HENRIQUE DANTAS: “A DITADURA NÃO ACABOU”.

Após “Sinais de Cinza”, longa que permanece inédito no circuito exibidor brasileiro, o baiano Henrique Dantas retorna ao tema da ditadura militar brasileira em seu novo filme “A Noite Escura da Alma”, em exibição no 20  FAM – Florianópolis Audiovisual Mercosul. O cineasta contesta a ideia de que, tendo nascido em 1972, não teria vivenciado de perto os anos de chumbo de nosso país: “O tema me incomoda de uma forma muito particular, pois as pessoas não precisam me agredir diretamente para que eu me incomode. Se vejo alguém agredindo um amigo, isso também é uma agressão contra mim”, diz Dantas.

 

Por que seu filme diz que a ditadura de 1964 ainda não acabou?

Dantas – Porque ela está até hoje presente no nosso dia-a-dia. Ela está nos negros espancados e mortos o tempo todo até hoje em Salvador. Se um branco corre na rua, ele está atrasado; se um negro corre, ele está fugindo. Ela está presente nas práticas adotadas até hoje pelo Carlismo [referência ao ex-governador baiano Antonio Carlos Magalhães], que continua incendiando tribunais e arquivos com provas que incriminam os poderosos. A  ditadura não acabou. Eu ainda vivo na ditadura.

 

O filme fala que vivemos numa “terra arrasada pela alegria”. Como é isso?

É a consequência da política adotada pelo governo ACM de oficializar o axé como a música símbolo da baianidade. Ao apoiar somente os cantores de axé, ele tentou destruir toda a diversidade da cultura baiana e criou um grupo que não questiona nada, que engole tudo. Nossos artistas autênticos foram morar em São Paulo ou no Rio, e a Bahia criou um conceito de “felicidade obrigatória”, onde todos precisam obrigatoriamente ser feliz, achar que está tudo ótimo. Estamos dando nossas pedras preciosas para qualquer barquinho que atracar no nosso litoral, igual aconteceu com os índios na época de Pedro Álvares Cabral. Esta forma Carlista de administrar ainda prossegue na Bahia, e a esquerda não percebe.

 

O filme tem uma pegada forte com as artes visuais.

Sim, eu usei no filme a minha formação de artista visual,  adicionando o trabalho de seis performers que interpretam livremente as sensações de dor e medo causadas pela ditadura e pelas torturas. O filme dialoga não apenas com o cinema em si como também com várias possibilidades de narrativas visuais. Gerei junto aos performers uma memória a partir dos corpos das pessoas, brinco com a fronteira entre o documentário e a ficção, uso o hibridismo mesmo porque o filme deixa de ser documentário na medida em que as performances foram propostas.

 

E você opta por uma fotografia bem escurecida.

O filme é totalmente noturno. Ele mostra o lado obscuro, as piores memórias. Levei as pessoas para prestar seus depoimentos no Forte do Barbalho, o mesmo lugar onde elas foram torturadas. Foi um dispositivo de criação que evoca memórias que elas não teriam se estivessem sendo entrevistadas em casa, mas fiz questão de não mostrar na tela o choro de ninguém. Quando percebia que alguém ia chorar, eu cortava. Não quis expor o meu depoente; prefiro um guerrilheiro na minha frente.