MOSTRA DE TIRADENTES NÃO É PARA OS FRACOS, NÃO!

Por Celso Sabadin, de Tiradentes.

Atenção. Este texto contém ironia e pode causar irritações. A persistirem os sintomas, uma Gramática da Língua Portuguesa deve ser consultada. Aliás, comecei a pensar nesta questão de gramática assistindo a vários filmes aqui na Mostra de Cinema de Tiradentes. É simples: se eu escrevo um texto, e tenho a pretensão de ser lido e entendido, devo me submeter a algumas (várias) regras gramaticais. Caso contrário, estaria  desenvolvendo um código linguístico tão próprio e tão subjetivo que ficaria sob risco de não ser compreendido. E, pelo menos se não revogaram as leis da comunicação, a mensagem pressupõe um emissor e um receptor. Sem recepção, a mensagem se perde.

Muitos filmes exibidos em Tiradentes optam pela subversão das leis gramaticais audiovisuais, o que pessoalmente eu acho ótimo. Afinal, é a criação, a invenção, a experimentação, que fazem de Tiradentes um festival diferenciado dos demais do país. O problema é quando o emissor da mensagem (filme) passa a utilizar a experimentação pela experimentação, a invenção pela invenção, e não mais como ferramentas e instrumentos a serviço de uma ideia, proposta ou sentimento. Tal problema, aliás, é cada vez mais presente por aqui.  Percebe-se uma tendência crescente em utilizar a experimentação como sustentáculo de si própria, a subversão da gramática não mais como desenvolvimento de linguagem, mas como ostentação vazia. Ou, trocando tudo isso por uma expressão de uso corrente, em Tiradentes, o importante é “causar”. Subvertem-se cada vez mais os cortes, os enquadramentos, os sons, as estéticas, apenas para “causar”, para vestir fantasia de inteligente, para se sobrepor ao filme do ano anterior, que “causou”, mas não “causou” tanto como poderia. E se o público receptor não teve a percepção suficiente para captar a ideia – que fica cada vez mais oculta debaixo das formulações estéticas tidas como contemporâneas – o azar é todo dele, que não soube compreender.

Na ânsia de demolir formulações, criam-se nos filmes outras formulações. Longa após longa, proliferam os planos longos e contemplativos, mesmo quando não há nada a se contemplar. Já vi – juro que vi – cineasta falando que estava filmando o que o protagonista estava pensando, e que o espectador mais sensível iria ouvir o pensamento. Se o protagonista ou pessoa documentada falar de uma maneira ininteligível, sussurrada, entredentes, em dialeto local, ou simplesmente inaudível, tanto melhor. Trata-se da ‘incomunicabilidade dos nossos tempos’ (há filmes que são salvos pelas legendas em inglês, única ponte existente entre a emissão e a recepção da fala mal captada). Outra modinha corrente por aqui é o espelho: poucos cineastas resistem à tentação de compor alguns de seus planos através de vidros, janelas e espelhos, só para depois dizerem no debate que é cinema é o “reflexo distorcido da visão social”, ou coisa parecida. Isso sem falar no café. Gente, como se faz café no cinema brasileiro contemporâneo! Se todos os planos onde se faz café fossem editados num único longa, daria uma minissérie maior que ‘Berlim Alexanderplatz”.  Acredito também que muitos montadores/editores saem das suas ilhas de edição para tomar café, deixam o filme rolando, e só cortam o plano quando voltam.

A ânsia de transgredir é tão grande que cada vez mais os filmes exibem uma linguagem antiga e passadista, similar à dos anos 60, e realizada por talentos que, como não viveram esta época, desconhecem a enfadonha repetição da qual estão sendo vítimas.

Já sobre os debates, deles posso dizer pouca coisa, pois faz tempo que não os frequento. Prometi que só voltaria a eles quando a organização da mostra implantasse um sistema de tradução simultânea, pois jamais consegui decodificar o idioma utilizado nestas sessões. Parece algo entre o sânscrito e o português arcaico com fortes traços de academicismo e influência de Nietschze. Deixei de ir aos debates quando percebi que sempre que o pessoal começava a falar vinha à minha mente o texto original da carta de Pero Vaz de Caminha.

A plateia é um capítulo a parte. Compreendendo ou não, sensibilizando-se ou não (pois muitas vezes a questão não é apenas cognitiva), o público não só aplaude a tudo e a todos como também esmera-se nos gritos de “uhuu”, que é o novo “Bravo!”. O “uhhuuu” é fundamental. Por mais que se aplauda um filme, ele jamais será considerado bem sucedido se não tiver “uhuuuu”.  Aplaudir é preciso, caso contrário o não-aplaudinte corre o risco de ser acusado de não ter compreendido o filme, ou pior, de não ter gostado, o que comprometeria o julgamento do olimpo curatorial da mostra, pecado mortal por aqui.  É óbvio que, se você não gostou de um filme exibido em Tiradentes, a culpa é toda da sua incapacidade intelectual. Cabe ao público também vestir-se de forma adequada aos filmes, ou seja, passar horas diante do espelho planejando minuciosamente um visual que pareça o menos planejado e o mais casual possível.

Enfim, esta é a Mostra de Cinema de Tiradentes, que este ano comemora sua 20ª. edição. A gente quebra a coluna e achata a bunda em cadeiras idealizadas por alunos reprovados no Curso de Ergonomia. A gente vê filmes de 70 minutos “mas com sensação térmica de 180”, como dizia o saudoso e querido João Sampaio. A gente aprende a evitar os restaurantes que aceitam os vales-refeição do evento, mas cobram quase 10 reais por um suco de laranja. A gente vê três ou quatro filmes em seguida sobre índios, devastações, injustiças sociais, minorias, espelhos e gente fazendo café …. mas a gente gosta. Gosta e procura voltar todos os anos, porque, por mais que se erre, é aqui que se tenta, é aqui que se experimenta, é aqui que se busca um novo cinema.

E eu sou muito mais a bunda doendo de um filme que tentou, ao tédio incontido de outro que fez tudo o que já fizeram antes só para buscar o sucesso fácil. Mas é preciso que Tiradentes fique esperto para não cair nas armadilhas que a própria Mostra vem criando para si. Tudo na vida é preciso renovar; inclusive a renovação.

 

Celso Sabadin viajou a Tiradentes a convite da organização do evento. E depois deste texto talvez ele não seja mais convidado nos próximos anos…