TIRADENTES 2014: “A VIZINHANÇA DO TIGRE” LANÇA OLHARES INÉDITOS SOBRE A PERIFERIA.

A Vizinhança do Tigre, de Affonso Uchôa. DOCUMENTÁRIO, COR, DIGITAL, 95MIN, 2014, MG

Quando A Vizinhança do Tigre inicia, revelando um mundo em que a pobreza e a vida de periferia incidem de modo agressivo e imperante sobre seus personagens, um certo receio de que estaremos diante de um trabalho à sub-Dumont em início de carreira (com seus personagens reais das periferias imigrantes francesas se reinterpretando), ou a parecer sub-Pedro Costa (que também trabalha por periferias imigrantes, mas, no caso, os caboverdianos em Portugal, só que numa chave de composição bem mais complexa, pois a rerepresentação se dá sem a firulação, sem a recriação – algo que confere ao diretor português um posto de raridade no cinema atual) toma a atenção e leva à desconfiança. O filme em seu primeiro trecho se vale demais de atitudes exacerbadas, como se impostas aos seus personagens para causar a sensação de reforço de como são entes despregados da sociedade, sem nenhuma atenção e que, portanto, a enxerga como inimiga máxima, indigna de suas admiração ou sequer de súplicas por mais atenção. Tais instantes iniciais, portanto, passam a impressão de serem chupados dos outros, para que o futuro do trabalho tenha muros mais sólidos onde se amparar.

Porém, o porvir revelará que há nesse filme daqui (definido na ficha como documentário, mas que poderia ser melhor classificado se o fosse por “híbrido”) vida própria, caminhos inéditos, modo de encarar as diversas situações semelhantes sim às dos dois diretores citados acima (pois é de vidas semelhantes que todos tratam), mas com muita personalidade própria emprestada pela direção rara de Uchôa. E isso se confirma com o andamento, por jamais deixar de lado pequenas questões, pequenos atos, em favor de “somente” grandes instantes, o que nos aproxima dos personagens/gente de modo muito mais cúmplice do que apiedado ou somente observador: de cima. Por trazer momentos intensos de interação entre duplas, normalmente, como se fosse uma aposta (certeira) na possibilidade de mais empatia e cooptação quando se pode notar com mais clareza cada modo de agir e ser quando o foco se atém sobre menos pessoas por vez.

Situação imaginada que acaba por permitir que todos os que entrarão em cena pelo decorrer terão seu tempo de explanação de reconhecimento, permitindo maior dissecação, o que levará a notar o quanto cada um pode ser um, particular (seres individuais, cada um com suas reações e trajetos). Ele não trata de uma massa isolada, de um grupo chutado para escanteio (somente): atenta a diversos de dentro dessa massa com grau de importância e atenção espalhando-se mais do simplesmente a um em especial. Se fez um filme onde observou pessoas com atenção por tanto tempo, seria injusto ter somente um eleito.

No caso, os seres que serão os perseguidos pelas lentes de Affonso Uchôa por quatro anos (entre 2009 e 2013) são daqueles imigrantes sociais, pois naturais de onde habitam mesmo, mas frutos de exclusão que os faz serem quase estrangeiros desamparados por uma instituição (o governo) que os nota como se fossem estrangeiros invasores e usurpadores do pouco que restaria para os outros. O diretor vai à periferia de Contagem (MG), no bairro Nacional, dando . atenção maior a Juninho, Menor, Neguinho, Adilson e Eldo. Mas não se esquece da mãe do mais velho – que será o mais atingido pelos impactos todos – que numa tocante cena reza e benze a água que dará para o filho beber pedindo Jesus e Maria o protejam . Cena tocante que parece quase um OVNI (quase, mas não a única) diante de sucessões incrivelmente boas, onde transparece o apego de alguns pela violência (na realidade não apego, mas a compreensão de que ela é natural em seu meio), ou o lado infantil na “caça” às frutas, ou ainda no nos momento de conversas em que uns fumam maconha de forma natural enquanto os mais novos parecem ainda só crianças em crescimento… A cena do skate dado significa que uns se preocupam com outros, mesmo parecendo impossível, mas como um tapa na nossa cara, que nunca nos preocuparemos pra valer; as de música bastante boas, sempre; o instante da tinta na cara e no cabelo extremamente hilário (e porque há infância e inocência teimando em resistir naquelas mentes); o da ida embora de um, o bilhete, sua imagem fora de lá, para um final já em 2013, com alguns andando de skate nas ruas (ligação linda do tempo que passou, do que presenteou porque se preocupava com o mais novo). Rara persistência essa a de Uchôa; rara sua sensibilidade; rara sua antevisão e mais rara sua obra.

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