SEM MOSTRAS COMPETITIVAS, O CINE OP É O FESTIVAL DE ONDE TODOS SAEM VENCEDORES.

Celso Sabadin, de Ouro Preto.

Não deixa de ser uma experiência interessante. E positiva: um encerramento de festival de cinema sem premiações. Sem competições, sem nenhum estresse, sem aquele zum-zum-zum de “quem ganhou, quem não ganhou”. Um encerramento pensado apenas para celebrar o Cinema. É gratificante: é mais audiovisual e menos Fla-Flu. Assim foi a última noite (22/06) da 10ª Mostra de Cinema de Ouro Preto, que este ano levou mais de 15 mil pessoas aos espaços da cidade dedicados à exibição de filmes, aos debates e palestras.

Na celebração do encerramento, no Cine Vila Rica, o cineasta Luiz Carlos Lacerda, conhecido no mercado como Bigode, foi homenageado pelos seus 50 anos de carreira. Visivelmente emocionado, Bigode discursou afirmando que em todos estes anos já viu o cinema brasileiro passar por grandes crises e grandes fases gloriosas. E lamenta o momento atual, no qual predomina uma “burocracia ditatorial”, segundo o homenageado.

Na sequência, Bigode exibiu a criação coletiva dos alunos da oficina de produção cinematográfica que coordenou durante a Mostra.

A noite foi encerrada com uma apresentação especial de filmes históricos com acompanhamento musical ao vivo do coletivo francês DoubleCadence. Na tela, os primeiros filmes dos irmãos Lumiére, realizados em 1895; o primeiro curta do português Manoel de Oliveira, Douro, Faina Fluvial (1931); e uma série de filmes amadores produzidos no Rio de Janeiro dos anos 1920 aos 1980. Mesclando-se com o encantamento das primeiras imagens da história do cinema, produzidas pelos Lumière, e com a força do belo curta de Oliveira, causou estranhamento a exibição dos filmes amadores cariocas: com a intenção de comemorar os 450 anos do Rio de Janeiro, foram mostradas ostentações explícitas das elites brancas da época – carros de luxo, mansões, o sorriso submisso da mucama – exatamente num festival que priorizou o debate sobre a condição do negro no Brasil. Vamos preferir atribuir a suposta gafe a uma tentativa de reflexão sobre o tema.

A organização do evento ainda divulgou o balanço que segue abaixo, prestando contas a respeito deste que é o único festival do Brasil país a tratar os filmes como patrimônio – e, a partir disso, dar protagonismo à importância da sobrevivência de trabalhos feitos no passado e ainda relevantes no presente:

 

“A 10ª CineOP beneficiou mais de 15 mil pessoas ao longo de seis dias de programação oferecida gratuitamente ao público. O 10º Seminário do Cinema Brasileiro que sediou o Encontro Nacional de Arquivos e Acervos Audiovisuais e o Encontro da Educação: VII Fórum da Rede Kino promoveu 15 debates, contou com a participação de 47 profissionais no centro das discussões e 215 convidados circularam pelo Centro de Convenções, representando dezenas de entidades e instituições educacionais e de preservação.

Nesta edição, o tema do Acesso e Acessibilidade permeou os debates mais intensos, especialmente quando a respeito da Lei 13.006, que obriga escolas públicas a exibirem um mínimo de duas horas de cinema brasileiro por mês dentro da grade curricular. Várias foram as intervenções contrárias ou em dúvida sobre a viabilidade e produtividade da lei, quase sempre apontando a carência de equipamentos e condições de exibição nos espaços de ensino do Estado.

Adriana Fresquet, curadora da Temática Educação, diz não acreditar que se possa transmitir interesse pelo cinema brasileiro pela obrigatoriedade. Ela crê que os professores, acima de tudo, precisam de entusiasmo no ensino. “Se conseguimos passar nossa empolgação no ensino daquela disciplina, daquela manifestação artística, o aluno vai se lembrar dessa emoção”, afirma Fresquet. Daí que, para ela, torna-se bem mais complexo lidar com o ensino e orientação de uma arte tão cheia de possibilidade. “O cinema na escola não deve ser veículo de alguma ‘função social’ ou valorativa, mas de experiência singular”.

Outra questão urgente para os professores participantes dos 11 encontros promovidos pelo VII Fórum da Rede Kino foi a maneira como os filmes deverão ser disponibilizados a partir do momento em que a lei de fato estiver em vigor. De onde virão? Quem os levará às escolas? Quem os escolherá? Para muitos que estiveram nos debates, a figura do professor precisará, de alguma forma, se aprimorar e se tornar um pouco curador. “Não podemos ter a ingenuidade de que a educação possa ser neutra”, afirma Adriana Fresquet.

Cesar Callegari, membro do Conselho Nacional de Educação, ponderou que a lei não foi definida a partir de uma reivindicação da classe docente. “Não foram os professores que levaram esta demanda, ainda que ela seja importante”. A coordenadora da Rede Kino e professora da UFMG, Inês Teixeira, acha que o governo estaria repassando mais uma responsabilidade à escola, sem cobrar o mesmo tipo de empenho e funcionalidade de outras instâncias. Mesmo assim, ela garante que haverá todo o esforço da classe para a lei funcionar.

Uma carta aberta desenvolvida por integrantes da Rede Kino foi elaborada, chamando atenção para pontos centrais do assunto, e um livro editado pela Universo Produção reunindo artigos, reflexões e propostas elaboradas por professores de diversas instituições do Brasil teve lançamento. A publicação foi iniciativa colaborativa que coloca em questão as possibilidades e limites da Lei 13.006, que torna obrigatória a exibição mensal de duas horas de filmes de produção nacional nas escolas de educação básica.

Experiências de educação audiovisual nas escolas feitas em outros países foram destaques na mesa Foco na América Latina, na qual os participantes conheceram trabalhos desenvolvidos em Cuba e no Chile. Reafirmando a relação da CineOP com a educação, neste ano o programa Cine-Expressão – A Escola Vai ao Cinema atendeu 22 escolas da rede pública de ensino da cidade, com oito sessões de cinema e cinco cine-debates, beneficiando mais de 3.000 estudantes.

 

MEMÓRIA

 

Na Temática Preservação, a grande conquista da 10ª CineOP foi o reconhecimento, aberto e assumido, da Secretaria do Audiovisual pelas demandas da área. Em encontro com profissionais do setor, o atual secretário,Pola Ribeiro, estimulou uma parceria entre o Estado e as entidades no intuito do desenvolvimento de um Plano Nacional de Restauração. “A responsabilidade pela guarda de um filme depois de sua circulação tem que ser do Estado. Isso não pode se tornar mais uma tarefa do produtor”, afirma Pola.

Para Hernani Heffner, curador da Temática Preservação, a posição do governo federal de se colocar lado a lado com as demandas da área é uma conquista imensa, a mais importante do ano e certamente resultado desta primeira década de CineOP. “Foi reconhecida a trajetória de crescimento e de amadurecimento do setor ao longo de todos estes anos. Não estamos mais na fase de definir ou encaminhar justificativas, mas de efetivamente pensar um a ser encaminhado. O secretário do Audiovisual deixou a bola com a gente”, celebra Heffner.

O curador também se mostrou animado com a apresentação do BNDES, na qual a contadora do Departamento de Economia da Cultura do banco, Fernanda Menezes Balbi, expôs várias linhas de financiamento disponíveis para o setor. As cartelas do BNDES se dividem em ações curativas (para situações de emergência em acervos deteriorados), preventivas e de sustentabilidade. Em dez anos, foram apoiados 136 projetos, com aporte de R$ 48 milhões a arquivos, museus, bibliotecas e cinematecas.

Os dois caminhos abertos (Ministério da Cultura e BNDES) e o fórum cada vez mais intenso tal como constituído na CineOP foram grandes estímulos para que os preservadores e restauradores presentes em Ouro Preto, todos ligados à ABPA (Associação Brasileira de Preservação Audiovisual), se empolgassem com as possibilidades de que seus trabalhos possam, enfim, serem realizados sem tantos sacrifícios como nos últimos anos. “É uma coisa que se faz por muita paixão”, exalta Fernanda Coelho, homenageada pela mostra por seus 36 anos dedicados ao setor. A tradicional Carta de Ouro Preto foi elaborada frisando o compromisso do governo e também reforçando a importância de se manter a insistência em melhores políticas que pensem e se preocupem com a preservação.

 

RESGATES

 

Criada para destacar projetos de restauração de filmes brasileiros, a Mostra Preservação exibiu o longa-metragem Antes, o Verão (1968), do cineasta carioca Gerson Tavares. O filme, um clássico esquecido da historiografia audiovisual no país, foi apresentado em grande estilo no Cine Vila Rica, em cópia digital que manteve a essência do trabalho original. Outros filmes de Tavares estiveram na programação, como parte do projeto desenvolvido pelo professor Rafael de Luna Freire (UFF-RJ). “Um filme grita quando está se deteriorando. Você consegue perceber as marcas do tempo fisicamente”, diz ele, que encontrou a obra de Tavares em estado calamitoso e se empenhou em trazê-la da invisibilidade, contando com o trabalho do restaurador Francisco Moreira.

Outro filme incluído na Mostra Preservação foi o mítico Limite (1931), de Mário Peixoto. Foi exibida, pela primeira vez no Brasil, uma cópia restaurada pela Cinemateca de Bolonha. “Nós restauramos filmes para mostrá-los. Não faz sentido se não pudermos mostra-los”, afirmou Davide Pozzi, diretor do festival L’Image Ritrovata, na Itália.

Na Temática Histórica, o eixo central que esteve nas telas, debates e homenagem foi “O Negro em Movimento, com objetivo de discutir a representação do negro nas telas brasileiras. O homenageado do ano, Milton Gonçalves, revelou ter sofrido todo tipo de preconceito e ainda demonstrou, aos 81 anos, muita garra para vencer as dificuldades. “Se amanhã eu sair da TV Globo, eu quero ser respeitado como cidadão. Nós, negros, estamos à margem da sociedade”.

Nos dois encontros realizados sobre o tema, ficou patente a urgência do assunto e a necessidade de novas formas de pensar a inserção e representatividade do negro no audiovisual. “Somos 52% da população brasileira, mas isso não se reflete na TV, no cinema, nas empresas e em quase nenhuma instituição”, frisa o ator Antônio Pitanga, que pôde ser visto também na juventude, no clássico Ganga Zumba (1964), de Carlos Diegues, exibido na Mostra Histórica.

O diretor e escritor Joel Zito Araújo se mostrou pouco otimista com a questão, acreditando numa “teoria do branqueamento” que estaria dominando todas as instâncias de visibilidade do negro. Ainda assim, disse que segue lutando para superar o racismo que sente ainda muito forte no meio audiovisual. Tanto em filmes contemporâneos, tais como Branco Sai Preto Fica (2014), de Adirley Queirós, quanto em outros clássicos, entre eles A Rainha Diaba (1974), de Antônio Carlos da Fontoura, o assunto permaneceu em voga, servindo de oxigênio para encontros e debates no Centro de Convenções.

 

CONQUISTAS

 

A 10ª CineOP exibiu 104 filmes (15 longas, 6 médias e 83 curtas, 40 deles realizados em contexto escolar), entre pré-estreias e retrospectivas divididas em quatro mostras temáticas: Contemporânea, Preservação, Histórica e Educação. Nas 33 sessões de cinema, o público pôde ver desde a versatilidade artística de uma cantora reconhecida, em My Name is Now, Elza Soares, de Elizabete Martins Campos, até a dor de mergulhar nos arquivos da ditadura militar brasileira, em Retratos de Identificação, de Anita Leandro – todos sempre intensamente relacionados a questões de arquivo, resgate e memória.

“A CineOP tem sido testemunha das conquistas e avanços do setor da preservação e colabora, em suas edições anuais, para promover o diálogo e aproximar a sociedade e o Estado dos que atuam e trabalham com a preservação – questão vital para o desenvolvimento de uma nação, para o resgate da nossa história. Nesta edição celebramos o compromisso da Secretaria do Audiovisual com o setor, visando estabelecer conjuntamente as diretrizes para o funcionamento de um Plano Nacional de Preservação”, ressalta Raquel Hallak, coordenadora da CineOP.

Na edição celebratória de seus dez anos, a CineOP avança na consolidação de sua vocação – colocar em foco e em debate a preservação, história e educação, fundamentais num país como o Brasil, notoriamente avesso a preservar e dar acesso aos bens culturais por ele mesmo produzidos. Pensando através do cinema, a CineOP resgata e reflete movimentos e tendências, ao mesmo tempo que revisita o passado com olhar contemporâneo sob a perspectiva de futuro.”

 

Foi definida ainda a data da 11ª CineOP de 22 a 27 de junho de 2016. Ano que vem tem mais.

 

Celso Sabadin viajou a Ouro Preto a convite da organização do evento.