DIRETOR DE “500 ALMAS” FALA COM EXCLUSIVIDADE AO NOSSO SITE

Joel Pizzini, diretor que estréia no longa metragem com o premiado documentário poético “500 Almas”, fala ao Planeta Tela sobre sua fascinação pelo tema indígena, as dificuldades de se filmar no Pantanal, e seus novos projetos para a tela grande.

Planeta Tela – Como você tomou contato com a realidade dos índios Guatós, e em que momento você percebeu que isso poderia render um belo filme?
PIZZINI – Trata-se de um daqueles casos onde o tema é que te escolhe e você é levado a fazer o filme. A história mítica dos Guatós faz parte da minha arqueologia afetiva, pois desde minha adolescência em Mato Grosso (do Sul) eu ouvia falar do ressurgimento de uma tribo dada como extinta…
Essa história sempre povoou meu imaginário até que decidi visitá-los no Pantanal e escrever o projeto. Quando os contatei pela primeira vez, deparei-me com um estado de completa imobilidade dos Guatós, de dormência da cultura… até que liguei a câmera e eles mudaram completamente de atitude. Na verdade eles me testaram o tempo todo até se apropriarem do filme. A partir daí eu embarquei no movimento deles e fui reestruturando totalmente o conceito que antes era calcado na idéia da presença e ausência de memória na construção da identidade guató.
Me dei conta que daria um belo filme, quando percebi a dimensão mítica, o que estava recôndito, armazenado, não revelado numa primeira mirada.
O cinema tem esse poder, essa capacidade de evocar, de penetrar nos silêncios, no indizível, sobretudo o Cinema de Poesia que não se atém apenas ao mundo objetivo e nem se contenta com o factual e com a cumulação estatística.

Planeta Tela – Por que você escolheu este tema para estrear no longa de cinema?
PIZZINI – Eu fui escolhido, não foi uma eleição deliberada. Foi uma necessidade de revisitar essa memória afetiva que sempre me inquietou, os mitos fundadores da cultura que sempre me fascinou. Eu fui criado ao lado de uma aldeia indígena em Dourados (MS). Nunca entendi a indiferença, a intolerância, o preconceito que a cidade destilava em relação aos Caiuás e Guaranis, povos originários da região.
Quando freqüentava as matinês no Cine Ouro Verde e assistia aos bang-bangs sempre torcia para os índios que invariavelmente levavam a pior…saqueavam as carruagens, escalpelavam…e talvez alimentasse desde então essa imagem “bárbara” que cristalizava o preconceito contra eles…
Às vezes, pintava um filme que humanizava um pouco o índio… Um John Ford talvez…

Planeta Tela – Quais as dificuldades logísticas para filmar no Pantanal? Você trabalhou com equipe reduzida?
PIZZINI – Bem, as distâncias eram homéricas. A Ilha que os Guatós ocupam fica na fronteira entre Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Bolívia. A gente vai de avião até um Posto Militar e depois pega uma “Avoadeira”, que leva horas ainda pra chegar no território guató.
O maior drama nas filmagens era a limitação de horário e de luz por conseguinte para filmar na Ilha, pois tínhamos que atravessar diariamente após as filmagens lagoas gigantescas (maiores que a Baía de Guanabara) infestadas de piranhas. Quando ventava, então, erguiam-se ondas de quase um metro de altura. Para evitar riscos, filmávamos então até as 15 horas o que nos impedia de flagrar a hora mágica… Tinhas que ir a outros pontos do Pantanal em busca da “Luz de Deus”, como o Mário Carneiro batizou a luz natural.
A decisão de não nos hospedarmos na aldeia indígena foi para não interferir no cotidiano dos Guatós. Fizemos um acordo então com uma reserva ecológica – Ecotrópica – que nos permitiu mais autonomia mas impôs esta limitação de luz, e precisávamos sair de madrugada de barco para filmar na Ilha e voltar mais cedo que gostaríamos para o acampamento.
A equipe, entre barqueiros e cozinheiras (tivemos que montar toda a estrutura na Reserva Ecológica que só tinha as casas e três funcionários) era composta de 19 pessoas. O Mário Carneiro levou grandes rebatedores e tivemos o privilégio de contar por três dias com um operador de Steadycam.
Como a proposta exigia um cuidado plástico na elaboração das imagens, dedicamos muita energia na construção dos planos, na composição da “mise-en-scène”. Uma luta permanente para equilibrar o forte conteúdo antropológico com a forma narrativa, o que resultou num filme que classifico de “etnopoético”, que teve uma densa base de pesquisa, mas tratou com ampla liberdade estética a transfiguração do tema. Nesse sentido, a cumplicidade da Grifa Mixer na produção foi essencial pois permitiu todo o tempo necessário para realizarmos tanto a produção, a montagem, como a finalização sofisticada que o documentário pediu.
Tive o privilégio de contar na Direção de Fotografia com o Mário Carneiro, um mago da luz, mestre do Cinema Novo bem como com a câmera na mão de Dib Lutfi que deu uma leveza fluída na captação das imagens.
Por se tratar de um documentário optamos pela captação em Super 16 mm, que tem um chassis maior e permite a realização de planos-seqüências mais dilatados. E, como os protagonistas do filme são anciões, que vão lembrando o idioma gradativamente, era preciso arriscar na rodagem dos planos até que de repente o personagem lembrasse de determinada cantiga guató, por exemplo… Houve um risco calculado, e investimos maior tempo e energia nas filmagens com os falantes da língua que durante o filme foram evocando a memória milenar da tribo.
Na pós-produção foi feito na Teleimage um “blow-up eletrônico” que transferiu o filme para a bitola 35 mm, com um resultado impressionante. A própria demora na finalização do filme deu tempo para tirarmos partido dos avanços tecnológicos que estavam em curso naquele período.

Planeta Tela – O filme é definido como um “documentário poético”. O que seria exatamente isso?
PIZZINI – É documentário pelo valor antropológico inerente ao filme. Afinal trata-se de uma cultura milenar pela primeira vez retratada no cinema…
É poético pela liberdade narrativa adotada. O filme extrapola os limites do documentário tradicional, dando espaço para o tempo cinematográfico. Assumindo uma carga subjetiva, um ponto de vista de um branco, ocidental, de formação cristã no afã de compreender o outro, uma outra cultura em luta para reatar com sua ancestralidade. O filme leva em conta os silêncios, a imaginação, o sonho, os mitos, desconfiando sempre da realidade aparente, cristalizada, procurando desvendar o imaginário de uma cultura através da perspectiva poética não sociológica. “500 Almas” não é um filme “sobre” mas um filme “sob” o universo mítico e existencial da nação guató, e que propõe uma reflexão sobre os mistérios da memória e da construção da identidade. Uma questão pertinente a todos nós, de todas as etnias.

Planeta Tela – Como anda a luta para exibir um filme brasileiro, num mercado dominado por Shreks e Piratas do Caribe?
PIZZINI – Apesar da vasta premiação do filme – são mais de 20 prêmios em festivais nacionais e internacionais – “500 Almas” está na sala de espera há quase três anos. Se não fosse um Prêmio de Adicional de Renda concedido pela Ancine à RioFilme, o filme não tinha previsão de entrar em cartaz tão cedo. Isso revela que o cinema independente não pode ser arremessado ao “livre mercado”, é necessária uma política diferenciada para a circulação desse tipo de filme.
A concorrência é desleal, mas a gente precisa enfrentar os tubarões, ocupar os espaços, e promover uma reflexão crítica permanente, num corpo a corpo para despertar o interesse do público. Vamos realizar debates em universidades, centros culturais e reivindicar espaço para o cinema de poesia, de invenção, para o documentário que pouco a pouco vai se afirmando como linguagem alternativa aos “blockbusters” que pulverizam o mercado. Tenho notado um grande interesse pelo filme e espero que com a benção de São Pedro (ele estréia dia 29, dia de S. Pedro), “500 Almas” possa surpreender até os mais céticos. Pretendo viajar com o filme pelo interior do país e exibi-lo em todas as telas possíveis. Como diz o Glauber Rocha, uma coisa é você explorar o público a outra é conquistar o público! Sem nivelar por baixo e fazer concessões apelativas parto para conquistar o público com todas as Almas disponíveis! O cineasta ama o espectador.

Planeta Tela – A pergunta inevitavelmente ansiosa: qual seu próximo projeto?
PIZZINI – Estou me preparando para produzir meu primeiro longa-metragem de ficção chamado “Mundéu – A Invenção de Limite” sobre a gênese de “Limite” realizado em 1930 por Mário Peixoto. O título “Mundéu” é uma alusão ao primeiro livro de poemas de Peixoto e cujo significado da palavra é aquilo que está por ruir. O filme que me fez fazer cinema foi “Limite”, de Mário Peixoto. Assisti à sessão do filme restaurado, em 1980 na Cinemateca de Curitiba. Fiquei siderado ao ver pela primeira vez um filme essencialmente poético. Nessa época, eu já cometia meus poemas, tendo lançado inclusive um livro de poesia artesanal na Universidade. O filme me contaminou completamente e decidi primeiro conhecer o autor, Mário Peixoto e depois a seguir a vertente do “Cinema de Poesia”.
Também estou finalizando o documentário que deve se chamar “A Morte do Pai”, baseado nas entrevistas que realizei com o diretor e produtor Renzo Rosselini em suas três passagens pelo Brasil, em 1958, 61 e 68.