LITERATURA E CINEMA: ARTES DE SIGNIFICAR E RESSIGNIFICAR.

Sou professora de literatura e alguém que gosta de analisar as relações possíveis entre ela e o cinema. De tanto buscar essas relações, pouco a pouco meu foco foi se voltando para a adaptação, com destaque à construção da narrativa e ao modo como se dá a identificação do leitor / espectador com a obra – como lemos o texto, como ele nos impacta e como, de alguma maneira, ele também nos lê. Há muito para se discutir acerca disso tudo, mas por hora fico apenas com alguns pensamentos que me vêm livres e por vontade.

Penso, como muitos, que a leitura de cada um já é adaptação. Isso porque a literatura deixa lacunas a serem completadas pelo olhar e pela imaginação do leitor. Ela tem seus vãos, suas entrelinhas, suas subjetividades. É por isso que cada um de nós pode imaginar as feições de Capitu além dos “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”, ou pensar num modo muito específico sobre as pedras do caminho de Drummond. Ao ler, preenchemos espaços, atribuímos sentido aos sentidos do autor. E assim, o que vemos nas telas de cinema, numa mistura de palavras, gestos, cores, luzes, sombras, sons, é o que nos foi revelado por esse olhar de quem já adaptou, de quem já realizou a sua leitura.

Costuma-se dizer que o cinema, essa arte plural, já não permite ao espectador preencher tantas lacunas quanto é possível a um leitor, já que as imagens nos são dadas, previamente escolhidas. Mas será mesmo que elas não são ressignificadas por nós? Será que não reinventamos novas lacunas a partir do que é visto (lido) por nós em imagens? Tendo a crer que, em algum nível, sim. E se esse número supostamente reduzido de vãos a serem preenchidos soa como uma desvantagem para o cinema, sinto que este tem maior alcance de magia, digamos, por lidar com essas várias formas de linguagem, essas várias formas de arte que envolvem, por cerca de duas horas e além, nossos sentidos.

Quem lê, adapta, e nessa medida, recria. Adaptar é, pois, dar vida a uma obra com cabeça, corpo e membros autônomos. Esse ser autônomo que é a adaptação pode até tornar-se tão ou mais interessante que a obra que lhe deu origem. Posso citar, por exemplo, o clássico filme “Bonequinha de Luxo”, (1961- roteiro de George Axelrod e direção de Blake Edwards), adaptado do livro de Truman Capote (Breakfast at Tiffany’s – 1958) e imortalizado por Audrey Hepburn na pele de uma Holly a la Audrey, com direito à clássica cena da personagem tocando violão e cantando “Moon River” na janela de seu apartamento.

Mas quem vê cenas como essa possivelmente não imagina na voz da atriz algumas falas da Holly do livro, tais como:
“Rusty acha que eu deveria fumar maconha, e eu até fumei por algum tempo, mas só me fazia rir”.
Ou ainda:
“ Simplesmente disse a ela… quer dizer, você sabe, falei como se fosse uma confissão aflitíssima que eu era sapatona (…). Por que você acha que ela saiu para comprar essa cama? Não se preocupe, sempre arraso quando o negócio é chocar”.
Definitivamente, as frases não estão para a Holly do filme, mas para a do livro.

Outro exemplo de excelente adaptação que me vem à mente é o nosso “Cidade de Deus” (2002), com roteiro de Bráulio Mantovani e direção de Fernando Meirelles, adaptado do livro de Paulo Lins (1997). A escolha, no filme, de Buscapé para narrar a historia por ele já sabida, deu-lhe ainda mais o destaque de personagem que escapa do determinismo da violência, e ao mesmo tempo deu mais vida e profundidade ao perfil do traficante Zé Pequeno. O uso de tal foco e de outros recursos narrativos, como os “flashbacks” e as narrativas paralelas (inclusive os momentos de duplicação da tela) contribuíram para dar mais velocidade à trama – cheia de pequenas tramas no livro – mas não retiraram a essência da obra de Paulo Lins, vencendo-se o desafio de transpor a trama do livro de cerca de 400 páginas para o filme de 135 minutos.

Uma boa adaptação de obra literária para as telas depende, portanto, entre outras coisas, de bons leitores – e escritores – para realizarem tal tarefa, capazes de fazer escolhas que não deixem escapar o que chamei de “essência” do livro – algo difícil de se traduzir melhor em palavras. O conteúdo, essa “essência”, é, creio, o limite para essa liberdade de criação. Uma historia não é feita apenas de pessoas em ação, no sentido estrito, mas dos pensamentos desses seres em movimento, de suas (e nossas) sensações e emoções. Algo tão difícil de se contar e recontar, traduzir e retraduzir, significar e ressignificar.

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Adriana Silveira é professora de Literatura e Língua Portuguesa. É graduada em Letras, Mestre em Teoria Literária pela UNICAMP e pesquisadora nas áreas de Literatura, Cinema e Psicanálise.