com toda esta carga emocional que “Numa Escola de Havana” estreia no circuito brasileiro no próximo dia 3 de setembro. Não por acaso, o filme foi premiado nos festivais de Bogotá, Havana, Lleida, Málaga e Portland. Por enquanto.

“ERRANTE” É ACERTANTE

Logo em seguida, na sessão das 16 horas, participando da Mostra Gaúcha (também não competitiva), outra bela surpresa: “Errante”, de Gustavo Spolidoro. Em tempos de projetos engessados por pesadas máquinas burocráticas e de editais mastodônticos, foi profundamente prazeroso e reconfortante ver o Cinema retornado à simplicidade de suas origens através da leveza de “Errante”.

Com o subtítulo “Um Filme de Encontro”, “Errante” é um trabalho pautado, literalmente, pelo sonho. A proposta de Spolidoro foi a pegar uma câmera digital e um smartfone e sair pelas ruas de sua cidade, Porto Alegre, registrando o acaso. Mas mesmo o acaso precisa ter um ponto de partida, e o cineasta propôs a si mesmo que começaria as filmagens inspirado pelo sonho que tivesse na noite anterior ao inicio do longa. Como ele sonhou com uma lanchonete (ops, lancheria, pois o filme é gaúcho), “Errante” tem seu ponto de partida dentro deste estabelecimento. A partir daí, o homem e sua câmera saem pela vida, livres, leves e soltos, conversando aleatoriamente com pessoas que cruzam pelo caminho, proporcionando os diversos encontros aos quais o subtítulo se refere.

O resultado fascina pelo despojamento. Não um despojamento gratuito ou vazio, mas sim um salutar desprendimento de encarar o Cinema como ferramenta de registro da simplicidade sutil do acaso da vida, da riqueza de cada um daqueles seres humanos que se descobre a cada encontro. Sem se prender a normas, o cineasta se assume como personagem (inclusive nos próprios créditos finais), ao mesmo tempo conduzindo e se deixando conduzir por uma narrativa que se constrói, destrói e se reconstrói a cada fotograma (ou a cada pixel, pois já quase não existe mais fotograma). Assim como na vida, o filme busca uma coisa e encontra outra que pode ser até melhor do que a princípio se buscava, mas jamais saberemos. Spolidoro saboreia da liberdade de parar a filmagem para explicar o que acha necessário, de voltar seu próprio filme, de dividir com o espectador as diferenças do que foi imaginado para o que foi concretizado, Torna-se cúmplice da plateia que, com a mesma curiosidade da câmera que espia a tudo e a todos, embarca feliz nesta proposta de viagem que ninguém sabe até onde poderá ir.

Spolidoro chama sua proposta de “Cinema de um homem só”, e diz ter se inspirado em trabalhos da cineasta belga Agnés Varda. “Errante” é um sopro de frescor que ajuda a varrer a poeira dos sisudos arquivos burocráticos da nossa travada produção audiovisual.

Celso Sabadin viajou a Gramado a convite da organização do Festival.