PINTADO DE VERMELHO, BRANCO E AZUL, O FASCISMO SE CHAMA AMERICANISMO.

Por Celso Sabadin.

A frase-título desta matéria não é minha. Ela faz parte de “O Fogo Sagrado”, produção norte-americana filmada em 1941 e lançada no ano seguinte. Ou seja, o filme foi roteirizado e rodado antes dos EUA se engajarem na Segunda Guerra Mundial.

Todos nós, cinéfilos, já estamos cansados de saber como Hollywood capitalizou para si própria e para os EUA as vitórias conquistadas durante a Guerra. Assim, é mais do que saudável ver (ou rever, com novo olhar crítico) este drama de suspense repleto de reflexões políticas pouquíssimo usuais na produção comercial norte-americana.

No momento da realização de “O Fogo Sagrado”, os norte-americanos estavam divididos entre os que acreditavam na adesão à Guerra, e os que preferiam a neutralidade. Foi neste contexto que Donald Ogden Stewart roteirizou o livro da escritora australiana Ida Alexa Ross Wylie (que assinava com I.A.R. Wylie) sobre um repórter estadunidense (Steven, vivido por Spencer Tracy) que retorna ao seu país, estarrecido por ter presenciado, em Berlim, a ascensão do nazismo.

Ainda sob o impacto da nova ordem europeia, Steven é designado para cobrir os portentosos funerais de Robert Forrest, um grande herói (ficcional) americano que – sagazmente – nunca é mostrado.

O clima de consternação nacional que a morte de Forrest provoca chega a ser épico. A dor pesa no ar da América. A nação inteira está em luto. Steven, porém, com sua sagacidade jornalística, desconfia de algo, e começa a investigar. Seu ponto de partida nesta investigação é Christine (Katherine Hepburn), ninguém menos que a viúva de Robert Forrest.

A partir daí, “O Fogo Sagrado” se desenvolve em envolvente clima de suspense e mistério conduzido com rara maestria pela direção seguríssima de George Cukor.

Mas o melhor realmente fica para o final. E lá vem spoiler! As investigações de Steven concluem que a tal “lenda americana” personificada pelo tal Robert Forrest era, na verdade, uma construção político-midiática levada a efeito por um esquema fascista que pretendia se aproveitar da ingenuidade popular para proveito próprio.

Conforme diz a própria viúva em uma das cenas finais do longa, “Eu me casei com uma lenda. Uma lenda sobre um herói. Eu não sabia no começo. Eu… eu adorava Robert. Talvez adorar alguém seja destruí-lo. Todos o adoravam. Não, não, … adoravam a imagem dele. A imagem que foi cuidadosamente construída na mente das pessoas. Deliberadamente construída, agora eu sei, com um propósito terrível. Quando descobri qual era esse propósito, eu tive que destruir a imagem. Não, eu… eu tive que destruir o homem para salvar a imagem. Sim, foi isso”.

Quando Steven lhe pergunta sobre qual seria este propósito, Christine continua sua confissão: “Ele cresceu desprezando o povo que o adorava. Todos nós. Eu também. Ele sentia que estávamos todos debaixo dele. Eu não sabia o que tinha acontecido. Suponho que eu fui um pouco assim, uma vez. Eu acreditava em algumas pessoas. Líderes, governantes. Mas quando Robert começou a mudar, eu… eu vi o rosto do fascismo na minha própria casa. Ódio, arrogância, crueldade. Eu vi o inimigo. Na manhã do acidente, eu roubei as chaves dele, vim aqui e abri isto. Isso é o que eu encontrei [Christine abre um armário cheio de pastas e arquivos]. A chave da organização fascista de Robert Forrest. Eles não chamam isso de fascismo. Pintado de vermelho, branco e azul, ele chamou isso de americanismo. Aqui estão os fundos para ver: quantias fantásticas inscritas por alguns particulares para quem dinheiro não significa nada, mas que queriam poder político. Eles sabiam que nunca conseguiriam por meios democráticos. Há uma lista de seus nomes. Essa era a essência do plano deles. Aqui estão alguns artigos prontos para publicação, para agitar todos os pequenos ódios de toda a nação uns contra os outros. Este foi um artigo a ser publicado em um jornal antissemita atacando os judeus. Isso deveria ser usado na Gazeta dos Fazendeiros para  incitá-los contra moradores da cidade. Aqui está um atacando os católicos. Anti-negro, anti-trabalho, anti-sindicato… um apelo sutil à Ku Klux Klan. Aqui está uma lista de editores de jornais que procuraram ocupar cargos públicos ou procuraram ditar quem deveria ocupar cargos públicos. E quando falharam, senti que o público foi uma besta estúpida. Aqui está uma lista de homens que serviram o seu país na última guerra e não foram bem nos negócios, mas ansiavam pelo poder da patente e o prestígio de um uniforme. Existem os nomes e endereços dos homens que foram designados para ser as primeiras tropas de assalto da América. Mas o que foi realmente chocante para mim foi o completo cinismo do plano. Cada um desses grupos era simplesmente para ser utilizado até esgotar a sua utilidade. Ódios deveriam ser jogados contra ódios. Se um grupo ameaçasse ficar muito poderoso, seria morto por outro grupo. E no final, todas essas pobres pessoas que nunca conheceu, que estavam sendo usadas, elas mesmas estariam nas mesmas correntes, intimidadas e escravizadas… com Robert Forrest e seu punhado de capangas sedentos de poder batendo com o chicote”.

Não pude resistir em reproduzir esta fala final da personagem praticamente na íntegra. O texto é cruel demais, atual demais, e vale a reflexão neste momento neofascista que estávamos vivendo. Em última instância, o que “O Fogo Sagrado” nos mostra é que, no fundo, pouca coisa mudou na política das últimas décadas. Podem ter mudado as ferramentas, as intensidades, os agentes, mas a essência é sempre a mesma. Fica a dica de uma Hollywood que –vez por outra – escorregava aqui e ali um filme mais intenso e mais profundo.

Daqueles que os grandes produtores detestam.