SITGES, UM FESTIVAL (LITERALMENTE) FANTÁSTICO.

João Moris, especial de Sitges, Catalunha, para o Planeta Tela. 

Por 11 dias em outubro, há 52 anos, a pequena cidade praiana catalã de Sitges, de 28 mil habitantes e encravada na costa do Mar Mediterrâneo, é sede de um dos mais aclamados festivais de cinema do gênero fantástico do mundo. O Festival de Sitges é litoralmente uma festa! Engana-se quem pensa que este festival só atrai os fãs estereotipados do gênero, ou seja, gente estranha vestida de preto, avessa ao sol, geralmente homens de barba e desleixados. Aqui em Sitges, pessoas de todas as tribos e identidades são atraídas para este festival que, ao longo dos anos, se afirmou como um dos maiores eventos culturais da Catalunha.

Como é sabido, e vem sendo reiterado por vários diretores de cinema que aderiram ao gênero fantástico nos últimos anos (inclusive brasileiros), o mundo está propício para filmes de terror, impulsionado principalmente pelo avanço de governos conservadores, repressivos e neofascistas, que não só causam repulsa como instauram o medo.  Assim sendo, nem no enredo mais criativo de um filme fantástico e nem nos nossos piores pesadelos, poderíamos imaginar que o mundo contemporâneo (e o Brasil!) fosse ser palco de tantos horrores. O gênero fantástico é um espelho deste mundo e age como elemento catártico.

Em alta 

O gênero fantástico se tornou um grande guarda-chuva que inclui, além de filmes de terror típicos, os chamados gore ou slasher movies (ultraviolentos e sanguinolentos), filmes de zumbis, monstros, bruxas e vampiros, e de criaturas inomináveis e horripilantes. Hoje, há também produções cada vez mais sutis e reflexivas, que incluem filmes de ficção científica, inteligência artificial, de temática psicológica, alegorias sociais e políticas etc. O que dá liga a este gênero de filme é a sensação de estranhamento, de mal-estar, de desconforto. Talvez seja por isto que o gênero fantástico esteja ganhando cada vez mais adeptos, inclusive nas séries exibidas nos canais de TV pagos e plataformas online.

Outra característica do filme fantástico é o não compromisso em fazer uma representação naturalista da realidade. Assim sendo, os roteiristas e diretores estão livres para dar asas à imaginação, e muitos roteiros de filmes fantásticos são extremamente criativos, imaginativos e bem bolados. Mas, um dos problemas que vejo é que muitos diretores tendem a se exceder, ou querer agradar a um certo tipo de público, e histórias originais se perdem ou se enfraquecem num emaranhado de exageros e estímulos visuais.

 

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Cartaz do Festival Internacional de Cinema Fantástico de Sitges 2019 (Foto: Divulgação)

 

Excentricidades

Além da sua tradição e de ser reconhecido internacionalmente, o Festival de Sitges tem muitas peculiaridades que o tornam diferente das centenas de festivais de cinema fantástico existentes no mundo. A começar pelas suas plateias extremamente entusiasmadas. É muito raro em festivais, inclusive os mais badalados, ver o público aplaudir as vinhetas de apresentação. Em Sitges, em todas as sessões (inclusive nas de jornalistas, que começam às 8h30!) o público aplaude entusiasticamente a vinheta (www.youtube.com/user/SitgesFilmFestival).

E também não é incomum o público aplaudir o filme quando começa (nos letreiros), quando termina (mesmo quando o filme é sofrível!) e em cena aberta no meio do filme. Ao contrário das animadas plateias do Festival de Havana, que torcem em voz alta pelos “mocinhos” do filme e vaiam os “bandidos”, em Sitges o público se limita a aplaudir freneticamente, sem gritar, quando há uma cena em que o “bandido” se dá mal, ou que um zumbi ou monstro é morto de forma criativa pelo herói do filme. Assim, a maioria das sessões em que estive, há uma interatividade da plateia com o filme que, além de espontânea, é divertida.

E em poucos festivais do mundo, há maratonas noturnas quase diárias (os chamados “noitões”), que exibem sessões contínuas de três ou quatro filmes e se estendem ao longo da madrugada e duram até 8 horas. Aqui em Sitges, conheci espanhóis que vão ao noitão e depois vão trabalhar no dia seguinte. Isto é que é amor pelo cinema!

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As sessões do Festival de Sitges são disputadas e contam com uma plateia participativa                              (Foto Divulgação)

 

Zombie Walk

Outra peculiaridade do Festival de Sitges é um evento paralelo que se chama Zombie Walk (Parada dos Zumbis). O evento é realizado no sábado à noite e toma as ruas da cidade. A organização do festival limita o número de participantes a 350 “zumbis” e fornece os maquiadores e a maquiagem de graça. Muita gente se inscreve na parada e a cidade fica abarrotada de visitantes acompanhando os personagens, que além de zumbis, incluem bruxas,  múmias, monstros, caveiras e diabos, médicos e enfermeiras do mal, noivas diabólicas, crianças malévolas, motoqueiros ensandecidos, mutantes, cavaleiros pós-apocalípticos, freaks, rostos deformados, cabeças cortadas por machados, e outras deformidades, além de sangue, muito sangue.  O evento é muito criativo e divertido e já virou uma tradição na cidade (existe há 13 anos), atraindo visitantes de toda a região, inclusive de Barcelona, que fica a 30 km de Sitges.

 

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Uma “zumbi” na Zombie Walk em Sitges 2019

 

Temas plurais

Para uma cidade tão pequena, o Festival de Sitges tem números bem expressivos: são 171 filmes entre curtas e longas metragens, exibidos ao longo de 11 dias, do dia 3 a 13 de outubro, em 5 cinemas, sendo que o maior é a belíssima sala sede do festival, o Meliá Sitges, de 1.700 lugares. Segundo a organização, a expectativa de público para este ano é 200 mil espectadores. As sessões rolam o dia inteiro a partir das 8h30 (inclusive nos “noitões” descritos acima) e têm estado bem cheias.

O Festival de Sitges traz filmes para todos os gostos. É certo que os filmes mais populares são os de zumbis e têm quase 10 filmes sobre o tema mortos-vivos na programação do festival. Por que há tanto fascínio e tantos filmes sobre zumbis? Nesse quesito, os filmes sul-coreanos ganham disparado e o festival traz paródias muito engraçadas desse subgênero. Além desse tema, tem  horror gótico, alienígenas que se apoderam de humanos, monstros no sótão, no porão, na sala de visitas e em qualquer lugar da casa que você possa imaginar, criaturas das florestas, os psicóticos de plantão, geladeiras que controlam mentes, lagostas falantes, pessoas com o dom da invisibilidade, além de muitos filmes alegóricos sobre o estado do mundo e o enfraquecimento das relações humanas. Distopias aos montões.

E tem o nosso Bacurau, que concorre na seleção oficial do Festival de Sitges, juntamente com mais 34 selecionados. O filme passa no dia 08/10, no Meliá Sitges, com sessões esgotadas. Comentarei sobre a receptividade ao grande filme do Kleber Mendonça Filho e sobre outros filmes no meu próximo artigo. Aguardem.

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                                                    O tapete vermelho no cinema sede do festival, o Meliá Sitges, de 1.700 lugares