TATA AMARAL: “O BRASIL PRECISA PUNIR SEUS CRIMINOSOS”.

Um filme sobre os anos de chumbo da ditadura militar brasileira, totalmente realizado sem nenhuma imagem de arquivo, sem nenhuma reconstituição de época. Assim é “Hoje”, longa metragem produzido e dirigido por Tata Amaral, que investiga antigos medos e culpas que parecem jamais morrer.

Conversamos com exclusividade com a cineasta.

A ditadura realmente acabou ou ela de alguma maneira continua viva dentro das pessoas?
Tata Amaral – Olha, eu acho que ela acabou, sim. O que o filme Hoje fala é que ela deixou marcas, principalmente pelo fato de que no Brasil a gente não identificou e não puniu os responsáveis pela tortura. Estas pessoas que viveram, tiveram perdas ou que foram torturadas, elas trazem consigo marcas deste período. Muitas destas marcas se referem ao fato de que elas nunca realmente falaram do que aconteceu com elas, como se elas vivessem sob um silêncio autoimposto.
Muitas delas não souberam a verdade em relação às pessoas que perderam. Esse é o caso da nossa personagem, a Vera (Denise Fraga), que ficou anos atrás do seu companheiro desaparecido. Ela viveu durante anos numa espécie de estado de “suspensão”, sem saber se era viúva ou não. Essa situação da ditadura militar, do governo brasileiro não reconhecer a morte das pessoas, de não assumir estes crimes, fez com que muita gente ficasse neste estado de suspensão. Um pai, um marido ou uma mulher não podia se casar de novo porque não era oficialmente viúva ou viúvo. O filho não podia herdar porque na verdade o pai não morreu oficialmente; uma criança não podia viajar sozinha com a mãe porque não tinha a certidão de óbito do pai, nem autorização para viajar, enfim, muita gente viveu neste estado de suspensão.
Neste sentido, a Lei dos Desaparecidos [Lei 9.140, que reconhece como mortas pessoas desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979] se propôs a investigar as circunstâncias do desaparecimento de algumas pessoas, e é essa situação que vive a personagem Vera: ela acaba de ter a morte do seu marido decretada pelo Estado, que reconhece então o assassinato e a indeniza. Com o dinheiro da indenização, Vera compra um apartamento.

Claro que sem contar o segredo final do filme, a sensação que passa é que Hoje também fala fortemente sobre culpa.
Tata – Exatamente, porque a culpa é uma das coisas mais importantes na ausência de verdade. As pessoas negociavam a sua própria dor com a tortura. Na época, existia a conhecida “regra das 48 horas”, ou seja, na pior fase da ditadura, se um militante ficasse 48 horas sem se encontrar com outro militante, isso significava que a pessoa tinha sido presa, e o outro deveria fugir. Quem foge, foge com culpa. Os regimes de opressão são horríveis porque eles fazem a vítima se sentir culpada. O filme trata disso também.

Por que este tema te interessou como cineasta? O que você viveu da ditadura?
Tata – Eu vivi muito pouco porque eu era criança e depois pré-adolescente neste período. Não tive nenhum parente diretamente envolvido com a militância nessa época. Posteriormente, o pai do meu primeiro marido foi cassado, mas eu mesma não vivi diretamente este período. A história do filme é baseada no livro Prova Contrária, de Fernando Bonassi. Quando eu li o livro, vi que ele falava muito de uma situação de perda e de ausência, de uma relação que foi rompida de forma abrupta no passado. Me chamou a atenção em especial um capítulo sobre suicídio, onde a mulher fala de como ela quis morrer de tanta falta que ela sentia do marido desaparecido. Eu me identifiquei imediatamente com isso, porque eu perdi meu primeiro marido, o pai da minha filha, quando eu tinha apenas 19 anos. E eu lia aquele livro e pensava: “Nossa, mas é muito pior que isso que está escrito”. E senti que eu queria fazer um filme sobre isso, sobre a ausência de uma pessoa que se foi muito cedo das nossas vidas, e de uma forma violenta. No caso dele não foi política, embora, nós dois fôssemos militantes de uma organização clandestina. Mas, enfim, o livro trata exatamente deste período, da história de uma mulher que compra um apartamento com o dinheiro que ela recebe de indenização pelo desaparecimento do marido, e no dia da mudança, o marido volta.

O “dia da mudança” que você fala é extremamente significativo, porque ela não só está tentando mudar, como ela passa o filme todo tentando arrumar aquele apartamento como se fosse uma arrumação interna dela.
Tata – Exatamente, é um dia especial para ela, um dia em que ela dá um passo a frente, onde ela finalmente se dispõe, tem condições de deixar o passado para trás. Ela está querendo ir pra frente.
O filme de certa forma coloca de um jeito simbólico, se é que dá para pensar assim, que para você dar um passo à frente você precisa resolver os traumas do passado. De certa forma, é um filme que a gente fez pensando muito numa concepção de Brasil, que é um país que quer ir pra frente e está indo pra frente, é uma democracia cada vez mais próspera, está resolvendo um monte de coisas. Mas para realmente o Brasil caminhar para uma situação de sociedade justa, ele precisa resolver este trauma do passado, esta mácula. Precisa punir os seus criminosos.
Uma das pessoas que eu entrevistei como material de pesquisa para o filme fala que uma sociedade que não trata a questão da tortura é uma sociedade que aceita a tortura. E a verdade é que a gente aceita a tortura. Agora não é mais uma tortura política, mas é uma tortura das pessoas pobres que estão na cadeia. A gente sabe que elas são torturadas, a gente vê nos jornais, a polícia levando o moleque para um canto e atirando no pé. A gente vê isso, é conivente, e nunca tratamos disso. É importante, é atual, e não é passado: é hoje.

O fato de termos uma presidenta que foi torturada, de certa forma fecha um ciclo?
Tata – Eu acho que é um passo importante para fechar o ciclo. Acho que o ciclo só se fechará quando, a exemplo de alguns países da América Latina, a gente conseguir colocar um fim nisso. O fim é identificar e punir. Da forma que for. Você não pode dar perdão àqueles que não pedem. Essas pessoas cometeram um crime que lesam a Humanidade. A tortura é um crime contra a Humanidade. Hoje você encontra um nazista na rua, por mais velhinho que seja, você tem que entregá-lo à autoridade, você não vai deixar de fazer isso. É crime não fazer isso: ocultação de criminoso. Aqui no Brasil a gente tenta fingir que isso não aconteceu.

Você vê no jovem de hoje essa noção do que foi a ditadura militar ou parece uma coisa muito distante para eles?
Tata – É engraçado, muito curioso. Eu vejo alguns jovens que nem sabem exatamente o que é uma ditadura, mas por outro lado vejo jovens militantes, jovens que estão pregando cartazes de desaparecidos, que estão atrás de resolver isso, de fazer com que a gente olhe para isso, militando muito mais do que adultos ou pessoas que foram militantes na época. Vejo as duas coisas. Eu me lembro também que, minha filha, Caru, nasceu em 18 de agosto de 1979, três dias depois de promulgada a Anistia. Eu lembro que quando ela nasceu, eu e o pai dela, a gente se abraçou e falou que queríamos que nossa filha crescesse e tivesse uma vida inteira vivendo com liberdades democráticas. Isso está acontecendo. Acho que vai acontecer, e tudo indica que ela vai ter essa vida inteira. O que a gente não podia imaginar é esse esquecimento. Eu não sou tão velha assim, nem ela, e no entanto, parece que houve um hiato de experiências.

O cinema ajuda a suprir este hiato?
Tata – O cinema, a cultura, a escola, o conhecimento, o fato político, a Comissão da Verdade, a identificação dos criminosos, tudo ajuda. É um conjunto de coisas. O filme Hoje é basicamente um filme de amor. Ele tem um ambiente político, mas é um filme que fala de sentimento, e além disso, ele fala de hoje, ele não faz flashback, não mostra o passado. Ele encontra, hoje, as pessoas que tiveram um passado, e isso foi uma coisa que a gente buscou mesmo representar: como lidamos com o passado, hoje. Não através da reconstituição de época, mas através daquilo que fica no coração e na memória das pessoas. O filme traz uma busca, uma representação. Fiquei um tempo para descobrir como eu ia falar disso. A ideia das projeções nas paredes do apartamento vem suprir essa necessidade de criar uma representação do passado, hoje. Não tem nenhum flashback no filme. Tudo são emoções e ambientes. O coração e a realidade estão ali na parede, estão se relacionando o tempo inteiro, porque são presentes. Ela evoca suas emoções e lembranças de hoje.

Um filme com dois grandes protagonistas fortíssimos precisava de um elenco igualmente forte. Você optoui por César Trancoso e Denise Fraga. Como você chegou nestes nomes?
Tata – A Denise foi um achado pra mim, para o filme, pra minha vida, porque ela é uma pessoa muito especial e muito amorosa, e eu tive muita sorte de encontrá-la. Ela conferiu ao personagem um sentimento muito profundo, mas ao mesmo tempo, muito suave de certa forma. Ela não pesa, não tem aquela coisa do drama grego, mas tem a dor profunda do personagem com muito amor. E o César também, foi muito importante ele ser um estrangeiro [o ator é uruguaio] por várias razões: o personagem do Luiz se afastou durante um tempo da vida de Vera. Ele, uruguaio, não estava no país, que é uma situação dramaturgicamente importante. Isso tem a ver com o César ser uruguaio e ser um cara desta magnitude. Ele tem uma intensidade e ao mesmo tempo, uma economia na atuação, uma precisão que era muito importante para esse personagem.

Como nos seus filmes anteriores, Através da Janela, Céu das Estrelas e Antonia, você retrata uma história de uma mulher forte. Isso é consciente ou é consequência natural de sua obra?
Tata – Pois é, eu já tinha terminado a trilogia das mulheres com Antonia, mas acho que sobrou alguma coisa dos personagens femininos, e eu acabei, sem querer nesse processo todo, fazendo outra trilogia, que eu chamei de “iluminar o passado”. Trata-se de Rei do Carimã, um documentário sobre um episódio ocorrido na vida do meu pai; a minissérie Trago Comigo, que eu fiz para TV Cultura, e vai virar longa-metragem; e Hoje. Apesar de ter um personagem feminino sim, eu acho que são trabalhos que falam da iluminação do passado, da necessidade de trazer à tona o que está escondido. E embora eu deteste o simbolismo, eu flerto muito com o ele através dos nomes dos personagens: ele, Luiz, nome que significa Luz; e ela, Vera que significa Verdade.

Do que se trata “Rei do Carimã”?
Tata – É um documentário que conta a seguinte história: no dia do velório da minha mãe, meu tio, irmão do meu pai, começou a falar do meu pai e da minha mãe. E me disse que meu pai tinha sido uma pessoa muito rica, coisa que eu nunca tinha ouvido falar. Eu dizia: “Tio, como é que ele arrumou tanto dinheiro? E que fim levou este dinheiro?”. Então meu tio conta que tudo aconteceu antes dele conhecer minha mãe, que houve um problema que envolveu uma fuga para o Mato Grosso, enfim, uma história que ele não conseguiu contar por inteiro durante o velório. Mas fiquei com aquilo na cabeça, fui perguntando para os outros tios e cada hora eles me respondiam uma coisa diferente. Tudo muito evasivo. Então eu quis fazer um filme para descobrir o que aconteceu com o meu pai, fiz o filme e descobri. Foi um processo libertador, porque minha família não sabia tudo o que o filme descobriu. Na verdade, não é que eles eram evasivos, mas o meu pai, por ser o irmão mais velho, não contou tudo para todo mundo. Então cada um sabia um pedaço da história, e foi maravilhoso para minha família ter feito este filme, ter colocado luz nestes fatos, trazido à tona essa verdade.

Também tem um fundo político ou é mais uma questão pessoal?
Tata – Questão pessoal mesmo. No fim, tem um fundo político, e tem a ver com o momento em que EUA entraram no Brasil no final dos anos 40 e começo dos 50. Truman, Dutra, tem a ver com tudo isso sim, mas de uma forma muito indireta. Para saber mais, só vendo o filme [risos].

E os novos projetos?
Tata – Finalizei a montagem de Trago Comigo, que é este longa-metragem baseado na série de mesmo nome, que realizei com a TV Cultura e Sesc TV. E agora tem o filme De Menor, que eu produzi, e é a estreia na direção da minha filha Caru Alves de sosa É a história de uma jovem advogada que sai da faculdade de Direito, interpretada por Rita Batata, que consegue um emprego na Defensoria Pública, defendendo menores infratores.

Matéria de Celso Sabadin originalmente publicada no Jornal da ABI – Associação Brasileira de Imprensa.