ROTERDÃ 2019: DIVERSIDADE E QUALIDADE NAS TELAS.

João Moris, especial de Roterdã para o Planeta Tela.

 

O Festival Internacional de Cinema de Roterdã (IFFR) continua a todo o vapor, com muita efervescência e participação do público, inclusive nos debates. Aqui, a linha que divide o cinema experimental do cinema independente parece estar bem definida, embora nem todo o filme experimental hoje tenha um estilo radical ou inovador. Também, muitos filmes feitos de forma independente e autoral têm a cara e o jeito de filme comercial, o que não implica necessariamente em menor qualidade. Dito isto, o IFFR se diferencia dos grandes festivais de cinema do mundo ao apresentar filmes realmente diversificados, sem o compromisso com o ineditismo, com o esquema dos grandes estúdios e de trazer diretores badalados ou celebridades.

 

Um dos filmes favoritos do público até agora (e o meu também!) é o dinamarquês Sons of Denmark, primeiro longa do diretor Ulaa Salim, um thriller político contundente sobre a ascensão de um partido nacionalista e xenófobo na Dinamarca e a reação radical de jovens árabes, nascidos no país, à eleição do líder do partido como Primeiro Ministro. Um barril de pólvora que está apenas à espera de uma faísca para explodir na Europa Ocidental. Qualquer semelhança com o avanço da direita e do fascismo no Brasil não é mera coincidência.

 

000rot - Cena do filme Sons of Denmark

Cena do filme Sons of Denmark.

 

Outro filme favorito do público no IFFR deste ano é o escocês Beats, do diretor Brian Welsh. Fala de um grupo de jovens numa cidadezinha da Escócia em meados dos anos 90, quando o governo britânico proibiu as festas raves no Reino Unido. Devido à proibição, este tipo de festa, que reunia milhares de jovens e durava alguns dias, adquiriu status mítico e as raves passaram a ser organizadas de forma clandestina. Apesar de ser direcionado a um público específico, o filme vai além do tom documental e nostálgico de uma época, aprofundando a relação de cumplicidade entre os jovens.

000rot - Cena do filme escocês Beats

Cena do escocês Beats.

 

Destaco também o filme iraniano Tehran, City of Love, de Ali Jaberansari, sobre os relacionamentos de três personagens na capital iraniana. Como retrato tragicômico da solidão, o filme surpreende ao mostrar que valores considerados tipicamente ocidentais (culto à beleza, cuidado excessivo com o corpo, o uso obsessivo do celular, consumo etc) também estão presentes no cotidiano de países mais fechados ou conservadores.

 

 

000rot - Cena do filme iraniano Tehran, City of Love (1)

Cena do filme iraniano Tehran, City of Love

 

Uma experiência multi-sensorial foi assistir ao filme canadense The Seven Last Words, projeto realizado por sete diretores do Quebec, com exibição acompanhada ao vivo por um quarteto de cordas. O filme se baseia na obra do compositor austríaco Joseph Haydn, As Sete Últimas Palavras de Cristo (1787), e os diretores foram comissionados para fazer a leitura imagética da obra de Haydn. Mais do que belas imagens oníricas, o filme traz um retrato pungente e atual do estado do mundo ao som sublime da peça de Haydn tocada ao vivo.

 

 

000rot - Cena do filme The Seven Last Words

Cena da produção canadense The Seven Last Words.

 

Quanto aos filmes brasileiros sendo exibidos no IFFR, No Coração do Mundo, de Maurílio Martins e Gabriel Martins, é um retrato vivo do cotidiano de um bairro da periferia de Contagem, cidade da Grande Belo Horizonte. Os diretores desdobram de forma criativa as histórias, desejos e sonhos de mudança dos personagens, todos vivendo de subempregos ou na marginalidade. A lamentar, o final do filme de tom um tanto policial e esvaziado. A destacar, a atuação da ótima atriz Grace Passô e do ator Leo Pyrata.

 

000rot - Leo Pyrata e Kelly Crifer em cena de No Coração do Mundo

Leo Pyrata e Kelly Crifer em cena de No Coração do Mundo.  

 

Este ano, o IFFR traz ao centro da discussão a questão racial e de gênero no Brasil e em outros países do mundo por meio de mostras paralelas, palestras e aulas magnas. A mostra “Soul in the Eye”, tradução literal de Alma no Olho (1973) nome do curta clássico do diretor, ator e ativista negro brasileiro, Zózimo Bulbul, traz vários filmes brasileiros recentes, como o média metragem Rainha, da diretora Sabrina Fidalgo, sobre a trajetória de uma mulher negra da periferia do Rio de Janeiro, que não mede esforços para ser a rainha de uma escola de samba, e BR3, do jovem diretor Bruno Ribeiro, que mostra o cotidiano de jovens trans e negros nas grandes cidades brasileiras. Os filmes desta mostra foram descritos como “histórias de resistência à violência e ao ódio pelo afeto”. Estes e outros diretores, que formam a nova geração de cineastas brasileiros, estão representando seus filmes no festival.

 

000rot - A atriz Ana Flavia Cavalcanti e a diretora Sabrina Fidalgo (Rainha) e o diretor Bruno Ribeiro (BR3)

A atriz Ana Flavia Cavalcanti e a diretora Sabrina Fidalgo (Rainha) e o diretor Bruno Ribeiro (BR3).

 

Outro filme de jovens diretores brasileiros passando em Roterdã é o média metragem Tragam-me a Cabeça de Carmen M., de Felipe Bragança e Catarina Wallenstein, uma produção Brasil-Portugal sobre uma portuguesa que vem ao Brasil para ensaiar um filme sobre Carmen Miranda, no qual ela faz o papel principal. O filme é uma alegoria sobre a situação atual do Brasil com muitos símbolos e sinais facilmente absorvidos por brasileiros, mas de difícil entendimento para plateias estrangeiras. De maneira criativa e anárquica, o filme fala da perda da identidade e da alegria do brasileiro diante do retrocesso político, social e econômico do país.

 

000 - rot - A atriz Catarina Wallenstein em Tragam-me a Cabeça de Carmen M

A atriz Catarina Wallenstein em Tragam-me a Cabeça de Carmen M.

 

O gênero fantástico no cinema brasileiro está ganhando cada vez mais força e vários filmes de terror vêm sendo produzidos e lançados em nosso país. Morto Não Fala, primeiro longa do diretor Dennison Ramalho, é um exemplar típico desse cinema e foi selecionado para o Festival de Roterdã. Com um elenco estelar, que inclui Daniel de Oliveira, Marco Ricca e Fabíula do Nascimento, o filme tem um enredo muito original sobre um funcionário do IML que “conversa” com os defuntos que ali chegam. Pena que o filme se perca num emaranhado de clichês e sub-enredos do gênero, com um final brando demais. Isto talvez tenha ocorrido porque, como explicou o diretor no debate, o filme é um projeto piloto para uma série de terror que a Globo Filmes pretende lançar em breve.

000 rot - Cena de Morto Não Fala

Cena do filme Morto Não Fala.