“O MERCADO DE NOTÍCIAS” É LANÇADO EM DVD. LEIA ENTREVISTA EXCLUSIVA COM JORGE FURTADO.

Por Celso Sabadin.

Disponível no site da Casa de Cinema de Porto Alegre (http://casacinepoa.com.br/loja/mdn) o DVD do documentário O Mercado de Notícias, discute, com bom humor, o processo de espetacularização do Jornalismo.

A grande plateia presente no CinePE, Festival de Cinema de Pernambuco, explode em gargalhadas. Na tela, nenhuma comédia, mas sim um documentário. E mais: um documentário que tem o Jornalismo como tema. Explica-se: o filme em questão é O Mercado de Notícias, dirigido por Jorge Furtado, um cineasta que consegue colocar saborosas doses de humor e ironia em tudo o que faz. Até num documentário sobre Jornalismo.

Além de ter realizado alguns dos curtas-metragens mais significativos do cinema brasileiro (Ilha das Flores, Barbosa, O Dia em que Dorival Encarou a Guarda), e dirigido longas premiados (O Homem que Copiava, Saneamento Básico, Meu Tio Matou um Cara) Furtado também assinou como roteirista, diretor (ou ambos), marcantes trabalhos para a televisão, como Comédias da Vida Privada, A Invenção do Brasil e Doce de Mãe.

Uma de suas marcas registradas é saber abordar temais sérios e importantes com leveza, bom humor, e pitadas de sarcasmo. Em O Mercado de Notícias não foi diferente. Entremeando a encenação de uma peça teatral do século 17 com depoimentos de alguns dos mais importantes jornalistas em atividade, o documentário aborda, de acordo com as palavras do seu diretor, “os processos de novelização e de espetacularização pelas quais o Jornalismo vem passando, o que afasta os leitores mais sérios, minando a credibilidade da atividade”.

Os depoentes que aparecem no filme não deixam dúvida quanto à seriedade do trabalho: Bob Fernanades, Cristiana Lôbo, Fernando Rodrigues, Geneton Moraes Neto, Janio de Freitas, José Roberto de Toledo, Leandro Fortes, Luís Nassif, Maurício Dias. Mino Carta, Paulo Moreira Leite, Raimundo Pereira e Renata Lo Prete.

O documentário abre espaço também para analisar, com diferentes graus de profundidade, quatro casos que até hoje envergonham a atividade jornalística brasileira. O primeiro, e mais icônico, é o da Escola Base, uma pequena instituição paulistana de ensino infantil que foi acusada de pedofilia, ganhou a imprensa com estardalhaço sensacionalista, destruiu as vidas de seus proprietários, para mais tarde ser inocentada. Como se trata do episódio mais conhecido e alardeado, o cineasta fez a feliz opção de retratá-lo apenas com a contraposição das manchetes da época, sem nenhum tipo de narração ou explicação verbal, apenas escancarando, na tela, a absurda desproporção do espaço destinado pela mídia para as acusações, em contraposição à minúscula notinha de esclarecimento, depois que a verdade veio à tona. Tarde demais.

O segundo caso abordado é o da demissão do então ministro dos Esportes, Orlando Silva, envolvido em acusações de corrupção igualmente alardeadas de maneira sensacionalista, e igualmente desmentidas em minúsculas notinhas.

Outros dois episódios causam risos na plateia. Num deles, uma reprodução barata de uma obra de Picasso é encontrada enfeitando um escritório do INSS em Brasília, e reportada pela imprensa como sendo verdadeira e, portanto, valiosíssima. A não autenticidade da obra, que poderia ser comprovada facilmente em minutos por qualquer estudante de artes, ganha contornos de espionagem internacional, arrancando risos do público e denunciando a fragilidade atual da imprensa em lidar com a velha, desgastada e “fora de moda” questão da checagem de informações.

Mas é no famoso caso da bolinha de papel que o auditório realmente vem abaixo. Analisando minuciosa e ironicamente as imagens de cinco câmeras (quatro profissionais e uma amadora) que cobriam a campanha do então candidato José Serra, em outubro de 2010, Jorge Furtado comprova, sem deixar margem a dúvidas, que o suposto “atentado” contra Serra (que inclusive o levou a fazer tomografia num hospital) foi na verdade “cometido” por uma bolinha de papel atirada contra sua cabeça. E mais: que o “autor” do crime foi um dos próprios homens da segurança do candidato.

Muito mais do que simplesmente criar humor a partir desta revelação, o filme levanta a falta de empenho e interesse da própria imprensa em cumprir sua função investigativa, posto que da mesma forma que Furtado teve acesso fácil às cinco imagens das cinco câmeras, qualquer outro órgão de imprensa igualmente poderia ter. Mas a necessidade do sensacionalismo tem falado muito mais alto e forte que qualquer tentativa de uma investigação mais séria.

Afinal, como diz Bob Fernandes, num de seus depoimentos no filme, “O Jornalismo, dependendo de quem faz, pode ser tudo. Pode ser negócio, pode ser pilantragem, escada pra subir na vida. Pode ser tudo”.

A própria “verdade jornalística” é um conceito relativizado por Janio de Freitas, em depoimento ao documentário: “Se um chefe de governo tem um caso com uma repórter, dependendo de quem seja este chefe de governo, isso é publicado ou não. Seja verdade ou não”, diz o jornalista.

 

ENTREVISTA COM JORGE FURTADO: “Sou um jornalista frustrado”

–  Você é conhecido como cineasta e roteirista, e tem grande atuação no campo da comédia. Como surgiu a ideia de fazer um documentário sobre Jornalismo?

Jorge Furtado – Bom, eu sou cineasta, mas também sou um jornalista frustrado [risos]. Na verdade eu até comecei a estudar Jornalismo, mas acabei abandonando o curso exatamente para fazer Cinema. Profissionalmente, quase tudo o que eu faço se desenvolve nas áreas do cinema e da televisão, mas pessoalmente eu não consigo imaginar minha vida sem ler jornais, sem procurar notícias na internet, sem me atualizar muito sobre todas as coisas.

Gosto tanto de Jornalismo que já há algum tempo eu venho fazendo um blog falando de vários assuntos, entre eles, o Jornalismo [o endereço é  http://www.casacinepoa.com.br/o-blog/jorge-furtado].

– Mas, pelo menos no seu documentário, sua postura em relação ao Jornalismo é bastante crítica.

Jorge Furtado – Já há algum tempo que eu vinha notando que o Jornalismo está em risco. Num primeiro momento pela mudança brutal da tecnologia, que transformou toda a lógica da profissão, e fez com que o Jornalismo tradicional perdesse espaço. Mas este risco acontece também porque o Jornalismo começou a abdicar dos seus próprios princípios fundamentais, como a investigação, a imparcialidade, a busca pela verdade, e tudo o mais.

Eu já estava com esta inquietação, com esta indignação, e de repente, ao ler o livro A História Social da Mídia, de Peter Burke, fiquei sabendo da peça The Staple of News, que o dramaturgo inglês Ben Johnson escreveu no século 17. Fui atrás de uma tradução da peça, e não encontrei nada, nem em português de Portugal. Resolvemos então, eu mesmo e a professora Liziane Kugland, fazermos a tradução, que passou então a ser a primeira tradução de The Staple of News para o idioma português, passando a se chamar O Mercado de Notícias.

Encenar a peça dentro do filme foi uma forma que encontrei de tornar o documentário menos formal, de fugir pelo menos um pouco daquela formatação clássica das entrevistas e depoimentos, embora o filme tenha, obviamente, vários entrevistados dando seus depoimentos.

– Qual foi seu critério para escolher os depoentes do filme?

Jorge Furtado – O critério foi escolher basicamente jornalistas da área de Política, de hard news, de repercussão nacional, de vários veículos. Foi um critério bastante pessoal também, de entrevistar gente que eu leio e sigo.

– Quantos jornalistas dão depoimento no documentário?

Jorge Furtado – Pensei em colocar 14 jornalistas. Defini primeiramente este número porque usei 14 atores para a encenação da peça, e usar 14 depoentes daria um certo equilíbrio. Na verdade, a peça tem mesmo 36 personagens, mas iria ficar demais, e resolvemos fazer uma adaptação para 14 atores.

Fizemos tudo pensando em 14 nomes depoentes, mas acabaram ficando apenas 13, porque deu um probleminha para gravar o Caco Barcellos. Já estava tudo acertado com ele, mas tivemos um problema de agenda e o depoimento dele acabou não saindo.

– Você convidou alguém que não aceitou?

Jorge Furtado – Apenas o Elio Gaspari. E por um simples motivo: ele não dá entrevistas para ninguém. Nunca. Todos os demais aceitaram sem problemas. Eu mandava a peça para eles, e adiantava que eram perguntas seriam sobre Jornalismo, seus rumos, o mercado, critérios, etc. Todos toparam.

– O filme cita vários casos importantes, até divertidos, de grandes erros da Imprensa. Imagino que não deva ter sido fácil escolher quais entrariam no documentário, e quais não caberiam.

Jorge Furtado – No filme há quatro casos interessantes de jornalismo mal feito ou mal apurado: o da Escola Base acusada de pedofilia, a bolinha de papel atirada no então candidato José Serra, a demissão do Ministro dos Esportes Orlando Silva, e o caso do suposto quadro do Picasso encontrado na sede do INSS.

Mas há vários outros a serem levantados e que não estão no filme. Por exemplo, no final de 2008, começaram a sair na imprensa notícias “denunciando” um “absurdo”: a publicação de receita de caipirinha no Diário Oficial da União. O problema é que isso não é absurdo nenhum, pois como a caipirinha é produto de exportação, é uma norma legal e obrigatória que o Diário Oficial publique a sua receita. Não só da caipirinha, mas de qualquer produto de exportação brasileira. E a publicação da receita foi divulgada com estardalhaço e indignação porque nenhum jornalista se preocupou antes em querer saber os motivos daquela receita estar ali, publicada.

– Casos parecidos não faltarão nunca.

Jorge Furtado – Por isso a ideia é atualizar o filme através de um site. Fizemos o site omercadodenoticias.com.br que será sempre atualizado com novos casos como este.

Também colocarmos no site, aos poucos, as entrevistas em suas versões integrais. Cada entrevistado rendeu aproximadamente uma hora de material, que obviamente não cabe no filme, mas cabe no site.