FANTASPOA 2018: UM BALANÇO.

Por João Moris, de Porto Alegre.

Terminou no último dia 3 junho o XIV Festival Internacional de Cinema Fantástico de Porto Alegre (Fantaspoa), considerado o maior festival do gênero na América Latina. O evento já se consolidou no calendário da cidade e atrai diversos tipos de público, inclusive cineastas, produtores e aficionados do gênero fantástico de todo o Brasil e do mundo. Este ano o festival exibiu mais de 100 filmes durante 18 dias, em sessões na icônica Cinemateca Capitólio, um imponente prédio construído em 1928 e restaurado em 2006.

Cabe aqui uma pequena explicação sobre o gênero fantástico no cinema, que é bastante vasto e abrange: filmes de terror (que causam sentimentos de medo, ansiedade e expectativa), filmes de horror (que causam repulsa, choques ou sustos), filmes de suspense (em que há um acontecimento misterioso ou um crime, cuja resolução é aguardada com grande inquietude), os thrillers (que usam o suspense, a tensão e a excitação como principais elementos), filmes que mostram violência gráfica com sangue jorrando (os chamados filmes “gore” ou “splatter”), filmes de fantasia (geralmente relacionados à magia, criaturas fantásticas ou mundos imaginários), filmes de humor negro (que utilizam situações mórbidas ou macabras, sempre com um toque de crueldade, com o intuito de provocar riso), além dos filmes de ficção científica (que contam histórias sobre vida extraterrestre, viagens siderais e viagens no tempo).

Grande filão

Além de Alfred Hitchcock, considerado o mestre do terror, do suspense e do thriller, que apavorou legiões de espectadores com o seu clássico Psicose (1960), outros grandes diretores flertaram com o cinema fantástico, como Roman Polanski, com O Bebê de Rosemary (1968) e O Inquilino (1976), e Stanley Kubrick com O Iluminado (1980), para citar apenas dois cineastas famosos. No Brasil, temos os mestres Zé do Caixão (José Mojica Marins) e Ivan Cardoso como os legítimos precursores do cinema fantástico no país.           

Embora o gênero fantástico tenha muitos seguidores em todos os cantos do planeta, e seja um filão comercial importante da indústria cinematográfica mundial com polpudas bilheterias, há muita gente que torce o nariz para este tipo de filme, pois com frequência são recheados de cenas de muita violência e tensão, o que requer um nível maior de tolerância e abertura por parte da plateia.

Fórmula pronta?

Há uma certa “fórmula” na caracterização deste gênero de filme hoje, nem sempre compreendido pelos que não o apreciam. Os enredos não têm necessariamente uma explicação plausível ou lógica, os personagens são muitas vezes movidos por sentimentos de ódio, ressentimento e vingança, que invariavelmente levam a uma explosão de violência. Para haver empatia com a plateia, os protagonistas desses filmes devem ser dotados de malignidade e perversidade, daí quanto mais esquisitos, excêntricos e patológicos, maior o efeito. Para completar a fórmula, os filmes do gênero fantástico são quase sempre maniqueístas ou misóginos, com vítimas indefesas, principalmente mulheres e adolescentes, e situações de vulnerabilidade em relação ao mal, que está sempre à espreita, onipresente. Mas, é óbvio que nem todos os filmes seguem esta fórmula à risca.     

No imenso caldeirão que compõe os filmes do gênero fantástico lançados nos últimos anos, o que continua diferenciando um filme do outro, além da criatividade do roteiro, é a habilidade do diretor em cativar (e manipular) as plateias. É certo que muitos diretores atuais do cinema fantástico, na esteira dos filmes mainstream hollywoodianos, abusam do excesso de ação, de efeitos especiais e da violência explícita em detrimento da inteligência e percepção do espectador, o que leva a uma banalização e domesticação do gênero.    

Fantaspoa 2018

Um dos aspectos positivos do Fantaspoa é que os organizadores buscam trazer uma gama variada do que é feito no mundo em termos de cinema fantástico hoje, exibindo filmes com uma pegada menos comercial, que raramente são lançados no Brasil. As mulheres são protagonistas da maioria dos filmes que vi e que não têm necessariamente uma temática feminista (todos dirigidos por homens!).

O mais polêmicos é, sem dúvida, o filme chileno Trauma, do diretor Lucio A. Rojas, que anda causando furor até mesmo em festivais do gênero por sua extrema violência. Conta a história (verídica) de quatro mulheres que passam um final de semana no campo nos arredores de Santiago em 2011 e se veem presas de um brutamontes remanescente da ditadura militar, que juntamente com seu filho, as tortura, violenta e mata impiedosamente. O filme é uma metáfora hiperrealista sobre as sequelas da ditadura e dos “monstros” que continuam escondidos nos porões. Pena que o diretor carregue nas tintas da brutalidade e de um certo heroísmo feminino à la As Panteras, tirando a força do filme.

Menos violento, mas igualmente intenso, é o filme alemão A Quatro Mãos (“Die Vierhändige”), de Oliver Kienle, em que duas irmãs pequenas presenciam o brutal assassinato dos pais. A irmã mais velha (Sophie), totalmente traumatizada, promete proteger a irmã mais nova (Jessica) para sempre, mas morre inesperadamente. Quando os culpados do crime saem da prisão, a personalidade vingativa e violenta de Sophie toma conta de Jessica, com desdobramentos imprevisíveis e alguns furos de roteiro.

Outro filme com personagem feminina como protagonista é o canadense The Dark,  de Justin P. Lange, que conta a história de uma adolescente continuamente abusada pelo padastro e que, ao rebelar-se contra ele, é agredida e enterrada viva, tornando-se uma canibal escondida numa floresta remota, matando qualquer pessoa que se aproxime da cabana onde mora. Ao se deparar com um garoto cego, também vítima de abuso, preso no porta-malas de uma carro, a garota decide deixá-lo viver e os dois formam um forte vínculo de afinidade. Uma bela metáfora sobre infância roubada e a violência dos adultos em relação ao mundo infantil, mas o final precisava ser tão previsível e conciliador?

A ficção científica espanhola Após a Letargia (“After the Lethargy”), do diretor catalão Marc Carreté, também aborda questões femininas e de maternidade. Uma jornalista decide investigar um suposto local de pouso de alienígenas no meio de um parque nacional, mas, além de ETs, o que ela encontra é um quartel militar abandonado, onde experiências horrendas com mulheres acontecem. O filme tem uma premissa interessante, mas se perde num emaranhado de cenas desconexas, com erros de continuidade e atuações frouxas. Exceção à atriz inglesa Sue Flack, que faz uma enfermeira deliciosamente malvada, sarcástica e pernóstica.

O filme de protagonismo feminino com o roteiro mais bem alinhavado (e linear) que vi no Fantaspoa foi o brasileiro A Pedra da Serpente, primeiro longa do jovem diretor Fernando Sanches. O filme fala de gravidez e abdução por alienígenas e é ambientado em Peruíbe, cidade do litoral paulista conhecida como local de visita de discos voadores e onde se encontra um suposto portal de passagem de alienígenas, que dá nome ao filme. Fernando cria um roteiro hábil em que uma lenda urbana se mistura ao drama pessoal das protagonistas. Um filme respeitoso com as mulheres, sem apelar para cenas de violência ou sanguinolentas para “fisgar” o espectador e sem pirotecnias tecnológicas. Mas, o filme carece de um melhor acabamento e trabalho de atores.               

Dois filmes com enredo mais tradicional têm roteiros bem desenvolvidos, mas a direção nem sempre está à altura da criatividade. O thriller alemão Berlin Falling (direção Ken Duken) mostra a tensão escalando entre dois homens, durante uma viagem de carro a Berlim, em que o motorista dá carona a um cara, que se revela um terrorista alemão com intenções misteriosas. Já o terror canadense Knuckleball, do diretor Michael Peterson, conta a história de um menino de 12 anos deixado pelos pais com o avô rabugento numa casa isolada nas pradarias nevadas. O avô morre repentinamente e o menino fica à mercê de uma herança familiar maldita que ronda a casa.           

O filme espanhol Framed, do diretor Marc Martinez Jordán, busca fazer uma crítica à hiperexposição das pessoas aos vídeos e à avidez dos espectadores por ver cenas de violência e sexo. Conta a história de três indíviduos sádicos que invadem uma casa e torturam um grupo de jovens de todas as maneiras possíveis e imaginárias, fazendo transmissões ao vivo do sofrimento de cada membro do grupo, o que aumenta a audiência. Outro filme espanhol de humor negro, mas bem menos violento, é Matar a Deus (“Matar a Dios”), de  Caye Casas e Alberto Pintó, que mostra quatro membros de uma família disfuncional que se prepara para celebrar o fim de ano em uma casa de campo, quando surge um anão maltrapilho dizendo ser Deus e avisa que, antes de exterminar a humanidade na manhã seguinte, a família deve escolher dois entre eles para serem os únicos sobreviventes. Um filme com diálogos afiados e engraçados, mas indeciso entre o humor e o suspense.    

O filme alemão Floco de Neve (“Schneeflöckchen”), de Adolfo Kolmerer e William James, é o mais anárquico de todos os filmes que vi no Fantaspoa, misturando todos os clichês do gênero com uma história frenética sobre dois alemães de origem turca, cuja família foi exterminada por gangsters e que, na busca por vingança, se descobrem presos num conto de fadas perverso escrito por um dentista que é roteirista nas horas vagas. O filme remete a Quentin Tarantino e seria interessante ver o que o diretor americano faria com uma história destas.    

Embora nem todos os filmes que vi no Fantaspoa tenham entregado o que prometeram, a criatividade dos roteiros foi o ponto alto. Neste sentido, o cinema fantástico nos convida a fazer uma reflexão mais profunda sobre a natureza humana e o seu poder de imaginação, fantasia e criação.   

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