SANGUE JOVEM E TALENTOS CONSAGRADOS ABREM O FESTIVAL DE GRAMADO.

Sangue jovem e talentos consagrados fazem a primeira noite do Festival de Gramado.

Gramado abriu na noite do ontem (10/08) a sua histórica 40ª. edição exibindo dois longas metragens: fora de competição, o internacional “360”, de Fernando Meirelles, e dando o pontapé inicial na Mostra Competitiva, o carioca “Eu Não Faço a Menor Ideia do que Eu Tô Fazendo da Minha Vida”, de Matheus Souza. Um ponto em comum une os dois longas: a temática de ambos, cada qual à sua maneira, é a complexidade dos relacionamentos humanos.

“360” passeia com talento e sensibilidade por pequenos e pungentes dramas do cotidiano que permeiam as vidas de pessoas tangenciadas pelas astutas armadilhas do acaso. Se é que o acaso existe. Há um executivo chantageado por ter marcado um encontro com uma prostituta; uma brasileira traída pelo namorado em Londres; um dentista muçulmano que se apaixona por sua assistente russa; um estressado motorista particular que não suporta mais ser mal tratado pelo seu patrão mafioso; um pai à procura da filha desaparecida… e muito mais. E, não, o filme nada tem a ver com o estilo de “histórias paralelas” popularizado por Robert Altman. É outra pegada.

Ainda que desenvolvidas em vários cantos do mundo (Viena, Paris, Londres, Bratislava, Denver e Phoenix), as tramas de “360” são universalmente locais. Falam de culpa, de sexo, de traições, paixões, arrependimentos e buscas. Fala de pequenos detalhes que mudam, em segundos, as opções de uma vida. Um bilhete escrito na hora certa ou um telefonema atendido na hora errada podem alterar a trajetória do mundo. Pelo menos do mundo particular de cada um.

“360” une, no mínimo, três grandes talentos cinematográficos: primeiro, o brilhante roteiro de Peter Morgan, o mesmo de “Além da Vida”, levemente inspirado na peça “La Ronde”, de . Arthur Schnitlzer, não creditado. A ideia é conferir a informação com Meirelles, na entrevista coletiva de logo mais à tarde. Segundo, a vibrante e sempre criativa montagem de Daniel Rezende, que transforma os cortes em algo sempre maior que uma simples transição de cena. E, terceiro, claro, a habilidade de Meirelles em juntar tudo isso a contar, com extremas eficiência e emoção, todas estas histórias e sub-histórias, dando a cada personagem o peso correto, a cada sub-trama o tão necessário equilíbrio dramatúrgico.

Em “360”, Meirelles se mostra um cineasta ainda mais maduro do que foi em “Ensaio Sobre a Cegueira”, e comprova o que nem mais precisava ser comprovado: que também é um grande diretor de atores.
Na apresentação do filme no palco de Gramado, ele disse se tratar de um filme “pequeno e intimista”. Concordo com o intimista, mas discordo do pequeno: “360” é um grande filme sobre a complexidade dos grandes relacionamentos humanos.

A Menor Ideia

O segundo longa da noite foi o carioca “Eu Não Faço a Menor Ideia do que Eu Tô Fazendo da Minha Vida”, de Matheus Souza. Aos 24 anos, Souza já pode dizer com orgulho que este é o seu segundo longa. E com mais orgulho ainda que seu primeiro trabalho, “Apenas o Fim”, foi muito elogiado por ocasião da sua estreia.

“Eu Não Faço a Menor Ideia…” pode não ser tão bom quanto “Apenas o Fim”, mas também traz qualidades. A personagem principal é Clara, uma garota que acaba de entrar na Faculdade, mas não sabe exatamente o que fazer da vida. Enquanto tenta descobrir, mata as aulas experimentando “opções”, como, por exemplo, se tornar “crítica gastronômica de cafés da manhã de hotéis”, ou “construtora de casas em árvores”, iguais às que são vistas em filme americanos.

Numa determinada cena, o avô da protagonista lhe abre o coração, e confessa que fez errado todas as escolhas de sua vida. Todas. Do casamento à profissão, passando pela educação dos filhos… todas! A neta lhe responde: “Nossa vô, o único que fez mais escolhas erradas que você foi o Nicolas Cage”.

A busca da garota, numa primeira leitura, beira o besteirol adolescente, descompromissado e levemente desestruturado em termos de enquadramentos, câmeras e eventualmente até de interpretações. Mas quem de dispuser a embarcar na experiência do jovem diretor (e sua jovem equipe e jovem elenco) logo vai perceber que “Eu Não Faço a Menor Ideia do que Eu Tô Fazendo da Minha Vida” é muito mais que isso. Em seus experimentos investigativos, Clara vai buscar em seus próprios alicerces familiares – igualmente desestruturados – algumas respostas para a sua aparentemente crônica falta de iniciativa. E acaba nos brindando com ótimos momentos de questionamentos entremeados de bom humor.

Bem humorado, o diretor Souza afirma que “ninguém sabe exatamente quanto filme custou porque ninguém estava contando. Mas acho que foi algo em torno de 20 mil reais, o que pra mim é uma superprodução. Esse filme e o meu “Transformers”, brinca.

Se em muitos momentos “Eu Não Faço a Menor Ideia do que Eu Tô Fazendo da Minha Vida” causa um certo estranhamento estético, vale questionar se isso pode advir até de um acomodamento da nossa própria visão cinematográfica, não raro deitada no berço esplêndido das nossas convicções que julgamos pétreas. Afinal, não é exatamente isso que Clara quer questionar junto com sua família?

Fica a ideia.

Celso Sabadin viajou a Gramado a convite da organização do evento.
Foto de Edison Vara.