Jorge Furtado fala de “Saneamento Básico, o Filme”

Quem ainda acha que o cinema brasileiro não sabe fazer boas comédias não pode perder “Saneamento Básico, o Filme”, que está estreando este final de semana (20). Realmente o nome é um pouco estranho, mas o filme é dos mais divertidos Tudo acontece numa pequena vila no interior do Rio Grande do Sul, onde os habitantes locais precisam levantar uma verba para despoluir o riachinho que passa por ali. Na prefeitura, eles são avisados que dinheiro para a obra, não tem. Mas que existe sim uma verba meio perdida por ali, destinada à Cultura, para quem se dispuser fazer um curta metragem. E lá vai a cidade toda, que nem cinema tem, arregaçar as mangas para fazer um filme que vai render um dinheiro para despoluir o rio. Só vendo mesmo para acreditar.
Saneamento Básico, o Filme tem notáveis interpretações de Fernanda Torres, Paulo José, Camila Pitanga e Wagner Moura. A direção e o excelente roteiro são de Jorge Furtado, o mesmo de “O Homem que Copiava”, que concedeu a seguinte entrevista:

Como surgiu a idéia do fime?

Um filme não é feito só com uma idéia, mas com muitas. Eu identifico o início desse filme com a vontade que eu tinha de fazer uma história baseada na Commedia dell’Arte. Eu estava estudando a Commedia dell’Arte e queria fazer uma história com seis ou sete dos seus personagens arquetípicos, numa pequena comunidade. Em função disso, comecei a pensar em alguma coisa italiana, uma colônia italiana. Tempos depois, fui ao Santa Maria Vídeo e Cinema, no Rio Grande do Sul. Visitei a quarta colônia italiana de Santa Maria pensando em locações e quando estava lá, durante o festival, foi lançado um concurso nacional para produção de vídeos em cidades com até 20 mil habitantes. O pessoal de Santa Maria queria participar, mas não podia porque era grande demais, com seus 200 mil habitantes. Eu achei isso engraçado, quero dizer, a idéia do concurso. Democratizar a produção de vídeos, de cinema, faz sentido, mas creio que o formato adotado foi a um extremo muito grande. Porque a maioria dos filmes são feitos no Rio, São Paulo, Porto Alegre, Recife, cidades de mais de um milhão de habitantes. Parecia mais lógico lançar um concurso para cidades com menos de um milhão de habitantes, incluindo todas as médias cidades no Brasil. Então me ocorreu essa história: imaginei uma cidadezinha muito pequena, com problemas para conseguir dinheiro para algumas coisas de que precisa, mas que tem a possibilidade de fazer um vídeo.
Sempre existe uma contradição nos países subdesenvolvidos sobre o investimento na cultura. Como um país que não tem saneamento básico vai fazer cinema? Mas claro que essa é uma falsa contradição: é preciso fazer tudo ao mesmo tempo, não podemos só fazer saneamento. Comecei a escrever essa história com esses personagens que querem resolver um problema de saneamento básico e não têm verba, mas têm para realizar um vídeo e resolvem usar a grana para fazer a obra; fazendo um vídeo sobre a construção da obra.

Primeiro veio a idéia da forma e depois a história para contar?

Sim, a história tem um pouco desse universo mínimo da Commedia dell’Arte: um grande problema para uma pequena comunidade. O interessante do teatro da Commedia dell’Arte é que sobreviveu durante séculos com seis, sete personagens. Realizar toda a dramaturgia necessária tendo apenas esses seis ou sete personagens foi o que deu origem a esse trabalho.

Por que uma comédia política?

Eu gosto de comédias e normalmente trabalho com um registro próximo da comédia. Uma comédia política porque eu nunca fiz isso. Mas o filme é também uma reflexão sobre a linguagem cinematográfica, sobre as possibilidades narrativas do cinema.

Que referências o ajudaram a construir o filme?

Eu procuro sempre, dentro do possível, fazer um filme bem diferente do anterior. E nunca fiz nada parecido com esse filme antes. As minhas referências vêm principalmente do cinema italiano e do cinema cubano, com a comédia política. Filmes como Guantanamera (1995, Tomás Gutiérrez Alea e Juan Carlos Tabío). Gosto de comédias de situação com um tom político e social. Ettore Scola fez vários filmes assim, Feios, sujos e malvados (Brutti, sporchi e catttivi, 1976), por exemplo. O Scola trabalha muito em cima da Commedia dell’Arte. A viagem do Capitão Tornado (Il viaggio di Capitan Fracassa, 1990) mostra exatamente um grupo da Commedia dell’Arte. Uma comédia humanista que envolve política e relações pessoais.

Comédia talvez seja o gênero mais atraente para o espectador, e o mais difícil para o criador. Por que você optou por esse registro narrativo?

Meu tio matou um cara e Houve uma vez dois verões são comédias românticas, o que move os seus personagens é a paixão. Eu gosto da comédia porque não acredito muito em heróis. Na definição do Aristóteles, a tragédia mostra o melhor dos homens, o que os seres humanos têm de melhor, e a comédia mostra o que temos de pior. O herói trágico é perfeito, com exceção de uma coisa: ele tem uma falha, a falha trágica, algo que é um problema e esse problema causa a sua desgraça. Mas, no resto, ele é perfeito. Na comédia, os personagens são medíocres, tacanhos, mesquinhos, invejosos. Esses sentimentos ficam exacerbados. Só que acabamos gostando deles porque são humanos. Eu prefiro representar a realidade através da comédia porque tudo é, de alguma maneira, risível. A comédia mostra os defeitos dos personagens e entende as razões deles. A maior parte do cinema é feito de heróis, pelo menos no grande cinema hollywoodiano. Eu prefiro o registro dos perdedores, são muito mais interessantes.

Você é um cineasta do contemporâneo. Como uma forma clássica como a Commedia dell’Arte é usada para falar de questões atuais?

Quando comecei a escrever o roteiro, estipulei algumas coisas. Uma delas foi que o filme não teria nenhum off, nenhuma narração. Porque todos os meus filmes têm narração. O homem que copiava tem meia hora de narração inicial. Em Houve uma vez dois verões e Meu tio matou um cara, também. São protagonistas masculinos que narram as histórias a partir do ponto de vista deles, e a gente ouve o que eles pensam através da narração. Na Commedia dell’Arte não cabe isso. Os personagens Mariana e Joaquim são os protagonistas, mas na Commedia dell’Arte todos os personagens são equilibrados. Eu cheguei a contar o número de falas de cada um no roteiro, e há pouca diferença. Tudo está bem distribuído entre os quatro personagens principais. Não havendo off, a história é o que se vê acontecer, o que é muito próprio do cinema. O off, a narração, é uma forma de expressão da literatura que o cinema importou. Ficar ouvindo o texto é algo da literatura. No cinema clássico, vemos a história acontecendo. A história deste filme acontece hoje, no Brasil. Há referências diretas a Brasília, ao dinheiro de Brasília. Os figurinos, os automóveis são atuais, mas como estamos em um microcosmos, uma cidadezinha do interior, o tempo fica meio indefinido – se a história se passasse 10 anos atrás, isso não faria muita diferença. Acho importante criar um espaço e tempo próprios do filme, e por isso me concentro numa cidadezinha. Além disso, o filme vai apresentar um universo pouco conhecido para o resto do Brasil e mesmo para nós gaúchos, o universo de classe média numa pequena cidade no interior. Normalmente, o cinema brasileiro representa os grandes centros urbanos, zonas rurais, interior do sertão. Esse filme será em uma cidadezinha. Com TV, carro e celular, o filme é contemporâneo, mas ele tem um tempo e lugar meio próprios.

Quanto tempo você trabalhou no roteiro?

Trabalhei durante dois anos. Com alterações, porque o roteiro não pára de ser mudado. Existe uma constante alteração do roteiro durante as filmagens. O roteiro só pára de ser mexido na mixagem.

Ao filmar Houve uma vez dois verões você descreveu o litoral gaúcho como o mais feio do mundo, apesar do evidente carinho pelo cenário. Como é olhar para e filmar na serra gaúcha?

A serra é linda e acho que o filme, neste sentido, pode ajudar a promover o turismo. O lugar é muito bonito e temos muitas cenas nas estradas cheias de plátanos e parreirais. A serra gaúcha é fotogênica; a luz tem um ângulo interessante nesta época do ano, outono/inverno. O cenário é muito típico do Rio Grande do Sul e pouco conhecido no cinema brasileiro. São vinhedos com cantinas, gente que faz vinho, pousadas. E muito, muito frio.

Qual a relação entre o título SANEAMENTO BÁSICO, O FILME e o orçamento da produção?

Um dos assuntos do filme é o dinheiro – o filme fala todo tempo em dinheiro. Os personagens discutem o preço das coisas. Eu gosto de colocar isso nos filmes, é um assunto meio tabu. Durante muito tempo, ouvi que falar de dinheiro envelhecia o filme. Dinheiro é um assunto muito importante na vida das pessoas. Todo mundo se move, diariamente, a todo momento, por dinheiro. Esse assunto fica meio fora da dramaturgia porque ninguém quer falar nisso, porque parece um assunto menor, só que não é. O objetivo dos personagens precisa ser importante para eles mesmos e esse filme fala sobre pessoas que discutem longamente quem vai pagar por uma fita. Um filme, mesmo de baixo orçamento, é caríssimo. Com R$ 3 milhões se faz uma escola. Essa é uma questão no Brasil. Como investir na produção o mesmo dinheiro que construiria casas populares? Se partirmos para essa lógica, o país deve gastar só naquilo que é fundamental. Portanto, vamos discutir o que é fundamental. Eu acho que arte, cultura, cinema, são fundamentais. A tese do filme é um pouco essa.

Cinema é básico?

Cinema é básico total. Na minha opinião, cinema é tão importante quanto saneamento. Morar numa casa sem saneamento é muito ruim, mas viver sem cinema também seria muito ruim. Qualquer cultura deve produzir cinema. Viver sem cinema não dá. Qualquer país sério tem que produzir cultura. O Brasil sempre produziu cinema e precisa continuar produzindo. Se o país puder resolver ao mesmo tempo os problemas de saneamento, ótimo.

Ao fazer Ilha das Flores, você dizia que estava fazendo um filme que tentava explicar o Brasil, na sua lógica social e econômica, para um marciano que recém tivesse chegado à Terra. SANEAMENTO BÁSICO, O FILME explicará o Brasil?

Eu espero que o filme fale um pouco do Brasil para os brasileiros. Espero também que fale sobre nós lá fora. Essa visão que se tem desde fora é curiosa. Às vezes, a leitura de fora revela coisas que nem o diretor percebeu que estavam no filme. Talvez esse filme revele o Brasil, para ele mesmo e para fora, de um jeito diferente. O cinema “de exportação” do Brasil segue muito numa trilha única. Um filme brasileiro com neve, com frio, com italianos, num lugar onde se faz vinho, revela um lado diferente do Brasil para quem está fora.

Ao realizar seu quarto longa-metragem, você mantém uma continuidade incomum no cinema brasileiro. Quatro filmes em seis anos. Qual a importância dessa regularidade no seu trabalho?

É fundamental e vital essa continuidade. Se eu fizesse só cinema, tentaria fazer dois, três filmes por ano – meio como o Fassbinder. As idéias têm um prazo, um momento para serem contadas. No Brasil, às vezes leva-se dez anos para fazer um filme. A continuidade é fundamental. Não só para mim, mas para o cinema em geral.

O que você espera deste filme dentro do seu projeto de realizar cinema?

Eu espero que ele seja visto. Um filme é sempre isso: dividir uma idéia com alguém, com um público. Quando se escreve e se filma, se está querendo dividir. A vontade de dividir visões de mundo te faz escrever, pintar, filmar. Eu espero ter público, espero que as pessoas vejam o filme. O cinema tem uma característica que me agrada muito: depois de feito ele continua existindo – diferentemente do teatro, que é efêmero. O cinema é durável. Eu penso que o Ilha das Flores não foi visto ainda por muita gente.

Como os atores foram escolhidos?

Escolhi os melhores atores que conheço para cada um dos oito papéis principais. Planejamos tudo com bastante antecedência e tivemos sorte, todos aceitaram e estavam disponíveis. Sem exceção, eu já havia dirigido todos eles.