JERÊ

Jeremias Moreira – oficio de cinema. (sem medo de ser caipira.)
Por Celso Sabadin

Diretor que é diretor não grita.
Conheci Jeremias Moreira quando comecei a trabalhar como assessor de imprensa na versão 2009 do longa O Menino da Porteira. Quem me apresentou foi o produtor executivo do filme, Moracy do Val, um profissional dos mais antenados, agitados, plugados e – como se diz na gíria – ligado no 220.
Jeremias era o oposto de Moracy. Calmo, tranqüilo, de fala mansa. Pouco tempo depois, já no set de filmagens, pude apreciar de perto o método de Jeremias. Caipiramente – no melhor sentido da palavra – ele olhava atentamente a todos os detalhes, dava instruções a todos com a voz baixa e segura, e ouvia pacientemente a quem quer que desejasse externar uma opinião. Transmitia para todo o set muita paz, segurança e o profissionalismo daqueles que sabem exatamente o que desejam de cada cena. Vez por outra, com um sorriso largo, chamava este ou aquele membro da equipe diante do video-assist para mostrar como tinha ficado bonita esta ou aquela cena. Para minha grande alegria, fui chamado também uma ou duas vezes para compartilhar a alegria de Jerê.
Tamanha era a sua tranquilidade, que Jeremias não gritava “ação”, nem “corta”, nem “silêncio”, nem nada. Esta tarefa ficava a cargo da Maria Farkas, sua assistente neste filme. Logo percebi: diretor que é diretor não grita. Manda gritar. Ao final do dia de filmagens, jantava alegremente com toda a equipe e recolhia-se cedo, para pensar no filme, para se concentrar para o dia seguinte, como um atleta. O que, aliás, ele é, pois acordava antes de todo mundo e correia seus 8 km diários. O Jerê é maratonista e viciado em corrida.
Entendi que a fórmula de sucesso de O Menino da Porteira passava pelo equilíbrio estabelecido entre a alta voltagem de Moracy e o poder de concentração de Jeremias.
Meses depois, já com o filme tendo levado 700 mil brasileiros às salas de cinema, tive a oportunidade de me reencontrar com Jeremias para a série de entrevistas que resultou neste livro. Foram encontros memoráveis, onde Jerê se transformou num moleque, riu ao contar suas histórias de infância, falou sobre Cinema, mercado e cultura, e relembrou – sempre com seu largo sorriso – várias passagens de sua vida profissional. “Serviu como uma terapia”, me confidenciou após uma tarde de gravações.
Se este livro foi uma terapia para Jerê, para mim foi mais uma aula. Ou várias. Não apenas aulas de Cinema, mas de vida, de autenticidade, de caipirice, de generosidade. Aulas que através deste livro estão agora muito bem apreendidas e devidamente “apostiladas”.
Boa leitura.

Celso Sabadin

Eu era produtor executivo e não sabia.
Atendi ao telefone e do outro lado da linha estava o Celso Sabadin com a proposta de realizar minha biografia para a coleção Aplauso, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.
Aceitei envaidecido, mas depois conjecturei se minha vida tinha alguma relevância que pudesse interessar a alguém. Aí, lembrei da época do ginásio, nas cidades onde morei – Taquaritinga, Engenheiro Schmidt, Adamantina e Jaboticabal – quando fui considerado um caso perdido por professores e parte da família, de tanto que fiquei reprovado. E, ponderei que só por isto valeria a pena, sim. Que seria um jeito de mostrar para as pessoas, que têm alguma dificuldade com o convencional, que há vida por outros caminhos ou formas. Não estou propondo com isso um desprezo ou boicote ao ensino formal. Pelo contrário, lamento ter tido dificuldades na escola e não haver profissional especializado que me ajudasse a lidar com isso, na época. De qualquer forma, quando se toma um caminho não há como comparar com os outros possíveis. Apenas, sei que fiz do meu jeito e foi do meu jeito que toquei em frente. Tenho batalhado muito, conseguido realizar algumas coisas, ora me dado bem, ora me dado mal – mais bem do que mau – e acho que passei longe de ser o “caso perdido”, como foi diagnosticado na época.
Era bom em matemática e desenho, mas péssimo em línguas e cometia muitos erros de ortografia. O português, o francês, o inglês e o latim – sim, na época se estudava latim – atrasaram anos de minha vida, sem contar as conseqüências colaterais das inúmeras repetências. Mas, o interessante é que ninguém considerava o meu desempenho nas atividades extracurriculares.
Era atuante no grêmio com grande participação político-estudantil. Era o cara que organizava a fanfarra, os bastidores do grupo de teatro, a promoção de eventos culturais, o time de futebol. Enfim, sem saber, eu era um tremendo produtor executivo e alguém jamais olhou para isto.
Pelo menos, conscientemente, ser considerado um “caso perdido” nunca afetou meu emocional. Acho que, no fundo, eu sabia o quanto valia e sempre toquei minha vida com tranqüilidade. E foi com tranqüilidade e confiança que, em 1964, percebi que meu futuro não estava numa cidade do interior e parti, “com uma mão na frente e outra atrás”, à procura do meu caminho em São Paulo.
Esta e muitas outras histórias eu agora divido aqui com os leitores que porventura venham a se interessar por este ex-“caso perdido”.

Jeremias Moreira

Tudo começou com os Irmãos Marx… em Taquaritinga.
A primeira lembrança cinematográfica que eu tenho em minha cabeça é uma cena de um filme dos Irmãos Marx. Nela, Harpo segue um tipo mal encarado, suspeito de alguma tramoia, por uma rua escura, onde se vê uma porta fechada. O sujeito bate à porta. Surge um homem que lhe pede uma senha, ao que o tipo mal encarado responde: “Peixe Espada”. A entrada lhe é liberada. Harpo, vendo aquilo, também quer entrar. Bate à porta, aparece novamente o mesmo homem que também lhe pede a senha. Mas Harpo é mudo, e obviamente não consegue falar. Ele então simplesmente abre seu capote, e como se fosse a coisa mais natural do mundo, tira de dentro dele um peixe e uma espada. Mostra o seu “peixe/espada” para o porteiro e finalmente resolve o problema, para a gargalhada geral da platéia. Era convenção de que no interior do capote de Harpo havia uma verdadeira contra-regra dos mais diversos materiais. E aí é que estava a graça: o público já esperava para ver o que ia sair do capote.
Eu era bem pequeno, não sei dizer quantos anos tinha, mas achei tudo aquilo genial. E acho que foi naquele momento, dentro de um cinema de uma pequena cidade do interior paulista, que eu decidi o que queria fazer na minha vida: Cinema.
Além disso, havia também um fator que talvez eu possa chamar de atávico ou mesmo genético: meu pai era totalmente fissurado por cinema! Em Taquaritinga, onde nasci, havia dois cinemas. O São Pedro e o São Benedito. E meu pai ia às sessões praticamente todas as noites. É até engraçado pensar nisso hoje, mas na época em que eu nasci – 1942 – Taquaritinga tinha aproximadamente 20 mil habitantes, e dois cinemas, cada um deles com duas sessões diárias: uma às 20 e outra às 22 horas. E as quatro lotavam! Meu pai gostava tanto de cinema que às vezes ele pegava a sessão das 20 no São Pedro e a das 22 no São Benedito. Ou vice-versa. E eu cresci indo aos cinemas de Taquaritinga todas as terças, sábados e domingos, que eram os dias da semana onde eram exibidos os seriados, que a garotada tanto gostava. Nyoka, Flash Gordon, Tarzan… todos eles. Meu pai influenciou minha paixão pelo cinema.

Luzes, forno de barro, ação!
Na verdade eu “fazia cinema” desde muito pequeno, sem câmera mesmo. Morávamos numa casa bem grande, de esquina, onde uma das ruas era plana, e a outra era um aclive bem acentuado. Isso fazia com que esta casa tivesse um porão bem grande, além de um quintal cheio de árvores e um velho forno de barro já meio destruído. Quando meus amigos iam brincar em casa, não era na base do improviso, não. Tudo era “roteirizado” com antecedência: combinávamos antes qual seria o papel de cada um. Conforme a brincadeira, aquele forno de barro poderia ser um B22 da Segunda Guerra Mundial, um submarino ou um tanque de guerra. Acho que ali eu já estava “fazendo cinema”, meio que “dirigindo” meus amigos.
Peguei o gosto pela coisa, e quanto cheguei à adolescência ia aos cinemas quase todos os dias. Eu via de tudo! Tom Mix, Roy Rogers, os Irmãos Marx, filmes de espadachim com Errol Flynn, O Gavião e a Flecha e O Pirata Sangrento, ambos com Burt Lancaster… tudo o que passava lá!
Minha infância e adolescência foram meio nômades. Estudei num colégio perto de São José do Rio Preto, numa cidadezinha chamada Engenheiro (Schimdt,) Schmidt que hoje inclusive faz parte de São José. Era um colégio interno de padres agostinianos, espanhóis, e foi neste período que eu cortei todos os meus laços com a Igreja. Na época havia exame de admissão para entrar no ginasial. Português era eliminatório e eu cometia muitos erros de ortografia e deixei de ser aprovado 2 vezes. Acho que por isso me internaram no colégio São José em Engenheiro Schmidt. Eu era um garoto de estatura alta e me colocaram numa das mesas do pessoal da terceira série, no refeitório. Havia uma hierarquia na fila de entrada. A primeira série era a última a entrar. Na mesa, os primeiros a chegar serviam-se primeiro e eu sempre chegava por último. Então comecei a furar a fila. O padre Luciano tomava conta da entrada e quando ele ficava de costa eu ultrapassava o pessoal da frente, que não contestavam de medo dele. Um dia o padre virou-se exatamente no momento em que eu estava fazendo uma ultrapassagem. Ele costumava ficar com as duas mãos enfiadas nas mangas opostas da batina e permaneceu impassível até eu alcançá-lo. Quando passei por ele, padre Luciano simplesmente me tirou da fila e lascou um tremendo tapa no meu rosto e mandou-me para fora. Era a fila do café da manhã que acontecia às 6,00 h. Às 7,00h passava um trem para Taquaritinga. Revoltado, pulei o muro do colégio e fui direto para estação. Eu não tinha um tostão no bolso e ia entrar no trem e ver no que dava. Enquanto aguardava o trem comecei a fantasiar o que iria acontecer quando chegasse em casa. Eu já tinha um histórico não muito positivo em relação aos estudos e pintou o medo de apanhar do meu pai e ser mandado de volta. Por volta das 6,30 h chegaram os bedéis do colégio, que foram gentis e me convenceram a voltar. Recentemente contei esta história a um amigo e ele perguntou se algum dia eu tinha comentado com meu pai. Não havia, e meu pai já era falecido, então jamais vou saber qual teria sido o desfecho. Como metáfora de rebeldia, lamento muito não ter tomado aquele trem. Acho que teria feito diferença na minha postura diante do mundo. De qualquer forma foi o marco do meu rompimento com religião.
Depois minha família mudou-se para Adamantina, e mais tarde, em 1958, fui morar com meu irmão mais velho, o Lau, em Jaboticabal. Em Engenheiro Schmidt, lugarejo com não mais de 5.000 habitantes, havia um cinema e tanto Adamantina como Jaboticabal também tinham dois cinemas cada uma.
Eu me lembro perfeitamente que aos 14 anos de idade, já morando em Jaboticabal, li duas obras que me marcaram demais: a coleção O Tempo e o Vento, de Érico Veríssimo, e Os Meninos da Rua Paulo, do húngaro Ferenc Molnár. Elas me fascinaram muito, e eu ficava (só pensando,) só imaginando, como seria fantástico adaptá-las para o cinema, como seria maravilhoso contar aquelas histórias através de imagens. Inclusive certa vez, numa palestra, ouvi a Lígia Fagundes Telles dizendo que o texto de Érico Veríssimo é muito – palavra dela – “imagético”. E, de fato, lendo o livro eu via imagens. Quanto ao livro de Ferenc Molnár, de certa forma, ele lembra muito a minha história. Fui “moleque de rua”, que na época tinha a conotação de viver livre e solto. Eu morava na Rua Rui Barbosa, que era conhecida como Rua de Cima. A paralela de baixo era a Rua dos Domingues, chamada de Rua de Baixo. Evidentemente eu pertencia à turma da Rua de Cima e vivíamos às turras com a turma da Rua de Baixo. Nos anos 50, as ruas de Taquaritinga eram de terra e para a instalação da rede de esgotos, que se iniciava, a prefeitura abria valetas, que no inicio da noite eram transformadas em verdadeiras trincheiras pela molecada. As disputas pelo direito de utilizar estas valetas nas brincadeiras era motivo de acirradas “guerras” entre as duas turmas. Existe até semelhanças entre as fatalidades ocorridas com Nemecsek, personagem do livro, e com Zé Maria, um garoto negro e forte, três anos mais velho que eu e meu amigo. Era costume nossa turma ir nadar num laguinho, na zona rural, alguns quilômetros de Taquaritinga. Nestas ocasiões caminhávamos pela ferrovia. No remake do O Menino da Porteira faço referência a esta situação. Havia muita tabôa neste laguinho, que artesões retiravam para o fabrico de assentos de cadeira. A tabôa é uma planta que nasce e cresce em lagoas e quando cortada, bem rente ao fundo, sobra o talo, no lodo. O Zé Maria espetou o pé num desses talos e fez um corte considerável. Sua avó, com quem ele morava, fez um curativo caseiro. Alguns dias depois e a ferida infeccionou e evoluiu para o tétano. Zé Maria foi hospitalizado, mas a doença estava em estágio avançado e ele não resistiu. Praticamente foi o fim da turma da Rua de Cima. Não sei se foi por estarmos saindo da infância ou o que, mas depois disso acabaram as brincadeiras na rua.
Os Meninos da Rua Paulo narra uma história humana e envolvente, mas creio que a identificação e o desejo de transformá-lo em filme se deviam às lembranças que provocava de minha infância.
Só sei que queria fazer Cinema, mas não tinha a mínima idéia sequer de como começar a ir atrás deste sonho.

Conselho: Aparecer na Boca!
No comecinho dos anos 60, jovens de Jaboticabal que estudavam em faculdades em outros municípios criaram uma entidade, (se bem me lembro) creio que chamada CEUJ – Centro dos Estudantes Universitários de Jaboticabal – que nas férias de julho promovia a “Semana Universitária”. Era um evento que consistia em shows, palestras e atividades culturais na cidade. Numa destas palestras, o Maurice Capovilla foi convidado para falar sobre Cinema, e evidentemente eu fui lá assistir. Terminada a palestra, me aproximei dele e meio que timidamente perguntei o que era necessário para começar a fazer cinema. Ele me respondeu que a melhor coisa que eu poderia fazer era “aparecer lá na Boca”. E fiquei sem entender nada, porque eu não tinha a mínima idéia do que aquela frase poderia significar. “Aparecer lá na Boca”? O que seria isso?
Naquela época, uma das carreiras de maior sucesso que uma pessoa poderia almejar era passar no concurso do Banco do Brasil. De certa forma eu era um ser “estranho” porque meus colegas falavam que queriam ser médicos, engenheiros, advogados, mas eu não conhecia ninguém, ninguém mesmo, que falasse que queria fazer Cinema. O mais perto que alguém do meu relacionamento já havia chegado disso era uma amiga minha que estudava Música. Aí, tudo bem, porque existiam os Conservatórios. Mas e Cinema, por onde que se começa a fazer? Pra mim, era um mistério.
Até porque na minha família não havia ninguém do mundo artístico. Meu pai, também chamado Jeremias, era um comerciante. ((( de secos e molhados.))) Minha mãe, que (tinha o nome peculiar de) chamava-se Lyrss Carolina, era dona de casa. E para piorar um pouco a minha situação, eu era considerado aquele filho que (,digamos assim,) tinha tudo para dar errado.
Eu era o caçula de cinco irmãos. Pela ordem, o mais velho era Wenceslau Moreira da Silva Netto (o Lau), Wlandislau Moreira da Silva (apelidado Dinho), Rosa Moreira da Silva (Rosita) e Lyria Sebatiana Moreira da Silva. E além disso, eu nasci fora de época, temporão, 14 anos depois do Lau. E meus irmãos eram todos estudantes brilhantes, bem sucedidos, que nunca deram trabalho para os meus pais. Eu, pelo contrário, embora fosse bom em Matemática e Desenho, tinha problemas com os estudos e repeti de ano várias vezes. Era péssimo em Línguas – recentemente descobri que tenho sintomas que sugerem certo grau de dislexia. Mas me dava bem nas atividades extracurriculares como Teatro, Fanfarra, Eventos Culturais, o Grêmio, e era taxado como uma espécie de ovelha negra. Ninguém percebia que o meu potencial não estava no estudo formal, mas sim nestas atividades mais alternativas. Ninguém percebia isso. Acho que nem eu.
Ser considerado como o filho que tinha tudo pra dar errado não chegou a ser um trauma para mim. Eu levava a vida com tranqüilidade, até que em 1964 resolvi me mudar para São Paulo.

São Paulo: 14 numa República.
Como eu era muito inquieto, muito curioso pelas coisas e – claro – queria de alguma forma começar a fazer Cinema, segui o caminho óbvio e clássico de trocar o interior pela capital. Não sabia nem como começar a procurar algum trabalho em Cinema, mas tinha total consciência de que no interior eu não conseguiria ser cineasta de jeito nenhum.
Lembro-me bem que cheguei a São Paulo no começo de março, alguns dias antes do Golpe Militar. Matriculei-me num curso de Artes Plásticas e Cenografia na Faculdade Belas Artes, que naquela época funcionava no prédio da Pinacoteca, pertinho da Estação da Luz. Descia no ponto do ônibus bem perto do prédio onde na época funcionava o DOPS – Departamento de Ordem Pública e Social, um dos principais ícones da repressão. E eu me lembro bem que na manhã do Golpe, no dia primeiro de abril, toda aquela área estava tomada por barricadas e veículos militares. Era uma manhã de neblina que me fez lembrar aqueles filmes da Segunda Guerra Mundial, aquele clima europeu, o prédio do DOPS com veículos militares tendo ao fundo a Estação Roosevelt. Era uma pura atmosfera de neorrealismo italiano!
Nos meus primeiros oito ou nove meses de São Paulo fui morar na casa de minha irmã Rosita, no bairro da Vila Mariana. Achava que minha entrada para o Cinema poderia acontecer através daquele curso na Belas Artes. Achei que Cenografia poderia ser um caminho. Não foi. No ano seguinte fiz um curso de cinema no Foto Cine Clube Bandeirantes, que na época ficava na Rua Avanhandava, e que é até hoje uma tradicionalíssima escola de Fotografia.
Como eu tinha vários contatos com outros jovens que também tinham trocado Jaboticabal por São Paulo, resolvi sair da casa da minha irmã e – junto com alguns destes colegas, que moravam em diversas pensões – alugar um apartamento para fazermos uma República. Este apartamento ficava num prédio na esquina da Alameda Glete com a São João. Um pouco mais tarde veio uma outra leva de pessoas de lá que se hospedou com a gente e que depois alugou um apartamento próximo. Eram tempos românticos. Na São João passava bonde, não havia o “Minhocão”, e todos nós fizemos amizade com as prostitutas que faziam ponto nas imediações.
Mais um tempo se passou – talvez um ano – e todos nós decidimos então alugar uma casa maior na Rua Baronesa de Itu, onde reunimos as duas Repúblicas e passamos a morar em 14 pessoas. Era uma festa! Como tudo era perto, havia bastante condução, e São Paulo era uma cidade muito mais fácil de (se) viver do que é hoje, nós aproveitávamos ao máximo a vida cultural da capital. Íamos direto aos cinemas do centro, aos teatros, a todo tipo de atividade cultural que aparecesse. Assistíamos a tudo. E claro, ao futebol também. O Pacaembu ficava perto e a gente ia a pé.
Pouco tempo depois, o cursinho preparatório para vestibulares dos alunos de Filosofia da USP teve uma briga interna, rachou, e criou uma dissidência que decidiu montar o seu próprio Cursinho, o Equipe. O novo cursinho passou então a funcionar no prédio do Imaculada Conceição, um antigo colégio que dava fundos exatamente para a casa em que nós morávamos, na Baronesa de Itu. Então, nossa República de 14 pessoas, que já era agitada, de repente passa a ter como vizinho nada menos que um cursinho inteiro. Evidentemente foi uma República muito marcante que virou ponto de referência da juventude para festas, palestras e todo tipo de agitação.

A sorte de cruzar com Camilo Sampaio e Person.
Mas nem tudo era festa. Trabalhar era preciso. Arrumei um emprego de desenhista de arquitetura no Departamento de Engenharia da Secretaria de Agricultura do Estado, que ficava no parque da Água Branca. Em seguida, indicado por um colega de República, que cursava Arquitetura, comecei a fazer serviços free-lance como desenhista. E vivia disso. Dava para o gasto, mas ainda não tinha nada a ver com o tão sonhado Cinema. A inquietação continuava.
No curso que fazia no Foto Cine Clube Bandeirantes, entrei num grupo de alunos que queria realizar um curta-metragem para participar do Festival JB de Cinema Amador, um evento que o Jornal do Brasil promovia naquela época e que tinha bastante prestígio. Fizemos o curta e nada aconteceu. Não ganhamos nada, mas o fato é que de toda a equipe eu era o que menos entendia de Cinema. Tanto que me puseram para ser um dos atores do filme. Mas foi o suficiente para começar a entender alguma coisinha do assunto e para começar a travar contato com algumas pessoas da área. Mesmo porque no Bandeirantes já havia bastante gente trabalhando em cinema profissional, principalmente em produtoras de publicidade. Motivado por este primeiro curta, tive a ideia de fazer um documentário sobre os Jogos Abertos do Interior, que naquele ano seriam realizados justamente em Jaboticabal. Como eu conhecia as pessoas da cidade, pedi apoio para a Prefeitura, que prometeu me ajudar com qualquer coisa… menos dinheiro. Com a cara e com a coragem fui então ao Departamento de Marketing do Banco do Estado de São Paulo – Banespa – que, incrivelmente, aceitou patrocinar o filme. Também, era uma quantia insignificante…
Consegui um diretor de fotografia profissional para me ajudar e aluguei duas câmeras 16 mm Paillard Bolex na (numa) locadora do Honório Marin, que ficava na Rua Bento Freitas. Aliás, o Honório cedeu as câmeras sem nos conhecer, sem um cadastro, nada. Apenas foi com minha cara e disse: “um jovem que pretende fazer cinema, geralmente não bate bem da cabeça, mas desonesto não é!” Quando estava pronto para ir a Jaboticabal, o tal diretor de fotografia profissional me deu o cano e eu convidei para o lugar dele o Ricardo Iglesias, um amigo meu que era estudante de Engenharia da USP e que gostava de fotografia.
Ricardo e eu captamos as imagens, editei tudo, e fui mostrar o copião para o Banespa. Eles detestaram.
O filme não deu certo, mas ali eu percebi que os Jogos Abertos do Interior tinham um potencial muito grande para se fazer um bom documentário. E tive a consciência de que não seria eu a fazê-lo, naquela época. Ainda com a ideia na cabeça, e com a ajuda da minha prima Madalena Chiapetta, que trabalhava na Jean Manzon Produções, consegui chegar no Camilo Sampaio, produtor de cinema que havia trabalhado na Vera Cruz e que naquele momento era produtor executivo do Jean Manzon, e apresentei o projeto. Camilo não se interessou, mas passou a bola para o Luiz Sérgio Person, que achou interessante. Fomos então à Secretaria de Esportes e Turismo propor o projeto para que eles bancassem o curta. A Secretaria não se interessou, mas com isto eu me aproximei do Person, que percebeu meu interesse por Cinema.
Neste meio tempo, Camilo Sampaio havia sido contratado como produtor executivo pela G.Smith, uma produtora de filmes publicitários de muito sucesso na Argentina e que tinha se instalado no Brasil. A G.Smith trouxe para nosso país grandes profissionais como os diretores de fotografia Félix Monti e Rodolfo Sanchez. Camilo levou Sérgio Person para dirigir um filme para os Cosméticos Coty, uma marca da Gessy Lever. O Person me encaixou na equipe como assistente de produção, o que para mim foi muito interessante porque eu tive a oportunidade de fazer parte de uma equipe de cinema “de verdade” e de conhecer melhor o Person.
Porém, num filme anterior, o Person e a equipe da G. Smith não haviam se dado bem, dando início a uma certa animosidade entre eles. E como eu havia chegado até lá levado por ele, a turma também me rejeitou. Durante a filmagem, eu levava pau de todo lado: da equipe e do Person. Detestei o primeiro dia, tive que varrer cenário, servir cafezinho, estas coisas. Quase não volto no segundo dia. Mas refleti muito e percebi que estava ali minha grande chance e que não deveria deixar passar. Na manhã do segundo dia, fui o primeiro a chegar. A equipe me recebeu bem porque viu que eu também tomava pau do Person, e acabamos nos entrosando.
Foi durante este meu primeiro trabalho com cinema profissional que finalmente percebi a confirmação da minha vocação. Percebi que era exatamente aquilo que eu queria fazer como profissão. Percebi, também que o que eu fazia no tempo de estudante, como atividade extra-curricular era, eminentemente, Produção. Então, tirei aquilo de letra. Como assistente de produção surpreendi a todos. Parecia um veterano. Cheguei até a arrumar alguns objetos e locações para o filme. Realmente eu era muito mais do que um iniciante. No Cinema sim eu era iniciante, mas como Produtor não. Eu só não tinha consciência disso. Já fazia tudo aquilo há muitos anos como estudante. Só não sabia que se chamava Produção.
Neste meio tempo Person resolveu ativar a Lauper Filmes, produtora que ele tinha em sociedade com Glauco Laurelli. A Lauper (Laurelli + Person) produziu, por exemplo, o clássico O Caso dos Irmãos Naves e A Moreninha. Glauco Laurelli era também grande cineasta e montador. Dirigiu alguns filmes do Mazzaropi, e “A Moreninha”, entre outros. A Lauper era mais dedicada aos longas-metragens, ao cinema não publicitário. E o Person passou a direcioná-la para filmes publicitários. A Lauper estava sediada na Boca do Lixo, na Rua dos Gusmões, o que fez com que finalmente eu chegasse na “Boca” que o Capovilla, anos antes, havia me sugerido. O principal “ponto” da Boca era o Bar Soberano, que ficava na Rua do Triunfo. Por ali circulavam Ari Fernandes, João Batista de Andrade, Jairo Ferreira, Carlos Reichembach, Francisco Ramalho Jr., Antonio Lima, João Silvério Trevisan, Ozualdo Candeias, Sebastião de Souza, Fauzer Mansur, Antonio Meliande, Osvaldo de Oliveira, Vergílio Roveda, Jean Garret, José Mojica Marins, Tony de Souza, Sergio Hingst, Inácio Araújo, Cláudio Portioli, enfim, um pessoal que marcou o cinema paulista daquela época.
Como o Person estava sempre muito atarefado, comecei a ser uma espécie de faz-tudo para ele. Eu era produtor, assistente de direção, um pouco de tudo. Resultado: em cinco meses, saí do zero absoluto para, digamos, oitenta por cento em relação ao que eu aprendi em Cinema. Person delegava muito, o que era ótimo pra mim. Ele nem me perguntava se eu sabia fazer ou não: simplesmente mandava que eu fizesse, e eu corria atrás para aprender.
O primeiro trabalho que fiz com o Person, na Lauper, foi um filme para as Lojas Riachuelo, realizado na filial da Rua Direita. O Person chamou o pessoal da “Boca”, que trabalhava com ele em longas. O fotografo foi o Osvaldo de Oliveira, o produtor o Serginho Ricce, o Toninho Meliande o assistente de câmera, o Miro o eletricista. Quer dizer, era gente da “pesada” e eu me senti fascinado.
Depois do filme editado, Person mandou que eu fosse no Reindel fazer a trucagem. O Joseph Reindel tinha uma finalizadora de trucagem na Rua da Abolição, ao lado do laboratório Rex Filmes. Eu levei o copião e o master. Quando Reindel viu que o master não estava marcado, me deu a maior bronca. Eu nem sabia o que era trucagem e já estava levando porrada. Reindel percebeu que eu era principiante e aliviou. No segundo filme eu pedi ao Reindel para me ensinar a fazer marcação de trucagem. A partir daí eu passei a fazer as marcações. E assim, eu me virava. Deste jeito aprendi muita coisa. Foi ótimo. Foi uma forma de eu dar conta da responsabilidade.
Foi um grande salto na minha vida, não só profissionalmente, como também financeiramente. Até então, os empregos que eu tinha me rendiam um pouco mais que um salário mínimo. De repente comecei a ganhar dez vezes mais. A presença do Glauco também foi muito importante porque ele era montador, um dos maiores que a gente teve no país. Eu levava os filmes e acompanhava a montagem que o Glauco fazia. De observar eu comecei a aprender a montar. Já tinha trabalhado com uma daquelas moviolinhas manuais no curta sobre os Jogos Abertos do Interior de Jaboticabal. A proximidade com o Glauco foi um grande aprendizado na área, foi o primeiro passo para eu ser montador, que era uma coisa técnica que eu desejava muito. Eu queria sair da área de Produção, que eu sabia fazer, fazia bem, mas não me dava prazer. Na Produção trabalha-se mais a infra-estrutura, mas só depois de ser montador é que me tornei Diretor.
Nos últimos anos que eu estava trabalhando com o Person, comecei a dirigir alguns filmes publicitários para ele. Muitas vezes ele passava quase a semana inteira na casa que tinha em Ubatuba, e era comum ele pedir para que eu dirigisse um ou outro filme em nome dele. Tem uns três comerciais que o pessoal da agência e o cliente acharam que foi o Person que dirigiu, mas na verdade fui eu.
Eu achava isso sensacional (E eu adorava isso), porque era uma oportunidade de fazer o que sempre quis e de aprender (sempre) mais. O primeiro deles foi um filme de biscoitos Petybon. O Person quis assegurar que tudo correria bem e colocou dois fotógrafos. Na opinião dele o Silvio Bastos era bom iluminador e o Jorge Bodanski, bom câmera. Foi a pior coisa que poderia acontecer a um estreante, ficou um clima de rivalidade entre os dois, que eu tive que administrar o tempo todo.

1971: Pantanal de Sangue, o primeiro longa.
Foram necessários alguns anos antes que eu conseguisse trabalhar num longa-metragem. A oportunidade veio através de Reynaldo Paes de Barros, cineasta que estudou na Universidade da Califórnia e que trabalhou como diretor de fotografia em O Menino de Engenho, quando voltou para o Brasil.
Reynaldo tinha algum equipamento e fotografou alguns filmes publicitários de Person. Mas ambos tinham temperamentos totalmente opostos: Person era politizado e Reynaldo era técnico. Eles não se deram muito bem, mas eu me tornei amigo do Reynaldo. Quando Reynaldo foi realizar o longa Pantanal de Sangue, em 1971, ele me convidou para a produção e assistência de direção, e é claro que imediatamente aceitei. Tirei férias do Person e fui para Mato Grosso fazer o filme. Era uma equipe pequena, tudo foi feito na fazenda Santo Antonio do Paraíso, nas margens do rio Piqueri. Reynaldo comprou um avião monomotor, Cesna, e uma vez por semana íamos a Rondonópolis, que era uma hora de vôo, despachar o negativo para São Paulo e pegar o copião, que vinha de volta, e assistir no cinema da cidade. No elenco estão: Chico de Fanco, Elza de Castro, Milton Ribeiro, Jorge Karam e meu sobrinho Jean Stefan, que na época tinha 8 anos. O Jean havia feito alguns filmes publicitários com o Person, que o Reynaldo fotografara, e atuava com muita espontaneidade. Por isso o Reynaldo o incluiu para fazer o papel do filho do casal protagonista. O Milton Ribeiro havia feito o cangaceiro Galdino Ferreira, um papel marcante no filme O Cangaceiro, do Lima Barreto, que no ano de 1953 causara grande impacto no Brasil e no Festival de Cannes. Eu assisti a este filme ainda garoto, embalado por toda a comoção que o filme despertava, e a figura do Galdino, o chefe dos cangaceiros, era de uma presença mítica na minha lembrança. Então, ter o Milton Ribeiro/Galdino filmando comigo, no pantanal, era muita emoção. Ele chegou alguns dias depois das filmagens já terem começado e como a viajem era longa e cansativa, eu quis ser gentil e fui consultá-lo se poderia programá-lo para o dia seguinte. Só que fui infeliz na forma como me expressei. Disse algo assim: “Então Milton, posso escalá-lo amanhã? Você já estudou o roteiro?” Ele ficou possesso por eu ter perguntado se já havia estudado o roteiro e respondeu que não estava lá para fazer piquenique, que era profissional e outras coisas. Passou vários dias perguntando para pessoas da equipe, que ele já conhecia, se eu era novato em cinema. Com o passar dos dias ele relaxou e nos demos bem no restante da filmagem. Também passei a medir as palavras ao falar com ele. Assim fui “batizado” com meu primeiro longa.
Voltei a São Paulo e continuei a trabalhar no cinema publicitário.
Nesta época Silvio Bastos e Enzo Barone montaram a Filmcenter, e quando entrou o primeiro filme, Enzo sofreu um acidente de carro e me chamaram para substituí-lo na produção. Era um filme de Sandálias Havaianas, com a atriz Pepita Rodrigues. O filme não estava sendo aprovado pela Agência, que não gostava da montagem. Eu falava para o montador montar de uma determinada maneira e ele se recusava a me atender. Neste meio tempo chegou a “moviola” da produtora, uma Prevost importada da Itália. Depois de algumas versões de montagem recusadas pela agência, resolvi eu mesmo tentar montar como eu via que deveria ser. Sentei na moviola e “catando milho” editei do meu jeito e mostrei para o Silvio Bastos. O Silvio gostou muito e apresentou para a Agência. O filme foi aprovado e passei a ser um montador em potencial.
O verdadeiro aval veio do Julio Xavier. Julinho, como era conhecido, era diretor da Alcântara Machado Publicidade, hoje Almap, e dirigiu na produtora um filme de Eucatex, com Juca de Oliveira e Paulo Autran. Foi minha primeira montagem com um diretor ao lado, eu estava um pouco tenso, mas correu tudo bem. Julinho foi bastante paciente e ao final me cumprimentou, agradeceu e foi para o Bar do Zé. A Filmcenter ficava na Rua 13 de Maio e em frente ficava o Bar do Zé, onde se almoçava e a turma ficava bebendo umas e outras nos finais de tarde. Minutos depois que Julinho saiu, Silvio veio lá do Bar e disse que Julinho havia gostado de trabalhar comigo. Definitivamente eu estava oficializado como o montador da Filmcenter.
Eu não tinha assistente e fazia todo o processo de finalização: editava, separava negativo, fazia o master, marcava a truca, cuidava da dublagem, da mixagem e finalmente tirava as “reduções”. Tudo era filmado em 35mm e depois de todo o processo faziam-se cópias em 16mm, chamadas “redução”, para ser enviadas para a TV.
Nesta época conheci, no laboratório Rex, o Edgar Ferretti, um gaúcho que tinha uma produtora em Porto Alegre, a Módulo. No sul não havia laboratório e o pessoal tinha que processar seus filmes aqui em São Paulo. Ferretti andava à procura de alguém que pudesse receber o material pelo malote e fazer todo o processo sem que ele tivesse que vir a São Paulo, e me propôs um esquema. Ficava bem mais barato. Conversei na Filmcenter, que não pôs empecilho, e eu me acertei com Ferretti. Passei a ser o montador de duas produtoras e neste ano de 1972 eu montei muitos filmes que me deram muita experiência.

Dirigir Ator é Preciso!
Um fato que me incomodava nos filmes nacionais dos anos 70/80 era a falta de direção dos atores. A maioria dos diretores não tinha conhecimento de interpretação e não orientava os atores, o que era visivelmente desagradável. Até nisso tive sorte: trabalhei com Person e, mais tarde, com Roberto Santos e Roberto Palmari, que dirigiam bem ator, e “suguei” tudo o que pude, sobre interpretação, dos atores Jofre Soares, Wanda Kosmo, Célia Helena e Fernando Peixoto durante as filmagens de O Predileto. ( Aprendi muito com eles.)Eu queria ser diretor e queria saber dirigir ator. Eugênio Kusnet, grande ator de teatro e de alguns filmes da Vera Cruz, e que foi um dos introdutores do Método Stanislavisk no Brasil, estava dando um curso sobre o processo criado e desenvolvido pelo diretor Russo, no Teatro Aliança Francesa. O curso era só para atores, mas consegui acompanhar como ouvinte. No ano seguinte, 1972, o Balleteatro, uma escola voltada para dança e artes cênicas, que ficava na Rua Alves Guimarães, iniciou um curso de interpretação, com duração de dois anos, ministrado por Eugenio Kusnet. As vagas eram limitadas e havia um teste de seleção. Expliquei ao Kusnet que não pretendia ser ator, mas entender como era todo o processo de um ator na criação de um personagem. Ele achou interessante esta minha intenção e me aceitou, porque eu jamais teria passado no teste.
Depois de já ter filmado O Menino da Porteira e Mágoa de Boiadeiro, voltei a cursar o Macunaíma e tive aulas com Sylvio Zilber e com Iacov Hillel. Mais tarde conheci o trabalho desenvolvido por Viola Spolin, uma diretora ítalo-americana que criou a Young Actors Company Hollywood, uma escola de interpretação voltada para crianças e não atores. Ela partiu do princípio que qualquer pessoa que desejar pode ter valor no palco e trabalhava muito a improvisação. Eu mesclei Viola Spolin com Stanilavisk e apliquei, com muito sucesso, em muitos filmes publicitários, principalmente com crianças.

(Em Agência) Na Agência, um estranho no ninho. (pôr a “mão na massa”.)
Cada vez mais me especializa e me firmava como montador. Os diretores gostavam de trabalhar comigo pela minha boa vontade em fazer o que pediam. Nunca dei minha opinião antes de fazer um corte ou executar uma seqüência. Mesmo sentindo que não ia funcionar, primeiro eu fazia para depois dar minha opinião. Defendia com determinação meu ponto de vista, mas entendia que o filme era do diretor e a palavra final era dele.
Em 1973 virou moda, no meio publicitário, finalizar filmes na Argentina. O Laboratório Alex de Buenos Aires tinha realmente mais profissionalismo e qualidade que os nossos.
Era um prédio imponente com a fachada toda em mármore e ficava no bairro Palermo. No Alex se concentrava quase que toda a produção cinematográfica da Argentina. Era uma espécie de “Boca” mais refinada. Lá, diversas produtoras mantinham salas de edição e os técnicos faziam ponto à espera de trabalho. Numa das vezes em que fui ao Alex encontrei o Felix Monti, diretor de fotografia que havia conhecido na G.Smith, no meu primeiro trabalho com Person. Monti havia fotografado diversos filmes importantes, inclusive na Europa, e estava com muito prestígio, porém demonstrou a mesma simplicidade, foi muito simpático e, sinceramente, mostrou-se contente com minha evolução. Em outra vez, que fui acompanhado pelo Dorian Taterka, pois íamos montar o filme lá, havia uma greve geral na Argentina. O laboratório estava fechado e tivemos que ficar alguns dias em Buenos Aires. Num destes dias houve uma marcha pela volta do Perón e nós resolvemos ir. À noite procuramos um lugar para jantar, mas por causa da greve e da marcha, estava tudo fechado. Por fim encontramos um bar, e desavisados, entramos. O bar estava todo ocupado por “Montoneiros” que, por sermos estranhos, nos olharam com desconfiança e nos “enquadram”. (questionar.) Depois das explicações de que éramos brasileiros e que estávamos a trabalho e fomos surpreendidos pela greve, ficou tudo bem e passamos a noite na companhia deles.
Quando a Pepsi fez a grande tentativa de disputar o mercado brasileiro com a Coca-Cola, os filmes da campanha foram feitos pela Filmcenter. A Mauro Salles Publicidade, criou o tema “Nós escolhemos Pepsi, e ninguém vai nos mudar” e o grupo Sá, Rodrix e Guarabira fez (fizeram) a música. Foi um tremendo sucesso. Montei os filmes e o diretor João Callegaro, que era o chefe do departamento de Rtvc da Agência me convidou para trabalhar lá. Eu achei que estando numa Agência de Propaganda eu começaria a dirigir e aceitei. A Mauro Salles tinha uma política de que o pessoal de Rtvc apenas supervisionava os filmes da agência. Passei a sentir falta de atividade, do “fazer cinema”, de pôr “a mão na massa” e depois de oito meses de tédio, e me sentindo um estranho no ninho, me demiti.
Um fato positivo de ter ido para uma Agência foi que passei a ter horário e disponibilidade para voltar a estudar. Entrei na Escola de Sociologia e Política, porém ao retornar (voltar) para a realização, voltar a fazer cinema, não consegui mais tempo e tranquei a matrícula no segundo ano. Infelizmente para sempre. Outro fato, foi que a Mauro Salles trabalhava bastante com a Lynxfilm, e eu estabeleci bom contato com eles, principalmente com Sadi Scalante.
Assim que sai da Mauro Salles, Olivier Perroy me chamou para fazer a produção do seu filme Efigênia Dá Tudo que Tem, uma comédia com Etty Fraser, Ricardo Petraglia e Nádia Lippi. Perroy fez uma adaptação do livro Olho Mecânico, de A. C. Carvalho, e foi o filme mais divertido que participei. As cenas eram muito engraçadas e riamos muito ao realizá-las.
Silvio Renold, um dos maiores montadores brasileiro, era co-produtor do filme e fez a montagem. A sincronização dos diálogos estava atrasada, ele pediu minha ajuda, e passamos a nos revezar. Certo dia Silvio chegou mais cedo e viu como eu executava a sincronização. Fez a maior gozação e me ensinou o jeito correto, que era muito mais rápido. Eu me tornei montador de observar o Glauco e porque edição é uma abstração que se faz mentalmente. Saber operar o equipamento é outra coisa. Eu era um montador respeitado, mas conhecia poucos macetes porque não tinha sido assistente de montagem. Macetes são transmitidos e a vantagem de ser assistente é que se aprende com a experiência dos outros. Isto corta caminho.

Após O Predileto, maior dedicação ao longa.
A LynxFilm ia produzir o filme O Predileto, do Roberto Palmari, e o Sadi Scalante me convidou para fazer a direção de produção. Aceitei. Além de ser uma experiência maravilhosa, foi um passo determinante para que eu realizasse os meus filmes. Palmari dirigia atores muito bem e o elenco do filme é fantástico: Jofre Soares, Othon Bastos, Célia Helena, Wanda Kosmo, Suzana Gonçalves, Fernando Peixoto, Xandó Batista, Abrahão Farc. Foi um grande aprendizado ver como esse pessoal construía cada um o seu personagem e como o Palmari os conduzia. Boa parte das filmagens aconteceu em Rio Claro, e o elenco coadjuvante era todo de lá, pessoas sem experiência, que o Palmari ajudava a compor seus papéis. Por exemplo: para compor as prostitutas do bordel foram escolhidas pessoas com aparência bem comum, sem estereótipos. Assim que a locação, um velho hotel desativado, foi decorada, essas mulheres mudaram-se para lá e passaram a fazer “laboratório” como se fosse a casa delas. Uma das mulheres era costureira, levou sua máquina de costura e transferiu seu atelier para lá. A fazenda do Teotônio, personagem vivido por Jofre, ficava num vilarejo próximo a Rio Claro chamado Ajapi. A casa era enorme, e fora erguida há mais de 200 anos e com o estilo mais parecido com as construções sicilianas do que com o colonial dos barões do café. Para a realização da cena do velório de Teotônio, o dono da fazenda foi comigo em todos os sítios da região convidar a “vizinhança” para um churrasco e para participar como figurantes. A condição era que se vestissem como se fossem a um velório de verdade. Incrível como ficou autêntico. Dificilmente um diretor de arte faria melhor. Coisas assim deram verdade ao filme e vivenciar estas experiências foi fundamental na minha formação como diretor. Outro fato importante e decisivo para os filmes que vim realizar depois, foi que eu percebi que havia muita facilidade em filmar numa cidade do interior. A prefeitura prestava todo tipo de ajuda e a população colaborava com a maior boa vontade. (, pois se encontrava a colaboração da prefeitura e da população.)
Depois das filmagens concluídas eu (Outro fato importante é que) me ofereci para montar o filme e o Palmari topou. O Predileto foi o primeiro longa que montei e tenho plena convicção que contribuí para a qualidade do filme. Em 1976, ele ganhou diversos prêmios (o prêmio de Melhor Filme) no Festival de Gramado, entre eles o de Melhor Filme, e me abriu muitas portas no meio cinematográfico.
Seis (Quatro) anos depois de Pantanal de Sangue, e após produzir e montar O Predileto, comecei a reduzir bastante meu ritmo como montador de filmes publicitários. Parar, nunca parei de fazer publicidade, mas passei a me dedicar muito mais ao longa-metragem.

Afinal, O Menino da Porteira.
(A importância em perceber que havia facilidade para a realização de filmes numa cidade do interior foi que vi a possibilidade de produzir filmes meus. ( passei a ver de viabilizar uma produção de baixo custo.) Depois destas primeiras experiências com longas-metragens e de perceber que havia facilidade para a realização de filmes numa cidade do interior, obviamente me deu vontade de fazer meu próprio filme. E queria que fosse um filme popular (comercial), que o público gostasse de assistir, enfim, que fizesse sucesso de bilheteria. Para isso, andava a procura de temas que pudessem causar nas platéias o mesmo impacto que ( , por exemplo,) os filmes do Mazzaroppi. (causavam.) Certo dia na Lynx, conversando sobre essa facilidade em filmar no interior e o foco em filmes populares, o Marcos Weinstock disse que o Lauro César Muniz havia lhe disponibilizado seu texto, O Crime do Zé Bigorna. Eu conhecia o texto e achava que tinha o tom popular que andava buscando e começamos a estudar a possibilidade da sua realização. Conversei com o Carlos Raeli, que era gerente comercial do Laboratório Rex Filmes, que prometeu toda facilidade. Resolvi que faria a produção executiva do filme e daria a direção para alguém mais experiente. Ocorre que o Marcos ainda não havia avisado ao Lauro que estávamos empenhados na realização do seu texto e neste meio tempo, ele cedeu os direitos ao Anselmo Duarte, que realizou o filme. Voltei para a estaca zero e a pesquisar outra possibilidade, até que certo dia li uma matéria no jornal Folha de S. Paulo que falava sobre a experiência da famosa dupla caipira Tonico e Tinoco. O jornal dizia que além de se apresentar em circos e de cantar suas músicas de sucesso, eles também representavam pequenas peças de teatro, a partir das letras de suas canções. Uma delas era “A Vingança do Chico Mineiro”, dramatização de um dos maiores sucessos musicais da dupla. Aquela matéria, no fundo, tinha a intenção de chamar a atenção do pessoal de teatro para temas populares em recintos populares.
Neste instante me acendeu uma luzinha e percebi que ali havia um caminho interessante para o Cinema. Novamente procurei o (então) Antonio Carlos Raeli, que (era diretor comercial da Rex Filmes, e que já) havia (em determinada oportunidade) gostado da minha proposta anterior e manifestado interesse em produzir alguma coisa comigo. (neste contexto.) Mas se por um lado ele estava entusiasmado com este tipo de cinema ( proposta), por outro ele me jogou logo de cara um balde de água fria: alguém já tinha produzindo um filme baseado na canção “A Vingança do Chico Mineiro”. Tanto que tiveram que trocar de nome porque o título já estava registrado. O filme acabou se chamando “A Marca da Ferradura”, foi estrelado pela dupla Tonico e Tinoco… e foi um grande fracasso.
Recebi a ducha fria do Raeli numa sexta-feira de fevereiro de 1976. Logo na segunda-feira seguinte ele me telefonou, pedindo que eu fosse até a Rex, pois no domingo ele havia ido a um clube de campo na Cantareira, onde se encontrara com o cantor Antonio Marcos e com o produtor Moracy do Val. Neste bate papo a três acabou vindo à tona o assunto do filme, onde Moracy propôs fazer a dramatização da música “O Menino da Porteira”, que havia sido regravada com muito sucesso por Sérgio Reis, um cantor que estava reinventado sua carreira. Após o final do movimento Jovem Guarda, onde Sérgio vendeu muitos discos com “Coração de Papel”, ele estava naquele momento se dedicando ao repertório sertanejo.
Marcamos então imediatamente uma reunião no escritório de Antonio Marcos, que ficava na Rua Topázio, no bairro da Aclimação. O entusiasmo era tanto que a reunião aconteceu logo na noite seguinte, uma terça-feira, onde nasceu oficialmente a Topázio Cinematográfica, inspirada no nome da rua. Antonio Marcos ligou para Sergio Reis, que foi de Santana à Aclimação em 15 minutos. O convite que fizemos para ele estrelar o filme foi aceito imediatamente.
Coube a mim desenvolver o roteiro. Uma letra de música não é um roteiro. Pode servir de inspiração, mas nem chega a ser um argumento. A letra da música O Menino da Porteira narra uma história que mais sugere do que conta e deixa ao público imaginar o que acontece. Ela não sustenta um argumento para um filme de noventa minutos. Eu tinha a minha concepção do como construir esta história e convidei o Ciro Pellicano, um redator que conheci na Salles, para trabalhar comigo no roteiro. O Ciro era extremamente solicitado na agência e não dispunha de muito tempo, mas conseguimos sentar um dia e saiu um argumento. Neste tempo também comecei a viajar a procura das locações. Numa dessas viagens alcançamos uma grande boiada que ocupava um longo trecho da estrada. Estávamos com um Gordini e um boiadeiro cavalgou na nossa frente e afastava os bois, que eram mais altos que o carro. Durante esta travessia, observando os bois e o jeito dos boiadeiros de lidar com eles, percebi que eu estava totalmente equivocado com o roteiro. Resolvi mudar radicalmente. Eu ia ficar pelo interior procurando locações e o Ciro era muito ocupado. (como) Meu irmão mais velho, ainda morava em Jaboticabal e tinha uma grande vivência no interior (em fazenda) e conhecia bastante o universo rural. Propus a ele (que viesse) trabalharmos juntos (comigo) neste roteiro, até para ele ocupar um pouco a mente e pudesse superar melhor a morte da sua esposa Beatriz, que havia acontecido há pouco tempo. Durante o dia (, ele trabalhava no roteiro, e) eu viajava em busca de locações e à noite, quando eu voltava, trabalhávamos (mais um pouco) no roteiro (texto). Aproveitei algumas boas idéias do (publicitário) Ciro Pellicano, e o roteiro acabou sendo feito a seis mãos – Ciro, Lau (meu irmão) e eu, embora meu irmão e o Ciro nunca tivessem se encontrado pessoalmente.
Fui dando nome aos personagens como homenagem a pessoas que significassem algo para mim. Assim o “menino” recebeu o nome Rodrigo, porque era o nome do meu filho, a Juliana, enteada do Major e protagonista, o nome da minha filha, o boiadeiro vivido por Sergio Reis, Diogo, era o nome do então menino Diogo Poças, que era amiguinho de meu filho, o Dr Almeida em homenagem ao medico que realizou em minha mãe, o parto que nasci. Otacílio e Carolina, os pais do menino, porque Carolina era o segundo nome de minha mãe e Otacílio, um montador amigo. O Major Batista em homenagem ao Major Prata, um senhor ranzinza de Taquaritinga que todo dia ameaçava furar a bola se caísse novamente em seu quintal, mas que todo dia nos devolvia. O personagem Xico Fú foi inspirado numa pessoa real que viveu em Adamantina, mas o nome foi um trocadilho com “fuxico”.
Na busca por locações, recebi uma dica para procurar o prefeito de Novo Horizonte, que tinha uma fazenda que poderia ser muito boa para o que queríamos. No sábado, fui com o Marquinhos, irmão do Antonio Marcos, até lá, (num sábado,) mas o prefeito não quis nos receber, alegando que estava muito ocupado fazendo a sua declaração de Imposto de Renda. (Ele recomendou que passássemos o final de semana na cidade, que ele) Nos atenderia só na segunda-feira. Fiquei profundamente decepcionado com isso, e resolvemos sair pelas redondezas, em busca de outras locações, mas nada dava certo. Chateado, combinei com o Marquinhos (irmão do Antonio Marcos) de voltarmos a São Paulo. ( no domingo mesmo. E foi o que fizemos.) Levantamos domingo cedo e pegamos a estrada de volta. Ao passar por (Passando perto de) Borborema, vimos uma faixa que anunciava uma Festa do Peão Boiadeiro que aconteceria naquele mesmo fim de semana, lá mesmo em Borborema. Decidimos então visitar a tal festa. Entramos na cidade, e como muitas ruas estavam interrompidas por causa dos festejos, estacionamos o carro e fomos ver o desfile que estava acontecendo. (começamos a andar a pé.) Foi justamente quando passou (, do nosso lado,) um carro de boi com uma dupla sertaneja em cima cantando nada mais nada menos que “O Menino da Porteira”. Foi incrível! Me convenci naquele momento que as filmagens teriam de ser lá.
Acabado o desfile ( a festa,) fomos abastecer o carro, e perguntamos ao frentista quem era o responsável pela organização de todo aquele evento. Ele disse: “É o Zizinho Torres, e por sinal ele ta vindo ali, olha!”. Era coincidência demais! A gente procurando o organizador, e o organizador vindo a cavalo, na nossa direção. Conversamos com o Zizinho, que já conhecia o Sérgio Reis, e depois de passar algumas instruções para o pessoal da festa, prontamente ele nos levou para a fazenda dele, que servia perfeitamente como locação.
Voltamos para São Paulo, continuamos a trabalhar no roteiro, mas ainda faltava achar as locações para as cenas do filme que se passavam numa cidade. Borborema, para isso, não servia, pois suas ruas eram muito cheias de aclives e declives. Sérgio Reis recomendou então que eu fosse ver Tabatinga, que serviu perfeitamente para o que eu queria, pois ela tinha os traços arquitetônicos perfeitos para o filme, além de ser plana. Filmamos então a parte rural em Borborema e a parte urbana em Tabatinga, o que acabou gerando uma ciumeira danada entre os habitantes das duas cidades. As prefeituras das duas cidades ajudaram muito, oferecendo hospedagem, transporte e infra-estrutura.
Embora fôssemos todos profissionais, naquela época o Cinema ainda tinha um jeitão bastante amador, romântico, uma verdadeira ação entre amigos onde cada um colaborava o máximo que podia. Tanto que esta versão de O Menino da Porteira foi totalmente filmada com uma equipe de apenas oito pessoas, o que é absolutamente impensável nos dias de hoje.
Foi tudo muito rápido. Tivemos a conversa inicial em fevereiro de 76. Em junho já estávamos filmando (a filmagem durou 32 dias) e em julho eu já estava montando. O lançamento aconteceu em 77. Mesmo sendo meu primeiro longa como diretor, o primeiro filme do Sérgio Reis como ator e também o primeiro do Moracy como produtor, tudo transcorreu de maneira muita tranqüila, rápida, e num clima de muita cooperação. A boa convivência que tive com Jofre Soares durante as filmagens de O Predileto facilitou nossa negociação quando o convidei para viver o papel do Major Batista. A participação do Jofre deu consistência ao personagem e valorizou o filme.
Hoje, eu percebo que, como dramaturgia (dramaturgicamente), o roteiro tinha algumas coisas muito fracas, mas elas acabaram sendo compensadas pela verdade de quem sabia do que estava falando. Eu sou caipira. Meu irmão também. O Ciro Pellicano é de São Carlos. Estávamos todos falando de um assunto que conhecíamos muito bem, e isso compensou um pouco a falta de uma dramaturgia mais consistente.
Essa verdade de quem sabe o que está falando (E isso também) causou uma forte identificação com o público que foi ver o filme.

(No) O primeiro “menino”, uma garra incrível.
Definidas as locações, o roteiro, e com Sérgio Reis no papel principal, faltava definir o ator mirim que faria o papel título do filme. O que quase ninguém sabia é que eu já tinha em mente, há muito tempo, quem faria este papel. Sabia disso antes mesmo de existir a ideia do filme.
Como eu trabalhava simultaneamente com cinema publicitário e longas-metragens, a escolha do ator para o “menino” acabou acontecendo através de um comercial de televisão. Num momento em que o projeto do filme sequer existia ainda. Foi montando um filme de Maionese Hellman´s com o João Daniel, da Jodaf. O comercial era com ( , que tomei conhecimento de) um garoto que fazia um trabalho fantástico como ator mirim. O nome dele era Márcio Costa. Falei com a mãe de Márcio, ela topou, e tudo deu certo. Foi um tiro único e na mosca. Márcio era um garoto ótimo, de personalidade impressionante, que tinha seus objetivos e lutava muito por eles. Por exemplo, quando cogitei arrumar um dublê para as cenas de cavalgada, ele não admitiu de jeito nenhum, e em três dias aprendeu a andar a cavalo. Quando acabaram as filmagens, que na época não eram feitas com som direto, comecei o trabalho de dublar a voz de Márcio, pois todos os atores eram dublados – por si mesmos ou por outros dubladores – naquele momento em que se utilizava apenas o som guia para posterior dublagem. Márcio ficou sabendo que seria uma mulher que iria dublá-lo, procedimento aliás bastante comum na época, onde dubladoras profissionais empostavam suas vozes de modo a parecer vozes infantis. Mas Márcio não se conformou com isso. A mãe dele me ligou falando que ele estava desolado e que queria fazer um teste para dublagem. Marcamos o teste e eu selecionei para ele dublar logo de cara um dos trechos mais difíceis do filme, sabendo que se ele conseguisse fazer aquele “anel”, como chamávamos, ele conseguiria fazer todo o resto. Mas não conseguiu. Expliquei então para a mãe dele que a dublagem é um processo bem difícil, e que às vezes atores tarimbados também não conseguiam. Márcio saiu inconsolável.
À noite, a mãe dele me ligou novamente: o garoto queria tentar fazer outro teste. Ela tanto insistiu que eu deixei. Quando ele chegou no estúdio, a pessoa que o dublaria já estava lá. Márcio entrou na sala, não se intimidou, colocamos o anel de gravação, e ele conseguiu! No primeiro dia ele havia compreendido o mecanismo da dublagem, e no segundo teste foi perfeito. É o que eu chamo de “crescer no intervalo”. Acredito que ele deva ter pensado muito em todo o processo, para compreender logo em seguida e se sentir seguro para tentar novamente. Foi impressionante! Ele dublou direitinho, contracenando com Jofre Soares. Ele dava o tom, colocação de voz, tudo. E a partir daí fez a dublagem inteira. Foi tão marcante, que quando ele fez o teste, a mulher que iria dublá-lo assistiu a tudo, olhou para mim e disse: “Você não precisa falar mais nada. Tchau!” Ela aceitou, ela percebeu que tinha que ser ele.
O Márcio tinha uma garra incrível. Ele foi muito bem no filme e foi muito fácil dirigi-lo. Tanto que em Mágoa de Boiadeiro criei um personagem especialmente para ele. Só que entre um filme e outro, ele fez uma novela na Rede Bandeirantes, e adquiriu vícios de televisão. Ficou mais difícil. Deu para tirar o jeito estereotipado de novela, mas foi bem mais complicado. Ele já não estava mais tão espontâneo como em O Menino da Porteira.
Márcio acabou seguindo carreira, foi ator de teatro e chegou até a dirigir um grupo teatral. Infelizmente, faleceu muito jovem, aos 34 anos. Uma das homenagens póstumas da versão 2009 de O Menino da Porteira foi dedicada a ele, que era um garoto extremamente determinado.

Na tela, Sérgio Reis com voz de John Wayne.
Trabalhar com Sérgio Reis também foi um prazer muito grande. Ele colaborou muito, demonstrando extrema boa vontade, sempre disposto a fazer tudo o que fosse preciso, para o bem do filme. Ele não tinha, por exemplo, muita habilidade em andar a cavalo, mas treinou bastante, se esforçou muito e fez com profissionalismo as suas cenas. Enfrentei ainda algumas dificuldades de expressão corporal, pois Sérgio é muito alto, muito grande, o que às vezes dificulta o trabalho do ator, corporalmente falando. Mas ele superou isso com a emoção que colocava nas cenas.
Uma característica interessante de Sérgio também era a facilidade com que ele absorvia o jeito de falar dos atores com os quais contracenava. Ainda bem que não era som direto. Quando ele contracenava com Jorge Karan, que é do Rio Grande do Sul, ele pegava o jeito de falar de gaúcho. Ao contracenar com Jofre Soares, falava com sotaque nordestino. E assim por diante. Na pós-produção, Sérgio foi dublado por Marcos Miranda, que era o dublador de John Wayne. E isso ajudou muito a interpretação final.
Mas de qualquer maneira foi fácil trabalhar com Sérgio pela boa vontade, pela disposição. Não havia nenhum estrelismo por parte dele, que é uma pessoa de sensibilidade, que conseguia entender a dramaticidade de cada cena e dar a intenção e o tom adequado. (conseguindo fazê-la com o tom necessário.)
Quando se prepara um cantor para atuar, já existe logo de saída este tipo de facilidade, pois um cantor é, antes de tudo, um intérprete. Ele tem esta facilidade, já trabalha intuitivamente com interpretação. Existe a sensibilidade, mas não a técnica de interpretar. Se o diretor ajuda, tudo acaba dando certo, e foi isso que aconteceu com Sérgio. Foi muito gratificante trabalhar com ele, tanto que a parceria se estendeu para o filme seguinte, Mágoa de Boiadeiro. (, onde tudo também correu muito bem.)
Terminadas as filmagens, fiz questão também de montar O Menino da Porteira. Com a experiência obtida na montagem de filmes publicitários e a do O Predileto, desenvolvi um “olhar do montador”. É comum não dar muito certo quando o diretor monta o seu próprio filme, pois há uma tendência dele “se apaixonar” pelos planos que faz, e não querer eliminá-los quando necessário. Felizmente não tenho este problema: quando tem que cortar, eu corto, sem dó nem, piedade. Acredito que consigo perceber os momentos desnecessários para eliminá-los do filme.
Naquela época, também, não havia muito espaço nem verba para desperdícios. No primeiro O Menino da Porteira filmei exatamente os planos que foram montados. Só sobrou um. Quando ia filmar, já tinha na cabeça exatamente o que eu queria. Nunca passei de três (cinco) tomadas por plano, e houve planos até que filmei uma única vez. Já decupei montado. Não costumo fazer story board, mas sim uma planta baixa que mostra como será realizada cada tomada. Depois faço uma descrição do plano, coloco os planos todos na planta, e cada planta tem sua descrição.
Já na publicidade faço planos de cobertura de tudo quanto é lado, o que dá várias opções para o montador. Mas no longa-metragem, não. Como dizia John Huston, “quem tem um, não precisa de dois”.

Zé Coqueiro e Filoca caíram do céu.
Intuitivamente achávamos que o filme, para ser popular, deveria mesclar música, drama, aventura, romance e humor. O fato de ser inspirado numa música e ser estrelado por um cantor era um indicativo de que deveria ter um lado musical bastante acentuado. O drama já está embutido no tema da música que fala da morte de um menino que abria a porteira para a boiada passar. Aventura porque entravamos no universo mítico do boiadeiro, uma figura que na fantasia da gente do interior tem seu modo de vida repleto de ousadias e adversidades. Esta fantasia também sugere romance uma vez que o repertório caipira exalta o boiadeiro como o homem forte e destemido e ao mesmo tempo gentil e galante. Sem uma razão clara e palpável, o filme também deveria ter humor. Talvez fosse pela referência que Mazzaroppi era para nós. Seu público era nosso alvo. Pensando nesse lado cômico, eu e o Lau concluímos que deveríamos criar um personagem simplório e que fosse uma espécie de Sancho Pança para o boiadeiro. Criamos então o Zeca Toco. Pensamos, também, que ele deveria ter uma alma gêmea feminina. Uma mulher, também simplória, que era muito apaixonada por ele e que não lhe dava sossego. A este personagem chamamos de Filóca, por ser um nome delicado e com uma sonoridade jocosa. Quando apresentei a idéia para os meus sócios o Luizinho, um dos autores da música estava presente. Eles gostaram e começamos a discutir o tipo físico que o “Zeca Toco” deveria ter e citar nomes de atores que poderiam interpretá-los. Alguém sugeriu que o ator para esse papel deveria ser desconhecido e encontrado no universo circense. Imediatamente o Luizinho tratou de “vender” seu irmão, Walter Raimundo, que era um cantor cômico que, juntamente com as irmãs Irai e Jaci Ferreira, formava o trio “Coqueiro, Irai e Jaci” e se apresentava em circos.
Procurei conter o ânimo do Luizinho e disse que tinha que ser uma escolha profissional e não dava para formar o elenco com membros das famílias dos interessados no filme. O Luizinho continuou afirmando com toda a segurança que seu irmão era muito bom, que podia fazer um teste e me convidou de assistir uma apresentação do trio. A apresentação foi marcada para o sábado seguinte, no “Circo do Carlito”, na periferia de São Paulo. A atração daquela noite era um show de “luta-livre” e o Carlito abriu uma brecha para o trio se apresentar para minha avaliação do Walter. Era uma espécie de teste, porém o público não sabia. Quando o Carlito anunciou que haveria uma surpresa com a apresentação do trio Irai, Jaci e Coqueiro, a platéia, que queria ver luta livre, começou a vaiar. Fiquei com pena deles e imaginei uma catástrofe. Eles começaram a apresentação sob vaias e foram revertendo a situação e no final o publico não queria deixá-los sair do picadeiro. Fiquei impressionado com o domínio que eles tinham da platéia e gostei muito do Walter. Senti que ele tinha o tipo e potencial para ficar com o papel do “Zeca Toco”. Descobri também que a Jaci Ferreira poderia fazer a Filoca. Foi o tipo de solução mágica que satisfez todo mundo. O Walter e a Jaci nunca haviam se aproximado de uma câmera e não tinham a menor noção de como se portar diante de uma. Realizei alguns ensaios e dei algumas orientações e eles se descontraíram. Depois de a