OS CLÁSSICOS NA TELONA DO FESTIVAL DE CURTIBA.

por Cid Nader, de Curitiba.

No primeiro dia pra valer aqui do 5º Olhar de Cinema – aberturas, sendo boas ou não, não deveriam contar como dias trabalhados no currículo, certo? -, a opção de ver e rever os clássicos que por aqui serão exibidos começou a tomar forma. Mais ainda: da forma mais bela, já que ambos que vi foram exibidos em belas cópias 35mm (ver filmes em 35mm, que me perdoem os que nos chamam de viúvas das películas, é tão outra coisa). Cada vez creio mais que dedicar parte do tempo aos clássicos, na cobertura de Festivais e Mostras, deve representar um passo a mais na direção do paraíso, das belezas: se a ideia é a de que “não há tempo para tudo”, que se abdique das coletivas ou mesas (digo isso para minha turma de jornalistas/críticos), ou de paparicação ao que é jogado ao vento como a grande novidade nos grandes Festivais Europeus (sempre haverá uma outra chance – além de, estatisticamente, pelo meu processo de averiguação, essas paparicações normalmente nos levarem a filmes bastante questionáveis…).

Há de se ver marcos quando nos são presenteados: recentemente, numa votação da qual participei para a escolha dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos (pretensioso, não?), a lista final foi de causar grande espanto (ao menos para mim), quando obras pífias estiveram lá bem posicionadas. Em conversas aqui e acolá, a conclusão foi a de que há uma gama enorme de jovens críticos de cinema por aí, e que provavelmente esses jovens críticos nunca viram obras que jamais poderiam ter ficado de fora – sua bagagem e referência é muito recente. Portanto, quando há a oportunidade, que não se a perca, e eu, mais velho ainda, não deixarei mais passar.

Valeu a pena tal dedicação nessa primeira etapa? Obviamente que sim! Mesmo que não tenha visto obras-primas entre os dois de ontem, saber que existem, só por si, já pagou parte de minhas contas com o diabo. Escrevo sobre ambos (e mais um sofrível italiano Antonia., abaixo).

CLÁSSICOS NA TELONA

Panca de Valente
Direção: Luiz Sérgio Person
Duração: 94min.
País/Ano: Brasil/1968

Reza a lenda que o grande Person (um de nossos maiores cineastas – isso no que concerne a cineastas realmente importantes em nossa mais rica cinematografia, normalmente mais à parte do que a sempre chegou ao grande público), que andou par-a-par com o mais revolucionário de nosso cinema (o Marginal, o do Udigrudi, por exemplo), quase que antagonizado frontalmente pela “nata” do que era “considerado” como “nossa única verdade”, pelos da cultura, o Cinema Novo -, cumprindo uma função mais de cabeça de produtor do que diretor, aproveitou-se de nossas incursões no que seria paródia do clássico que representava o western para a força do cinema ianque (tivemos o ciclo do Cinema Campineiro – bem mais restrito – e o que alcançou em maior escala o sucesso, vindo Atlântida, Matar ou Correr, de Carlos Manga).

O que não dá pra negar de modo algum é a evidência de forte satirização empregada em Panca de Valente, quando muito do que agradava ao grande público (vindos dos EUA Clássico no tema do oeste, e mais tarde na mais popularizada e fielmente caricatural vida dos Spaghetiwesterns) é tentado, referindo a situações icônicas dessas escolas: e se dando a sátira (de algum modo à maneira de se pensar no alcance do que agradaria nosso público) muito mais notadamente nos personagens que ultrapassam a lógica (ilógica) do heroísmo e do banditismo, que vão pelo filme aos picos do nonsense; na caracterização do oeste, incluindo aí histórias de amor e terrenos filmados (no caso, a cidade “boleira” de Espalha Brasa, arrancada de região do interior de São Paulo, que podia ser tida como parceira em visual das utilizadas nos EUA)… mas, também na opção de fazer de parte do filme algo que similarizava os musicais (aqui, com músicas de letras e ritmos estranhos não estando mesmo para agradar quem estava acostumado com o “comum” dos filmes musicais, tentando muito mais o alcance dos filmes parodiantes que alcançavam parcela grande de nossas plateias). Em se pensando nesses quesitos, pensar num Person produtor não estaria fora de questão, muito menos como algo desabonador: principalmente, porque é evidente imaginar que suas opções se dão pela cabeça de quem tinha coragem de se jogar numa empreitada diversa do que já lhe fizera a fama (São Paulo AS, O Caso dos Irmãos Naves), para reforçar a ideia de que fazia parte de algo que lutava e criava num oposto contracultural tão próprio a ele – há ali acima de tudo o diretor.

E falemos do diretor e este Panca de Valente. Parece que foi bem comum à época do filme (que não fez sucesso algum de público, porque numa primeira escala fugiu da genialidade de suas obras principais até então, e porque não atingiu plateia que se encantava com outros modelos mais bem estruturados/palatáveis e mais populares de sátira), causando ao diretor desconfiança e cobranças sobre as razões de ter optado por tal empreitada. Falava-se da falta de graça de Chico Martins (no papel de Jerônimo, sujeito abobado que é escolhido pelos bandidos da região para ser o novo xerife – que usava uma margarida no lugar da estrela), um dos fundadores do Teatro Oficina, que empregou peso demais e falta de fluidez (tão comum a Oscarito, por exemplo, citado como o exemplo tentado…); falava-se de desastradas e simplórias de ação e tiroteios; da escolha de atrizes (como a estonteante e visceral Marlene França, ou a belamente delicada Bibi Vogel) que não caberiam aos papeis sugeridos; das músicas mesmo, nada fáceis, compostas por autores bastante urbanos (Rogério Duprat e Damiano Cozzela), como provocações e nada assimiláveis; do estranho balé executado muito rigorosamente e bem, para o que deveria representar a simplória dança de quadrilha (criação de Marika Gidali), e novamente voltando ao que era de matiz extremamente urbana para tal… Talvez os únicos elogios sendo direcionados a Átila Iório (o bandidão Costas Largas) e Jofre Soares (o fazendeiro da região)…

Mas o tempo passa, a certeza de que Person foi um dos maiores se fortalecendo por décadas a fio e, para mim, vendo ao filme aqui no “Olhar de Cinema”, de Curitiba, a certeza de que havia ali toda uma intenção de nada a ser levado realmente a sério (a não ser sutis estocadas na ditadura, quando bandidos colocam por votação forçada um xerife que lhes interessaria, na existência de um prefeito absolutamente débil…), com exageros e tintas fortes sendo empregados propositalmente. Ou alguém, duvidaria de um diretor que arranja toda aquela animação para ilustrar fartamente os créditos? E mais ainda: na constatação de cenas extremamente bem filmadas (a da perseguição de Jerônimo ao seu burrico, com câmera agindo levemente à frente de ambos; ou a que acontece por meio de terrenos bastante irregulares, quando Jerônimo é arrastado, amarrado por quatro cordas pelos bandidos; a da “chuva de cinema”…), num evidente remostrar que ali havia quem respeita a arte como deve ser respeitada. Mais: a coragem de se jogar numa empreitada, repito, totalmente avessa ao que lhe era da fama, é para poucos: para os realmente bons e corajosos.

Compasso de Espera
Direção: Antunes Filho
Duração: 98min.
País/Ano: Brasil/1973

Rever ao único filme dirigido pelo Antunes Filho (que evidentemente conhece de cinema: lembro-me dele assombrado e chorando quando, numa Mostra Internacional de Cinema, de São Paulo, descobriu o Alexander Sokurov; sei dele usar o cinema como método de “criação” possível aos seus discípulos/atores de teatro; sei que usa técnicas de cinema no seu meio), aqui no Olhar de Cinema, tanto bateu como novidade (tinha visto há muitos anos, mas não lembrava de quase nada), quanto bateu pelo impacto do trato do assunto ainda ser tão atual (falar de racismo contra os negros – num estágio que anda expandindo atualmente, para vermos “nos outros” todo o sofrimento impingido pelos donos das benesses – está tão ou mais importante atualmente, quanto antes). Rever a Zózimo Bulbul (sempre importante; sempre sendo o que defendeu os negros e suas causas, principalmente por ser o negro que circulou nos meios brancos por sua beleza, por ser “tolerado” – certo, jamais unanimizar, é verdade -, por setores que sabidamente jamais pensariam em convidar um “outro” para os seus ambientes, aproveitando-se desse “poder” possibilitado para ser mais um dos seus, fortemente) em tela, com presença marcante, criando personagem (Jorge, um escritor, de livre trânsito – seria mesmo? – entre a burguesia branca) que pode até ter tido coisas dele na vida de verdade, cheio de nuances, nada caricatural, ao percebê-lo um estrato complexo tentando vida dentro de estratos diversos e antagônicos demais entre si. A saber: aquele que tem livre trânsito, mas que de alguma forma pensa lutar pelas causas negras, nas palavras cultas proferidas ou escritas, nos amigos que mantém e que lutam, mas que sutilmente renega a pobreza da família, comparecendo com o dinheiro, mas não exatamente com a alma (e aí o interessante de uma composição imaginada pelo diretor, e cumprida bem demais, pelo ator, pois o que se tem em Jorge é o diverso, o de muitas matizes, sem nada de determinista ou condutor em mão única), e que gosta de ser um bon vivant, que tem a amante rica e mais velha, mas que seduz e se deixa seduzir facilmente…

Este filme de Antunes trata das causas dos oprimidos (Stênio Garcia aparece fugazmente como um homossexual que afirma ser mais excluído e negado do que os negros), toca diretamente na questão e tem muito de seu valor nisso, e apostando demais na frase de Millôr Fernandes, “no Brasil não existe preconceito de cor; negro conhece o seu lugar” como o caminho que nortearia seus personagens. Filme que para além de retratar a sociedade da época, tem seu valor de ataque a questões de separação e exclusão enriquecidos pela presença de Renée de Vielmond (jovenzinha e sedutora de tudo), como a modelo filha da velha burguesia que se revolta contra os seus constantemente, tendo num dado momento a presença de Jorge em sua vida para adensar sua revolta no surgimento de um amor meio impossível. Filme que como elemento político, sofreu com a atenção da ditadura e da censura se voltando fortemente em sua direção, para ser liberado na íntegra, após, mas já carimbado como algo que surgia “fora do momento”, questionador demais.

São citados Luther King e Malcolm X de forma esperada para quem quisesse tratar do assunto à época, como os que eram antagonistas no modo de agir e enfrentar uma mesma luta, sem que jamais Jorge tome pra valer um dos dois como o único caminho a seguir (já que seu personagem sofre por estar e não querer estar, por amar, e com medos compreensíveis de perder em status social alcançado).

Mas também cala fundo – revisto em condições lindas e projeção perfeita – o cinema em si. Quem me conhece sabe o quanto posso abdicar de motes e tudo mais desde que um filme me faça feliz por suas técnicas. Compasso de Espera tem problemas nas ligas – por vezes perde um tanto o sentido de encadeamento -, mas é rico demais no restante. Os personagens atuam bem – todos, coadjuvantes inclusos -, como exemplo de que Antunes sabe tratar de teatro e cinema diversamente. E não espanta nada (só um tolo marciano se espantaria) notar a qualidade das imagens, raras, perfeitas, decorrentes de ter “somente” um Jorge Bodanzky como fotógrafo – só essa escolha já seria de “finesse” inquestionável -: mas o que ele entregou, num show incrível, é das coisas mais classudas a que vi nessa arte das imagens, com angulações obtidas que pareciam estruturadas para servir somente às suas lentes, com outros ângulos buscados de cima ou de perto sem que nada de imprescindível tenha sido deixado escanteado, movimentos complexos, sabedoria na luz externa noturna, e com evidente utilização do PB num contexto tudo a ver com a proposta “social” do mote.Com imaginação e boa cartilha executada ao melhor do que se pode encontra por aí (Jorge é um dos grandes de nosso cinema, no geral, e não espanta).

Pra fechar: a cena da violência da praia deveria ser vista por qualquer segmento social (dos artísticos aos de lutas), como o exemplo de como se valer do cinema para se lutar por causas/bandeiras – há força total e dentro da arte utilizada.

LONGA-METRAGEM

Antonia.
Direção: Ferdinando Cito Filomarino
Duração: 94min.
País/Ano: Itália/2015

Cansa e desagrada fortemente filmes que surgem com aura se filmes de arte (designação excludente, redutora e horripilante), para tratar de seres desajustados ou complexos, com clima fílmico que tenta nos impor a todo custo a impressão de que tudo que está colocado na tela teria valor triplicado no mundo das artes. O que é isso? Por exemplo: trabalhos onde as imagens são filmadas com assepsia máxima (mesmo quando trata de desajustes em lugares desajustados, de corpos nus em estágio máximo de desejos – onde ficam os fluidos, por exemplo, a sensação do cheiro? -, do que seria dos reclamos da vida comum…), procurando impor na telona algo que poderia estar em qualquer campanha publicitária de mais bom gosto; obras que apostam na lentificação dos trechos, em atitudes que se fazem notadas exercidas na marra, e não como proposta que convença firmemente tratar-se de opção por um fluxo que valorize o mote abordado dentro de um filme que se valha para além, para a invenção ou real classicismo (antagônicos ou não, invenção e classicismo requerem domínios que extrapolem o fazer por algum tipo de cartilha de arte, e nisso se inclui também o ritmo); diretores que se aproveitam para tentar impor marca que surge mesmo é como cópia mal feita de algum outro artista mais robusto na arte…

Tentar agradar alguns setores de cinefilias específicas (algo como velhos francófilos; ou saudosos dos tempos em que a Itália fazia dezenas de grandes cinemas – e cito a Itália porque esse Antonia. é italiano -; ou, mais ainda, aqueles que pensam ver em Von Trier e alguns mexicanos de plantão o que hpa de revolucionário) parece ter se tornado uma escola seguida por alguns mais espertinhos, que percebendo o filão apostam nele: pior ainda, são capturados por alguns festivais europeus que se imbuíram dessa aura de abrigo dos filmes de arte.

Ferdinando Cito Filomarino trata da poeta Antonia Pozzi, que viveu na Milão dos anos 1930, de família rica e abastada, que vive seus dramas, sofre e terá um final trágico, por tal. Se conto do final trágico é porque o filme desde sempre demonstra que fará disso sua pepita mais ansiada e buscada, o que para além de tudo de mau que elenco acima como coisas que me assustam (e que são de todo o processo do filme), comporá mais um truque sedutor de quem se queira seduzido. Não dá para encarar tal modelo de cinema levando mesmo a sério. E deixa mais triste ainda constatar que da Itália quase tudo que tem vindo (algumas exceções, ainda bem: Bellocchio, Moretti…) é muito ruim, ou falso mesmo, como esse.

Mouchette, A Virgem Possuída
Direção: Robert Bresson
Duração: 78min.
País/Ano: França/1967

Por essa eterna mania humana de categorizar, adjetivar, criar ligações entre coisas e outras (obras e obras, criadores que parece jamais seriam aquilo se não tivessem tido influências outras: ok, que se entenda isso como fato até natural pela constituição animal – pelo menos na animal – que sempre se fez pela acumulação de dados até genéticos; ok, mas sempre parecendo um tanto facilitador na hora de discutir algumas questões que poderiam ser mais férteis se fôssemos atrás do autor em sua essência bacia), diz-se a céu aberto e voz rasgada de Bresson ser autor de essência jansenista (que seria uma corrente filosófico-católica crente no destino como o que explicaria a dualidade pureza/corrupção), pela eterna tendência de embicar seus personagens nas paragens da predestinação, no surgimento (pode ser) da graça de Deus, por vezes repentina e quase sempre de maneira inexplicável entre os homens.

Se houver mesmo anda a necessidade de tentar destrinchar Bresson em analogia a outrem – ele mesmo que teve sua filmografia ligada a adjetivação cinematográfica, quando diz-se do “algo bressoniano” – , por que ligá-lo por uma ou outra de suas obras, se talvez na maioria delas sinta-se um sujeito que enxerga o mundo e seus seres de maneira extremamente pessimista, dura? Um sujeito que por muitas vezes filmou um mundo desajustado. Quando renoto Mouchete, A Virgem Possuída o que vejo é esse mundo duro de muitas de suas obras – que, aliás, é mais ligado à grande fatia literária oriunda de regiões europeias mais isoladas, distantes das crenças nos rigores ou benesses divinas -, onde os valores são de matiz muito mais ligada à dos seres que têm de sobreviver, que encaram a vida como se bichos, como se desprovidos desse senso do temor ou do perdão, porque não haveria superiro a temer.

Quando renoto Mouchette, me salta e volta aos olhos a certeza de um cinema que é único no seu modo de construção, que foge da minha particular maneira em compreender essa arte como a da técnica acima de tudo para entregar-se pela apreciação e atenção máxima aos seres e ao entorno que os abriga: sem que tal fotografia seja extremamente maravilhosa para tal alcance; sem que a luz seja a mais adequadamente elaborada para que a crença no visto tenha razões lógicas brotadas de um trabalho extracampo; muito menos ainda por cooptação por trilha sonora, já que os sons que basicamente lhe interessam nascem dos atos mundanos filmados – não que Bresson abdique sempre de qualquer afeição ao formalismo (diversos filmes dele são de elaboração técnica detalhada e precisa), mas é que em muitos deles, e especialmente aqui, nessa verdadeira obra-prima humana (no sentido do que alcança e toca o humano por qualquer viés que seja, mesmo pelos vieses mais torpes e estranhos), o que temos é uma obra que se vale pela atenção, digamos, literária ao que e passa em tela.

Se as figuras do filme são duras, é porque tem de ser assim nesse mundo dos interiores, meio campesinos, como o é na descrição possibilitada por uma boa narração por palavras escritas num grande livro. Para tal alcance, ele se fixa nas figuras físicas mesmo, sem muito esmiuçar com nuances detalhistas de psiques, o que faz dos personagens seres que poderiam ser – como até já disse – bichos em busca de sobreviver. O modo como Mouchette (em fase total da descoberta da sexualidade) tem de sobreviver em meio a uma família onde a mãe está prestes a se matar é exemplar exposição de como é produto dos que a envolvem: as figuras de Arséne e de Mathieu são duras, inimigas, cheirando a morte, desrespeito e culpas (epa, aí sim algo de mais notadamente bressoniano, ao que é de modo comum no imaginá-lo por mão única de procedimentos); as figuras das meninas da escola, que ainda se fingem meninas (enquanto ela explode em hormônios), abjetas no que se refere a interação, são dignas mesmo das bolas de lamas com que são atingidas constantemente; as mulheres da cidade que não existem para os outros, não reconhecem ou interagem amorosamente; os homens que caçam, desejam sexualmente e brigam como se donos do mundo e das verdades (a ponto de a própria Mouchette ser alvo de um possível estupro – algo que o diretor, com toda sua mania de impedir idas a detalhes mais específicos impede como verdade consumada); a dona da padaria que jamais tratará a garota como uma garota que é…

Há dureza extrema no cinema por vezes católico de Robert Bresson. Há cinema exclusivo a seu modo de fazer, raro, sendo repetido aqui. Que não me esqueça da sequência na cabana, sob o ciclone, com tiros e uma espingarda à vista (daí a culpa cristã volta a um ser que imagina ter matado outro), insinuada pelo olhar da lente que atenta à tal espingarda enquanto os pipocos são ouvidos à distância; que não seja esquecida a sequência final, quando Mouchette rola e rola e rola, areia abaixo, em busca de um final trágico, redentor (sem que jamais ela esteja pensando em redenção, ela, bicho como os outros: talvez ele, Bresson, pensasse).

E sim, quando há de se ter música, que seja como o é sobre os letreiros finais a de Monteverdi. E sim, se há cinema enorme em Mouchette, que não se dê crédito ao acaso: Bresson primava por uma técnica menos visível, a da montagem.

Cassy Jones – O Magnífico Sedutor
Direção: Luiz Sérgio Person
Duração: 100min.
País/Ano: Brasil/1972

Quando alguém como Luiz Sérgio Person, com a pequena fama instalada em setores pequenos de nossa intelectualidade (há aí nesses ambos “pequenos” um chiste mesmo, para significar que trato com eles de um gênio real, reconhecido para valer como tal após muita batalha de defensores que fizeram com que setores donos das “únicas” belezas que o país “poderia” ter num cinema de mais, digamos, gabarito intelectual, mudassem de olhar para sua obra “extremamente paulista”), muda de rumo tão drasticamente, saindo de seu possante cinema sério, para dar pequenas desbundadas (primeiro com o Panca de Valente, agora com esse Cassy Jones – ambos vistos aqui no Olhar de Cinema), com a coragem de botar a cara num mundo que aparentemente não seria nada de seu, o certo mesmo seria gerar mais admiração ainda, de quem já tanto o admirava: coragem se revela quando saímos do comodismo acolhedor, para enfrentarmos o desconhecido, ainda mais quando observados por quem nos conhece, e não ás escondidas.

Na comparação das duas desbundadas, vistas em dois dias seguidos, me ficou melhor, mais bem resolvido, na retina o Panca, que de alguma maneira é filme rodado nas paragens paulistas, terra de mais conforto para o diretor. Mas conhecer a ele e admirá-lo por duas obras primas inquestionáveis requer calma na hora de qualquer nova conceituação, e após visto, após uma noite dormida sobre, relembrar Cassy Jonesagora soa como um brinde oferecido por alguém que podia olhar estrangeiramente um mundo carioca que, geograficamente nem é assim tão distante, mas conceitualmente sim (e bote conceitos variados aí: modo de vida, relação com a arte, interação com a natureza, compromissos e descompromissos, inclusive composição etnológica…).

Reclamar que o filme é mal filmado? De modo algum: está tudo ali, tudo direitinho, novamente, com evidente sensação de que quem o fez entende e muito da coisa. Dizer que está acomodado sobe ditames de cartilhas que regem o que seria de um certo cinema mais “fácil”? Realmente não: pois há as sutilezas que brincam com o excesso de cores (como manifestação inequívoca de um Rio de Janeiro brilhos e colorido – atitudes exercidas falsamente, por conveniência, ou não), com o modo de vida “ditado” como mais relaxado e bon vivant (principalmente com resquícios dos dourados 60 e início dos 70 – ditadura fora, pois), com a ligação dos cariocas (por muitas vezes aventada na marra) ao que era de nossas artes (musicais, no cinema, nas manifestações de palco). Reclamar que é mal cuidado cenicamente? Tudo a que referia modismos de então está ali, nas ambientações diversas, na modernidade do apartamento de Paulo José (um romântico, afinal de contas, que impõe às mulheres a fugacidade de “só quererem sexo”), nas roupas ousadas de praia, num representar o que terminou por bem datar aquele instante da cidade. Falar de alienação? Tanto aqui como um pouco em Panca de Valente a autoidade policial é vista como regradora, como quase uma deteminadora do que se podia fazer ou não, inclusive no âmbito interno das relações homem/mulher, numa clara esticada do poder assustador e observador do governo militar sobre os atos todos da sociedade. Enfim…

Cassy Jones – O Magnífico Sedutor é adoravelmente irregular nessa sua proposta de tratar de um mundo quase fantasioso, em extinção, perdido nos tempos e nas coisas de recordações de um passado que passava a se instalar fortemente no que foi o orgulho de quem por duzentos foi mais do que a capital do país, se instalando como a referência única, monopolizadora de todas as questões e das artes, do modo de viver e das sabedorias. Person, com sua “atribuída” paulistanidade, enxergou muito bem isso, e de maneira até reverencial trouxe todos aqueles conceitos para destilá-los num filme que jamais poderia ser rigoroso em todos os seus procedimentos (jamais deixando de o ser nas questões técnicas), e que serviu de abrigo justo a questões, divertidamente histriônico e “autoparodiante” (com respeito ás figuras icônicas, cada uma em sua posição de reconhecimento: Carlos Imperial, Grande Otelo, o hiperipanemense Hugo Bidet…), espertamente homenageador (à Mutual, ao teatro de revista, às vivas cores da Eastmancolor, a uma beleza culta e resistente nas figuras impressas na fotografia de quadro na parede de um bar – seria o Lamas? -, de Vinícius e Tom). Não pode haver, nunca houve, nunca será encontrado, um Person minimamente inteligente ou dispensável.

A Cor da Romã (Sayat nova )
Direção: Sergei Paradjanov
Duração: 78min.
País/Ano: Geórgia/1968

Havia visto ao A Cor da Romã numa retrospectiva oferecida pela Mostra Internacional de Cinema (São Paulo) há uns bons muitos anos. Muito movido por uma recente (na mesma Mostra, num outro ano) visita ao A Lenda da Fortaleza Suram (1984), suficientemente exótico, provocador, para mexer com o ânimo dos cinéfilos, provocando o querer conhecer mais. Filmes complexos, plenos de simbolismos, de alegorias, que num dado momento não permitiam ainda saber se seria uma tradição comum aos realizadores daquelas paragens da Terra, ou se invencionice genial de uma cabeça só: no caso, a de Sergei Paradjanov. Tempos e saber mais dele, tempos e saber mais dos poetas e artistas daquela região que engloba Armênia, Geórgia e mais uns tantos países estranhos demais à nossa cabeça, tão menos provida de dados e tradições que remetam a um tratamento com deuses e tradições tão mais ricamente, e também bem distante de invasões estarrecedoras, eliminadoras (justamente por conta desses deuses e tradições arraigadas como marca de ferro quente no DNA), fizeram compreender alguinho de nada diante de suas obras, mas reforçando um conceito que prega o entranhar animicamente em obras de arte, muito antes de pensar decifrá-las.

Tempos e a nova possibilidade de ver ao filme, crente que com uma cabeça mais treinada seria chegada e oportunidade de compreender a ponto de explanar sobre, com segurança, talvez um tanto de engabelação… Mas nada pra valer a mais do que as primeiras sensações (aquelas da ânima) já haviam percebido. Dá pra contar que notei com mais vagar que os atos encenados, os cenários construídos ou aproveitados, as encenações num aspecto de mistura desses cenários com vidas atuando sobre, tudo é captado pela câmera fixa, sempre, que observa por angulações e distâncias diversas, mas com aquele comprometimento que cineastas que as utilizam lhes impõem de serem aglutinadoras (posteriormente, repassadoras) do que sua imaginação criou, para ter a força narrativa, sem que as lentes sejam de mais ingerência do que normalmente já o são.

Deu para notar que a montagem desses quadros – sim, por vezes nos vemos diante do que poderiam ser quadros pintados por alguém que tem essa possibilidade (ele tem, afinal de contas), e que tem uma gama ancestral de informações extremamente bem conservadas na (i)memória – é feita com edição pra lá de precisa, tão ajustada e rica (em associação com as narrações poéticas, com os sons diversos – vale lembrar que raramente em seus filmes as bocas falam em correspondência com o que a banda sonora nos conta, o que cria sensações estranhamente interessantes) que permite todo o fluxo de trânsito da obra transcorrendo como se as próprias filmagens fossem de dinâmica acertada pelas lentes em movimento (pois, aí, mais um traço de sua genialidade). Deu também para atentar que tais procedimentos que na mão e olhares de muitos realizadores poderiam ser “reduzidos” a videoarte, aqui e em todo restante de sua obra rendem a grandiosidade única que somente o cinema tem.

Visto que é cinema, e que os tempos reforçaram as sensações específicas ligam ações do filme para tal, poderia cair na esparrela facilitadora de dizer que temos em A Cor da Romã uma representação poético-imagética da vida e desta obra (do mesmo nome) de Sayat Nova, num modo respeitoso à riqueza que sua literatura teria criado, em abundância de belezas e dados: mas seria um truque boboca, oco, engana trouxa. Então, já que filmes e obras assim se falam por si e nos falam ao âmago, espalho uns dados concretos sobre o diretor, sobre os processos de vida do filme (algo que vi alguém fazendo na época em que vi um doc sobre o Paradjanov).

O filme tenta realmente transformar em imagens a poesia de Nova, indo talvez além de sua riqueza, quando relembro a capacidade pictórica que o diretor consegue empregar em toda sua obra: para saber se é somente justo, se é mais ou menos do que os poemas, teríamos de entender o armênio, creio. Consigo identificar a sutil diferença cristã que existe entre os ortodoxos e católicos orientais permeando trechos das imagens (isso se nota na direção tomada durante a finalização do sinal da cruz), enquanto ali, as belezas, medos e resistências ao que é de fora e agressor. Paradjanov, nascido na Geórgia de ascendência armênia sofreu diversas perseguições por causa de A Cor da Romã: visto como um controverso pelo regime soviético foi acusado e quase preso na época em que realizou Sombras dos Antepassados Esquecidos (algo próximo disso, em português), no ano de 1964, acusado pelo sistema (que sempre usou o cinema fortemente como modo de propaganda – ele próprio fez filmes para o regime anteriormente) de priorizar a estética em detrimento da ideologia. Além das suspeitas, ainda foi “perseguido” por ser homossexual e acusado de comerciar ilegalmente antiguidades.

Fugiu para a ancestral Armênia, onde também sofreu, negado em equipamentos e proibido de filmar após a realização de A Cor da Romã, baseado em poemas de Aruthin Sayadian (1712-1795), ou Sayat Nova, que se tornou monge após ter recitado pro anos para corte, acabando por morrer pelo exército invasor persa: vale lembrar que seu olhar sobre a Armênia se faz pela carreira subsequente com olhar de quem foi documentarista (há etnografia, sociologia dos seus), e também com a beleza do artista sensível que também olha para os seus. O filme se dedica a contar linearmente trechos da vida do monge poeta: há ali a citação ao despertar erótico (nas casa se banho, quando contempla pela primeira vez corpos de homens e mulheres); há sensorialidade das uvas sendo amassadas por pés, das lãs sendo batidas e tingidas; há ali um enterro de um poderoso; há a imagem do suco da romã representando tinta e sangue (ligação direta aos invasores)… E há as palavras do poeta sendo citadas, numa liga temporal com o avanço das imagens. Há uma obra sobre alguém com história a ser contada; há a obra cinematográfica criada por alguém que também tem história a ser contada. Mais do que explicar: embarcar.

Texto publicado originalmente em www.cinequanon.art.br