JOEL PIZZINI, EXCLUSIVO PARA O PLANETA TELA, FALA SOBRE “ANABAZYS”.

Co-diretor, ao lado de Paloma Rocha, do documentário “Anabazys” (leia crítica neste site), o cineasta Joel Pizzini conversa com o Planeta Tela sobre o processo criativo de Glauber, e fala de seus planos para continuar a documentar a gigantesca obra do cineasta.

PLANETA TLEA – O que significa a palavra Anabazys e porque vc. opta por não explicá-la durante o filme?
JOEL PIZZINI – “Anabazys” é o nome de uma das versões do roteiro de “A Idade da Terra” e vem do grego clássico, podendo a palavra significar “ascensão” e conforme a mitologia, diz respeito a uma reportagem de guerra de Xenofonte que quer dizer “marcha rumo ao interior de um país” e também na música “anábasis” se refere a “linhas melódicas ascendentes”. Todas essas definições são aplicáveis a obra de Glauber. O diferencial é que acrescentamos o Z e o Y, que tem a ver com a nomenclatura que ele adotou na sua linguagem escrita. Decidimos não explicar no filme a gênese do termo, para manter o caráter enigmático do filme e do universo transfigurado.

PLANETA TELA – De uma obra tão gigantesca, prolixa, plural e polêmica como a do Glauber, quais foram suas maiores dificuldades para encontrar o enfoque preciso (o chamado “recorte”) que vc. deu ao filme?
JOEL PIZZINI – O desafio foi justamente encontrar a unidade sem que o filme ficasse linear e esquemático. No DVD, a primeira versão era mais blocada, pela função mais pedagógica desta mídia, mas no filme nos “desblocamos” completamente o fluxo narrativo, justamente para construir uma articulação polifônica coerente com a dicção delirante e operística do Glauber, levada ao extremo em “A Idade da Terra”. Elaborar um claro enigma é que foi a intenção, e nesse sentido, a colaboração de Ricardo Miranda foi essencial, pois ele foi montador de “A Idade da Terra” e tem uma familiaridade muito grande com o material. Depois contamos com a contribuição de Alexandre Gwaz e Marina Meliande que ajudaram a produzir sentido no caos que foi a reunião de várias texturas, matrizes e materias de diversas fontes e sistemas. O mote narrativo é concentrado nas várias vozes de Glauber que recria em primeira pessoa, sua própria “eustorya”, recorrendo a um termo inventado por ele, que sugere uma síntese entre a saga individual e o drama histórico tratado no filme.

PLANETA TELA – Ao contrário dos documentários mais tradicionais, Anabazys opta por não colocar os famosos “créditos” ou “GCs” tanto nos depoentes como nas cenas dos filmes de Glauber. Por quê?
JOEL PIZZINI – Primeiro, pra ser coerente com o próprio Idade da Terra, cuja proposta do Glauber era não colocar letreiros e sequer numeração dos rolos, para que o projecionista participasse também da montagem final da obra. Além disso, percebemos que a identificação interrompia o fluxo rítmico do filme. Nos demos conta que ninguém era “entrevistado” do filme, as pessoas que iluminam as passagens históricas, às vezes, surgem com uma frase, uma interrogação, como se fosse personagens de “Anabazys”. Essa licença poética só foi permitida porque a meteria tratada, “A Idade da Terra” em essa dimensão onírica, de obra aberta. Para os extras do DVD, mantemos os créditos mas no filme a gente viu que desviava a fruição, onde a vertigem barroca, faz parte da proposta. Propomos uma experiência estética para o espectador que depois poderá saciar sua curiosidade no DVD ou na literatura existente à respeito. Não tivemos a pretensão de esgotar os temas evocados, apenas abordá-los de forma livre e sensorial às vezes. Agora, tudo com muito rigor, respeitando a informação sim, mas do ponto de vista “épico-didático”, onde o espectador completa a obra, fazendo co-relações a partir do mosaico composto pelo filme. Foi uma opção estética, refletida, onde a banda sonora também tem uma função narrativa. Costumamos dizer que não é um filme “sobre” mas “com” Glauber Rocha.

PLANETA TELA – É impressionante a atualidade – até os dias de hoje – do que Glauber dizia. Num exercício de criatividade, é possível imaginar qual seria a postura dele diante do cinema brasileiro atual?
JOE PIZZINI – Ele continua incomodando, presente através da atualidade de suas idéias que não foram ainda devidamente digeridas, daí a importância política que vejo na restauração de seus filmes. O mito, ganha agora uma dimensão mais humanizada e ele volta a se tornar um padrão de exigência muito forte para nós.
A frase dele que está em Anabazys, “uma coisa é você conquistar o público, a outra é explorar o público”, ao citar o exemplo a performance de “Macunaíma” que teve uma grande resposta de público, continua ecoando…
Glauber sempre foi preocupado com a construção de uma indústria de cinema no Brasil. Só que ele propunha uma indústria de autores, com espaço para todas as vertentes do cinema, não para garantir a hegemonia de apenas um tipo de cinema. Contra isso ele lutou firmemente. É bom lembra que Glauber foi um dos artífices da criação da Embrafilme, da Difilm (distribuidora) e do próprio Cinema Novo que foi o movimento mais expressivo, de âmbito internacional que houve no Brasil até hoje. Outra frase desdesconcertante dele no filme é quando ele afirma que fez filmes fora do Brasil não como “colonizado” mas sim como “re-colonizador”. Com “Leão de Sete Cabeças” por exemplo, ele foi à África em busca dos mitos fundadores da cultura brasileira. Enfim, o maior legado dele pra mim, é a postura do artista, a responsabilidade social, a intransigência estética sem detrimento da participação política no processo de organização da classe cinematográfica. Com generosidade ele dedicou grande parte de seu tempo, refletindo sobre os rumos do cinema brasileiro. Hoje, com a internacionalização excessiva, tecnização da atividade, e uma certa obsessão pela industrialização fazem com que o cinema perca seu caráter civilizatório e passe a ser visto como uma mercadoria de entreter para preencher estatísticas.
Certamente, ele estaria hoje atuando na televisão, nas novas mídias e polemizando s obre esta equação arte x industria que nos coloca num impasse enquanto nação que sonha com sua independência audiovisual desde os tempos da Vera Cruz, Chanchada, Cinema Novo e “Marginal”. Glauber passou na prova dos nove e abriu esta janela para o mundo, com a “maior cara de pau” como diz Caetano Veloso. Resta saber se teremos a mesma ousadia para continuar a tradição e alargar esse espaço, sem deslumbramento.

PLANETA TELA Imagino que você tenha material para mais uns, digamos, 250 documentários sobre Glauber. Quais seus próximos planos nesta obra de documentação da vida e da carreira do cineasta?
JOEL PIZZINI – Estamos preparando a realização de “Antena da Raça” com a TV Brasil, sobre a experiência revolucionária de Glauber na televisão brasileira através do Programa Abertura. Vamos recuperar todas as edições e articular uma série que coloque no ar novamente a potência do discurso do Glauber para que inspire todos nós, numa perspectiva contemporânea sem nenhum viés saudosista. A proteína desta memória pode nutrir intensamente as novas geraçõess. Eu acredito muito no poder transformador da arte e, em particular da obra de Glauber.
A restauração do “Leão de Sete Cabeças”, justo na Era Obama, é também um grande desafio! Aliás, a “repatriacao” dos quatro filmes que Glauber fez na Europa é a próxima meta do projeto “Coleção Glauber Rocha” e requer uma investigação meticulosa por Cinematecas da Europa.