JOHN GARFIELD, O ATOR QUE A INTOLERÂNCIA MATOU.

por Celso Sabadin 

Ele não tinha pinta de galã. Não era bonitão, nem muito alto (1,70m). Talvez por isso mesmo John Garfield fosse adorado por milhares de fãs: ele protagonizava o homem comum, muitas vezes sofrido, invariavelmente metendo-se em armadilhas do destino impossíveis de serem desarmadas. Não era herói, nem vilão. Apenas gente.

Nascido em 1913 no Lower East Side de Nova York, filho de judeus ucranianos, Jacob Julius Garfinkle foi criado pelo pai após a morte de sua mãe, quando tinha apenas 7 anos de idade. Na escola para crianças problemáticas para onde foi enviado, o pequeno Jacob teve aulas de boxe e interpretação. Aprendeu a se defender física e artisticamente. Seu talento lhe rendeu uma bolsa na escola da atriz russa Maria Ouspenskaya, também radicada nos EUA, e mais tarde no Civic Repertory Theatre, onde adotou o nome artístico de Jules Garfield.

Estreou no teatro, onde chamou a atenção dos executivos de cinema com a peça “Awake and Sing”. Foi contratado pela Warner, mudou seu nome artístico para John Garfield, e estreou nas telas de forma retumbante, logo conseguindo uma indicação para Oscar de Coadjuvante no filme “Quatro Filhas”, de Michael Curtiz. O sucesso foi meteórico: atuou em mais de 30 filmes entre 1938 e 51, obtendo em 1947 sua segunda indicação ao Oscar por “Corpo e Alma”.

Porém, em 1951, no infame período do Marcartismo, foi acusado de comunista e, consequentemente, impedido de trabalhar. Separou-se da esposa, entrou em depressão, e com apenas 39 anos morreu de ataque cardíaco em 21 de maio de 1952, menos de um ano após a estreia de “Por Amor Também de Mata”, seu último trabalho.

Relatos da época dizem que desde a morte de Rodolfo Valentino, em 1926, nunca se vira tamanho número de pessoas nos funerais de um artista.

A caixa Film Noir 4, lançada pela Versátil, traz quatro filmes de Garfield:

 

CORPO E ALMA (Body and Soul, 1947, 104 min). De Robert Rossen. Com John Garfield, Lilli Palmer e Hazel Brooks.

Com sua charmosa decadência, muita fumaça e corrupção, o submundo do boxe é uma das ambientações preferidas e mais apropriadas para um bom filme noir. E, dentro deste segmento, “Corpo e Alma” é um verdadeiro clássico. Todos os elementos tradicionais do chamado “filme de boxe” estão lá, desde o herói ambicioso que luta – literalmente – em busca de uma vida melhor e mais glamorosa que seus humildes pais, às mulheres fatais e destruidoras de lares, passando, é claro, pelas maracutaias milionárias que envolvem este esporte. Fama, glória, traições, sangue, destruição, carreiras perdidas… impossível resistir.

Guardadas as devidas proporções, “Corpo e Alma” começa a la “Cidadão Kane”, com uma bela panorâmica que vai buscar, dentro de seu quarto, o protagonista Charley Davis (John Garfield) acordando perturbado de um sono inquieto, na noite que precede sua grande luta pelo título mundial. Em desespero, ele sai pela noite em busca do perdão de sua mãe e de sua namorada, ambos negados, ao mesmo tempo em que ficamos sabendo que um certo Ben acabara de morrer. É um início impactante, uma aula de roteiro que joga várias perguntas sobre o público, dúvidas que só serão totalmente dirimidas ao final do filme, através do belo e longo flash-back (também a la “Cidadão Kane”) que se desenvolverá a seguir.

Se a trajetória tumultuada do boxeador é uma história envolvente, não menos arrebatadores são os acontecimentos – estes sim, reais – que se desenrolaram após o lançamento do filme. O roteirista Abraham Polonsky, os atores John Garfield, Anne Revere, Lloyd Gough, Canada Lee, Art Smith e Shimen Ruskin, o produtor Bob Roberts e o diretor de fotografia James Wong Howe foram todos acusados de atividades comunistas no triste período do Macartismo, tendo cada um deles, em menor ou maior grau, suas carreiras prejudicadas. Já o diretor Robert Rossen safou-se das acusações, delatando vários nomes.

Se por um lado “Corpo e Alma” foi uma maldição para estes profissionais, por outro vários membros da equipe acabaram transformando-se em diretores de cinema: os atores William Conrad, Sid Melton, George Tyne e Joseph Pevney, o roteirista Polonsky, o diretor de fotografia James Wong Howe, os montadores Robert Parrish, Francis D. Lyon e Gunther von Fritsch, o diretor de arte Nathan Juran, o assistente de direção Robert Aldrich  e o supervisor de roteiro Don Weis.

Vencedor do Oscar de Montagem, “Corpo e Alma” é tido como uma das maiores – senão a maior – influências recebidas por Martin Scorsese para o seu “Touro Indomável”.

 

A FORÇA DO MAL (Force of Evil, 1948, 78 min). De Abraham Polonsky. Com John Garfield, Thomas Gomez e Beatrice Pearson.

As bancas de apostas se agitam com a proximidade de mais um aniversário da independência dos EUA. Mas o motivo de tanta agitação não é nada patriótico: tradicionalmente, é nesta data que boa parte da população do país aposta no número 776 numa espécie de “jogo do bicho” local, ilegal, mas tolerado. Se for sorteada a centena que remete ao ano da independência, várias bancas quebrarão. É neste cenário que o poderoso empresário Ben Tucker (Roy Roberts) arquiteta um plano para manipular, forjar e dominar o mercado do jogo. E para isso ele precisa contar com a ajuda de John Morse (John Garfield), seu advogado muito fiel e pouco escrupuloso. Porém, como nada é simples nas tramas do cinema noir, John tem um irmão que entrará em falência se o plano de Tucker der certo, o que gera um forte conflito interno no advogado.

O roteiro de Ira Wolfert, a partir do seu próprio livro “Tucker´s People”,  explora com maestria um dos pontos mais vitais do cinema noir: o questionamento dos limites éticos, morais e legais. Tucker é, a rigor, um criminoso inescrupuloso, mas amparado por uma suposta legitimidade social que prefere encará-lo como um astuto e temido homem de negócios. Na outra ponta do raciocínio, Leo Morse (Thomas Gomez, em ótima interpretação), o irmão de John, mesmo sendo também um criminoso, atrai para si a empatia da plateia: afinal, trata-se de um homem bondoso que cuida com carinho dos funcionários de sua banca ilegal de apostas. E seu crime seria “menor”,  já que não é socialmente bem sucedido e poderoso como Tucker, o que acaba provocando um olhar condescendente por parte do público.

No meio de ambos, John é a perfeita personificação de uma época em que o cinema borrou as fronteiras entre “bandidos” e “mocinhos”: se por um lado ele é um advogado de um grande escritório (e, teoricamente, defensor da lei), por outro lado ele rompe os limites éticos de sua profissão ao se associar com seu principal cliente, reconhecidamente um crápula. Discute-se no escritório de advocacia que seria lógico, ético e moral defender o crápula, mas não se associar a ele, num belo exercício de retórica a serviço da hipocrisia.

Pelo lado humano, ao perceber que associar-se diretamente ao crime poderia prejudicar seu irmão, John tenta o caminho mais lucrativo: trazer o irmão, já adepto da “pequena contravenção”, para o lado do “grande crime”, passando assim o recado que roubar pouco é bobagem.  Ele não contava, porém, que Leo lutaria pelo seu direito de continuar sendo apenas um “pequeno criminoso”. O questionamento dos limites da lei e da ética é fascinante. Como se a vida de John não estivesse complicada o suficiente, ele ainda se apaixona por Doris (a carismática Beatrice Pearson, numa de suas apenas duas participações no cinema), a jovem e inocente funcionária de Leo, que acaba sofrendo ela própria de uma crise de consciência ao perceber o mundo de jogos e interesses ilegais em que estava metida. Tal subtrama romântica amplia ainda mais a discussão dos conflitos morais que o filme incita.

Considerado como um dos melhores filmes noir já realizados, “A Força do Mal” marcou a estreia na direção (e também no roteiro, que coassinou com Ira Wolfort) de Abraham Polonsky. O filme, contudo, foi lançado inapropriadamente na época do Natal de 1948, e não fez sucesso. Redescoberto nos anos 60, acabou sendo mais tarde apontado como uma das grandes influências de Coppola em seu “O Poderoso Chefão”. Polonsky, por sua vez, teve sua carreira praticamente encerrada menos de três anos após o lançamento deste seu longa de estreia, ao ser inserido na lista negra do macartismo e, assim, impedido de trabalhar. O título “A Força do Mal” não poderia ser mais apropriado.

 

REDENÇÃO SANGRENTA (The Breaking Point, 1950, 97 min). De Michael Curtiz. Com John Garfield, Patricia Neal e Phyllis Thaxter.

Pode não ser precisamente um filme noir, na acepção mais tradicional do termo, mas mesmo assim “Redenção Sangrenta” traz um dos principais elementos deste gênero (ou subgênero, como preferem alguns): o dilema do protagonista que caminha perigosamente na finíssima linha que separa o bem e o mal. A dúvida, a ética, as motivações que fazem com que um pequeno detalhe passe a significar a maldição ou a redenção, como antecipa o título em português.

E para interpretar este protagonista dividido, pressionado por questões morais e financeiras, ninguém melhor que John Garfield.  Ele vive o papel de Harry Morgan, um homem comum, casado, duas filhas pequenas, e que tira o sustento de sua família capitaneando um barco de aluguel. Uma série de pequenos contratempos cotidianos leva Harry à beira da falência, o que o obriga a aceitar serviços, passageiros e cargas ilegais em seu barco. Ao entrar, mesmo que pela porta dos fundos, no mundo do crime, o capitão começa a se enredar numa teia que poderá lhe trazer trágicas consequências.

Talvez até mais importantes e fortes que a trama do capitão Harry, “Redenção Sangrenta” traz outras duas subtramas dignas de nota. A primeira é a relação entre as personagens femininas, ambas muito bem construídas. Lucy (Phyllis Thaxter, que viveu a mãe de Clark Kent no Super Homem de 1978), mulher de Harry, é a típica esposa/mãe/dona de casa compreensiva e submissa. Porém, já estamos em 1950, período em que as mulheres já provaram sua força trabalhando na indústria da guerra e obtendo uma autoestima nunca antes experenciada. Ao se defrontar com Leona (Patricia Neal, a Olivia Walton do seriado “Os Waltons”), uma bela mulher que usa sua sexualidade como meio de sobrevivência, Lucy entra em crise, questiona sua opções de vida, e chega até a pintar seus cabelos de loiro, numa desesperada e até certo ponto patética tentativa de mudança. Mas logo percebe que, em seu íntimo, seu maior medo é perder o marido, e vive um ensaio de arco dramático que efetivamente não chega a se concretizar. Por outro lado, Leona acaba se mostrando uma mulher entristecida e tão dependente do sexo masculino quanto Lucy. Afinal, como já foi dito, para o bem e para o mal estamos em 1950, e se nesta época a mulher já inicia seu processo de fortalecimento, o cinema ainda vive sob o pesado jugo do Código Hays de censura, e no final das contas percebemos que nem a personagem sexualmente liberada poderia sair-se muito bem na trama, muito menos a conformada poderia ser castigada pela sua eterna fidelidade ao esposo. Como sempre, o cinema norte-americano caminha sempre uns bons passos atrás da marcha da sociedade.

 

Um dos (ótimos) diálogos do filme é travado entre Harry e Leona:

– “Em que você trabalha?”, ele pergunta.

– “Sou balconista numa loja. Vendo perfumes.”

– “E você gosta?”

– “Detesto”.

– “E por que continua?”

– “Gosto de estar sempre perfumada”, dispara Leona, rápida e irônica.

 

A segunda subtrama é ainda mais forte e representativa, mas é melhor não especificá-la demais, para não dar spoiler. Trata-se da importância vital para o roteiro do personagem Wesley (Juano Hernandez, filho de um marinheiro portorriquenho, e que inclusive passou parte de sua infância cantando e pedindo dinheiro pelas ruas do Rio de Janeiro, onde acabou sendo contratado por um circo), o grande amigo negro de Harry. É a sua participação dramatúrgica e o destino final de seu personagem que proporcionam o belíssimo final do filme. Um final silencioso, extremamente dolorido, que remete ao abandono e ao esquecimento dos quais os negros quase sempre são vítimas. Sejam eles homens, mulheres, ou crianças, protagonistas ou coadjuvantes.

“Redenção Sangrenta” é baseado no romance “Tho Have or Have Not”, de Ernest Hemingway, e tem direção de Michael Curtiz, oito anos depois de “Casablanca”.

 

POR AMOR TAMBÉM SE MATA (He Ran All the Way, 1951, 77 min). De John Berry. Com John Garfield, Shelley Winters e Wallace Ford.

Assim como acontece em “Corpo e Alma”, “Por Amor Também se Mata” começa igualmente com o personagem de John Garfield (no caso, Nick Robey), acordando de um pesadelo. Mas se em “Corpo e Alma” Garfield corre em busca do perdão da mãe logo após o sonho, aqui ele é acordado por ela de forma ríspida: “Se você fosse um homem de verdade estaria na rua procurando emprego”, ela dispara. E Nick responde ligeiro: “E se você fosse um homem de verdade eu te partiria os dentes”. Esse rápido e contundente início de filme já demonstra com eficiência a personalidade do protagonista que Irá comandar a ação.

Trata-se do primeiro filme adaptado de um livro de Sam Ross, ucraniano radicado nos EUA, que mais tarde escreveria vários episódios para os seriados de TV “Cidade Nua”, “Rawhide” e “O Fugitivo”, entre outros. O roteiro foi escrito por Dalton Trumbo, Hugo Butler e Guy Endore, mas logo após a estreia do filme os nomes de Trumbo e Butler foram suprimidos dos créditos pelo fato de ambos terem sido acusados de comunistas. O mesmo aconteceu com o diretor John Berry.

Após ameaçar partir dos dentes da própria mãe, Nick Robey participa de um assalto frustrado e se refugia no apartamento de uma família para acobertar sua fuga. Sua personalidade ríspida e agressiva encanta Peggy (Shelley Winters), a filha da família ameaçada, uma garota que não se acha bonita o suficiente para ser amada. Tem início assim algo parecido com uma “Síndrome de Estocolmo”, com Peggy extremamente dividida entre sua paixão repentina pelo criminoso que a faz refém e o amor que sente pela família. Infelizmente, o inadequado título em português já dá uma boa dica de como será o desfecho da trama.