MIXAGEM DE SOM PARA CINEMA: ENTENDA MELHOR ESTA ARTE.

por José Luiz Sasso.

 

Em seu “post” no Facebook (de 10/08/2018), Celso Sabadin fez o seguinte comentário:

 

“Ou a mixagem dos filmes brasileiros tem colocado a trilha sonora mais alta que os diálogos; ou os atores brasileiros estão tendo um sério problema de dicção; ou eu estou ficando surdo”. Mais adiante, após comentários de outros participantes no mesmo “post”, Sabadin escreveu: O que você acha, José Luiz Sasso?”

 

Pois bem, este é o texto que prometi ao Celso Sabadin sobre o que está acontecendo na mixagem de alguns filmes brasileiros, salientando que o tema é técnico, conceitual e financeiro.

 

Quando o DCP (Digital Cinema Package) chegou ao Brasil entre os anos de 2012 e 2013, tornando-se uma realidade a partir de 2014, nossas produções em película cinematográfica (os filmes) simplesmente deixaram de ser realizadas nesse suporte.

 

A mesma situação foi vivenciada no cinema mundial, pois o DCP trazia uma nova realidade tecnológica, conceitual e principalmente econômica. Com esses atributos, o DCP fez com que muitos dos processos e padrões técnicos até então consolidados no “cinema tradicional” passassem a ser considerados obsoletos. No cinema brasileiro a obsolescência foi muito rápida devido às questões econômicas.

 

Aqui caberia uma dissertação enaltecendo a Dolby Laboratories, pois foram eles que conseguiram padronizar o som no cinema mundial através dos sistema Dolby Stereo – SVA (Stereo Variable Area), com o filme “A Star Is Born” em 1976, assim como no lançamento do sistema Dolby SR-D (com seis canais de áudio), popularmente chamado de Som Dolby Digital 5.1 no filme “Batman Returns”, em 1992. Contudo, isso ficará para outro momento.

 

Terminada esta minúscula introdução, passo a comentar o que está ocorrendo com algumas mixagens de alguns filmes brasileiros quando reproduzidas em algumas salas DCP. Continuarei a utilizar a expressão “filme” mesmo sendo o DCP um formato de projeção que (fisicamente) nada tem a ver com essa palavra.

 

  • Com os aprimoramentos e as facilidades dos sistemas digitais de edição e gravação de som, onde “qualquer um” pode montar um “home studio”, inclusive para atender a pós-produção de áudio em cinema (edição de som e mixagem), muitos dos padrões técnicos que eram adotados anteriormente foram por terra. Isso fica muito evidente quando assistimos alguns filmes onde a dinâmica do áudio (como um todo) está praticamente perdida num emaranhado sonoro o que demonstra de forma muito clara que a relação entre os diversos sons que compõe uma mixagem está equivocada.

 

  • Muitos dos nossos “jovens mixadores” desconhecem normas técnicas, operacionais e até mesmo conceituais que estão presentes há anos no áudio do cinema mundial, e como tal, deveriam ser rigorosamente aplicadas e respeitadas durante a mixagem de produções audiovisuais, principalmente quando o produto final for um DCP.

 

  • “Jovens mixadores” que não sabem que a estereofonia no cinema mundial existe desde 1940, quando Walt Disney lançou o desenho animado “Fantasia”, que utilizava um sistema peculiar de som óptico estereofônico batizado de “Fantasound” – https://www.youtube.com/watch?v=Gr18ljbiFQc, onde vários fundamentos técnicos são aplicados até hoje! Entre eles, o mais primordial de todos, o porquê de se ter três canais de áudio atrás da tela: o esquerdo, o central e o direito.

 

– “Nossa… As caixas de som estão atrás da tela?” Acreditem, entre tantas barbaridades que já ouvi nestes meus 50 anos como TÉCNICO DE MIXAGEM, também ouvi essa que foi proferida por um jovem que se autodenominava “mixador”. Mas, o mais assustador é que deram um filme (com som 5.1) para ele editar e mixar!

 

Nada contra alguém querer iniciar sua carreira na pós-produção de áudio no cinema, contudo, um aspirante para essa atividade profissional (assim como em tantas outras), deveria saber que existe uma “escada”, e que ela deveria ser cuidadosamente escalada a partir do primeiro degrau; como estagiário, posteriormente aprendiz, depois assistente de estúdio, para daí chegar a condição de técnico de som e finalmente atingir o topo, por mérito e reconhecimento profissional, na posição de TÉCNICO DE MIXAGEM.

 

  • “Jovens mixadores” que acham que uma mixagem com som 5.1 precisa estar “entulhada” com uma quantidade absurda de sons. Não é pelo fato de haver seis canais de som que todos eles precisam ser utilizados ao mesmo tempo e o tempo todo. Não raras vezes, os canais laterais, aqueles que estão ao redor e fundos da sala de cinema (conhecidos por “surround”), estão tão barulhentos e tão altos (no nível sonoro) que se tem a impressão que esqueceram de fechar as portas do cinema.

 

  • “Jovens mixadores” não sabem o que vem a ser a espacialidade (espalhamento) do som quando reproduzido em salas de cinema, que por menores que sejam, normalmente acomodam algo como uma centena de espectadores.

 

Tradicionalmente esses “jovens mixadores” mixiam suas “obras” em salas minúsculas e monitoram o áudio sem nenhum critério de intensidade. Além disso, utilizam pequenas caixas acústicas de campo próximo (“near field”) que nada tem a ver com aquelas das salas de cinema, que geralmente são parrudas e de “campo largo” para melhor difusão sonora.

 

As caixas acústicas de “campo próximo” quando comparadas com as de “campo largo” soam como se fossem fones de ouvidos. Em outras palavras, as caixas de “campo próximo” normalmente estão posicionadas entre um e dois metros “das orelhas do “jovem mixador”, além de “montadas” (dispostas) em salas minúsculas, condições estas que não proporcionam uma difusão natural do som.

 

Usando uma terminologia mais simples, as mixagens realizadas sob tais condições normalmente soam “chapadas”, ou seja, sem recortes, sem profundidade, sem perspectiva sonora e certamente sem o devido equilíbrio entre os vários níveis sonoros distribuídos pelos seis canais de áudio.

 

  • “Jovens mixadores” que desconhecem regras e fórmulas para uma correta determinação da pressão sonora (SPL) num determinado espaço. Pressão essa que precisa ser criteriosamente ajustada ao ambiente de trabalho, de tal forma que a mixagem quando reproduzida numa sala de cinema soe agradável aos ouvidos dos espectadores. (SPL – Sound Pressure Level, é uma medida em decibéis para determinar o grau de potência das ondas sonoras de forma individual ou de forma complexa).

 

  • “Jovens mixadores” que sofrem de “pluguinite aguda”, ou seja, utilizam de forma doentia e sem quaisquer critérios os chamados “plugins”, que são softwares, que quando utilizados corretamente e de forma parcimoniosa podem corrigir, melhorar e até “salvar” sons que nos idos tempos do áudio analógico seriam descartados (sem maiores cerimonias) por falta de condições de uso.

 

A “pluguinite aguda” é uma espécie de compulsão (técnica) onde o “jovem mixador” precisa e necessita limpar o som de forma constante e asséptica, pondo por terra boa parte do trabalho realizado pelo TÉCNICO DE SOM DIRETO durante as filmagens.

 

A utilização incorreta dos “plugins”, além de criar o que chamamos de “artefatos digitais”, também cria distorções harmônicas que não existiam no som original, assim como provocam um “achatamento” na dinâmica do áudio, onde os níveis baixos são “aumentados” e os níveis altos são “diminuídos”, fazendo com que o som não soe de forma natural, sem presença.

 

  • Falando em “presença”, muitos dos “jovens mixadores” desconhecem os princípios básicos da equalização do som, sobre tudo da voz, onde a preservação e a eventual correção das frequências médias é indispensável, pois elas pertencem a uma região da audição humana onde temos uma melhor compreensão do que é falado. (A inteligibilidade da voz).

 

Há casos onde a dicção de um ator (ou atriz) em função da interpretação se vê obrigado colocar a voz num tom mais grave e contido. Nessa condição, a voz poderá ficar menos inteligível sob certas circunstâncias e até comprometida, contudo um Técnico de Mixagem experiente poderá minimizar esse “problema” utilizando “plugins” para uma, parcimoniosa, correção. Lembrando que em determinadas situações, onde má dicção é uma característica fisiológica, não haverá muito a ser feito e infelizmente a voz ficará prejudicada.

 

 

Eu poderia descrever outros tantos motivos para identificar filmes mixados por “jovens mixadores” com pouca experiência, mas creio que o que foi descrito é suficiente para uma melhor compreensão do que está acontecendo no som de algumas mixagens, de alguns dos nossos filmes, em algumas salas de cinema.

 

Contudo, aqui também cabe uma observação que vai muito além da falta de experiência de um “jovem mixador”, me refiro aos valores praticados na pós-produção do som de nossos filmes.

 

  • Como os orçamentos, das produções, estão cada vez mais baixos, principalmente naquelas consideradas menos comerciais, os valores negociados entre os bons profissionais estão cada vez menores (irreais diante da nossa economia), e como tal, a escassez monetária alimenta a busca por profissionais menos experientes e que praticam preços bem abaixo do mercado em prejuízo da qualidade do áudio como um todo.

 

  • Aí você poderia perguntar: Mas os produtores têm consciência dos riscos que correm utilizando mão de obra inexperiente? Eu respondo: Eis uma boa pergunta para ser feita para eles!

 

Quase chegando ao final deste texto, ainda há mais um fator a ser considerado, a reprodução do som nas salas de cinema.

 

  • O problema da ininteligibilidade da voz não está só nas mãos dos “mixadores” inexperientes e na escassez financeira das produções menos populares. Existe outra situação que também atinge de forma direta não só os espectadores, mas os TÉCNICOS DE MIXAGEM EXPERIENTES. A falta de padronização do áudio em algumas salas de cinema, onde o nível da reprodução do som é inconstante. Ora muito alto, ora muito baixo e quase nunca adequadamente ajustado.

 

  • Também existem situações onde algumas salas não possuem um tratamento acústico adequado e com isso os sons mais graves vazam dela para as salas vizinhas. O que mais se vê (ouve) como solução imediata: baixar o nível do som da sala “barulhenta” e com isso influenciar de forma negativa a inteligibilidade dos diálogos.

 

  • Outra situação é aquela onde as caixas acústicas frontais (que estão atrás da tela), assim como as do “surround” estão totalmente desalinhadas entre si, condição esta que poderá colocar a nocaute o trabalho de um TÉCNICO DE MIXAGEM EXPERIENTE, pois ele estará totalmente prejudicado e a mercê do imponderável.

 

  • Há também casos onde componentes dessas caixas (os alto-falantes) não estão funcionando corretamente ou até mesmo estão queimados!

 

Isso aconteceu comigo quando certa vez fui na pré-estreia de um filme que mixei e todos os sons endereçados para o canal esquerdo da tela não existiam. Motivo: O amplificador daquele canal estava queimado! Já ouvi esse tipo de relato outras vezes o que nos leva a concluir que a manutenção preventiva (e principalmente corretiva) dos equipamentos não faz parte da rotina de algumas salas de cinema.

 

Enfim… O tema é complexo, pois é técnico, conceitual e quase sempre envolve a parte financeira dos envolvidos.

 

(*) José Luiz Sasso é diretor da JLS Facilidades Sonoras.