TIRADENTES 2014: COM TERROR E HUMOR, “QUANDO EU ERA VIVO” ABRE A MOSTRA MINEIRA.

Quando vou iniciar um novo texto para falar de filme dirigido por Marco Dutra ou/e Juliana Rojas (desta vez ela está “somente” na ajuda a ele), sempre penso que seria justo colocar um hun-hun, como se estivesse limpando a garganta antes de iniciar alguma fala: pois sua carreira, sua opção por um braço do cinema que somente agora ganha amplidão de trabalhos no país (sendo que sempre teve na figura do José Mojica – Zé do Caixão – a única que segurava as pontas no que referia a filmes de terror/horror), no início me causava desconforto, extremo estranhamento, desconfiança sobre se a opção dele poderia estar entregando alguém que realmente cria no que fazia, ou se era(m) um(ns) que embarcava(m) num modismo estrangeiro de filmes que tentavam o terror com maneirismos estéticos (composições mais secas, de poucos elementos visuais de impacto por movimentações, mas pleno de detalhes e sutilezas) que o faziam de amplo reconhecimento e cooptação de plateias mais jovens e engajadas em diversos modos de contar sobre o que assusta.

Passaram-se os anos, a insistência da dupla em investir no gênero pelos curtas-metragens da vida foi imprimindo marca e reconhecimento de que havia ali mesmo opção até autoral. Mas quando fizeram o sucesso que é Trabalhar Cansa, deixaram uma ideias mais clara – principalmente para os que não os conheciam pelos curtas-metragens – de preocupação social como o que conduzia de forma mais importante a historia: havia ali no subtexto a questão da “luta de classes sociais”, e esse quesito da construção acabou sendo elevado ao de mais importância: sim, há mesmo essa questão tratada por outras camadas, mas elevá-la ao patamar de maior importância faz reconhecer um setor da crítica que acredita cinema muito mais pelas suas histórias, numa compreensão da arte muito mais fundada no tema e no assunto do que na arte por suas especificidades estéticas, por seus arranjos técnicos, e no caso deles, por sua opção por um gênero que independeria obrigatoriamente de outras questões.

E então surge esse Quando Eu Era Vivo, só do Marco, que fará as questões sendo tentadas ao extremo para além do gênero, trazendo a questão da ancestral figura do pai (se generalize aí e se a estenda por outros tempos e plagas – será válido), da cobrança de um filho que retorna derrotado ao lar da criação: mas é bem mais perfurador e invasivo olhar do diretor para um texto retirado de obra literária de Lourenço Mutarelli (“A Arte de Produzir Efeito Sem Causa”). É olhar que retira o ser humano do plano comum para buscar na obsessão motivação de um novo momento: ou loucura. E para tal, a aposta é no susto, na tensão que cresce e que impregna as camadas mais bem-vindas e próximas de medos: e o diretor novamente revela como sabe trabalhar esse gênero que tanto lhe apetece, transitando por vias em que nunca nada é aberto e claro (não poderia jamais ser claro um mundo que trata de obscurantismo, debilidades mentais, recordações que criaram caminhos de dúvidas e pavor), em que as situações derivarão de um aparente início estranho mas comum, para sequências em que é tudo estranho e nada comum. Há novamente no filme o reforço de uma opção, que abrange terror, mas com muito tom cômico costurando as situações: e é nessa interessante mescla que o que poderia ser “somente” gêneros escapa para um modo muito típico dele: como se ele acreditasse piamente na força do que o medo proporciona, mas olhando tudo com olhar de esgueira, debochando um tanto de tudo que poderia somente apavorar, para situar num local em que a compreensão de que é de arte e mentira a coisa toda.

Ele aposta muito nas atuações como algo que sustentará fortemente um bom quinhão de seu filme (algo que já se notava nos curtas dele com Juliana, e no longa Trabalhar Cansa), justapondo-as em importância com os sempre bem executados aspectos técnicos (se bem que atuação também seja de composição técnica…), mas indo muito mais a fundo no cuidado com elas do que é comum ou até necessário para que bons filmes existam: principalmente quando é no universo curtista, ou no gênero terror/horror. E talvez a opção pela forte atenção aos que atuam, aos que protagonizam, seja oriunda da origem dele, que é “cria” da “Companhia do Latão”, grupo teatral de importância em São Paulo, que acabou revelando diversos nomes para o cinema da cidade (só lembrando por quem optou por dirigir cinema: Caetano Gotardo, a Juliana Rojas, por exemplo), e que fez perceber como é possível ser de teatro e mesmo assim fazer filmes, respeitando cada um em seu canto. Sendo que em se pensando em teatro, quando se pensa num fio mais forte de sustentação se pensa no ator, fica talvez fácil entender porque em seus trabalhos de tela há tanto capricho nas composições: e aqui, um Marat Descartes justo, compacto e complexo; Antônio Fagundes, sempre fácil pela experiência, ganhando um papel bastante avesso ao seu histórico de galã; uma aparição ligeira e literalmente contundente de Tuna Dwek; o risco bem tentado na utilização de Sandy Leah (sim, a mesma da dupla Sandy e Júnior); para o máximo do máximo, que está na não tão extensa presença em tela de Gilda Nomacce (nome certo nos trabalhos dele: uma aposta certa, de segurança, parece, em quem confia de onde poderá obter situações non-sense que raros conseguem com tanta facilidade), mas que faz de seus instantes a mescla dos de mais comicidade com os mais densos – por olhares, por gestos, pela impostação vocal (misto entre curiosa, indecisa, e certa do que pensa fazer)…

Marco novamente demonstra que entende de cinema, que cinema é uma arte única, que consegue grandes atuações, e que jamais poderia prescindir dos aspectos técnicos da construção. Num filme de edição ajustada, sem excessos – mesmo quando são chegados os instantes de alguns sustos com mais de potência imagética e sonora, há comedimento -, a opção por fotografia pelas mãos de Ivo Lopes Araújo foi de acerto máximo. Ivo é um de nossos craques no assunto, e tudo fica muito mais interessante quando o diretor o retira de uma certa zona de conforto (normalmente fotografa filmes de galera muito próxima dele, quase sempre pelo nordeste, em filmes que parecem muito ação entre amigos, o que lhe possibilitam ser muito mais dono de seu pedaço, inquestionável, na sua função), para fotografar em São Paulo, de nuances pictóricas, de luzes muito diversas, muito mais cheia de bloqueios e iluminação da noite, para depois intrometê-lo dentro de ambiente fechado, onde a claridade extrema do início vai sendo tomada pela escuridão, por contrastes, por sombras que avolumam para adensar as sensações interiores que têm de ser compreendidas: e fica fácil notar o desconforto do pai (Antônio Fagundes), sendo retirado de um mundo onde tudo tem de ser claro, artificial e limpo (ele tem o que esconder, tem os medos dos quais quer fugir), como na cena em que reclama da troca da lâmpada da cozinha; e se torna óbvio por medidas de lentes e iluminação a transformação sutil e em crescente do ambiente, para uma derivação que encaminhará o olhar do espectador e as sensações da garota que aluga um quarto (Sandy Leah) para o que pode sinceramente representar as trevas, os medos interiores sendo arrancados de profundezas intocadas – e isso se dá de forma notável, já bem próximo do final, na sequência das velas, por exemplo. Há, pelo que se nota, a compreensão de Marco da importância máxima do é mostrado ao olhar, e ele faz isso, ainda mais, consciente de que os medos que quererá repassar estarão mais fortes nessas variações do que nos sustos dos impactos.

Já citado acima, os momentos de humor são imprescindíveis: não dá para imaginar todo o sequenciamento sem esses escapes. Não citada ainda, a música: que é parte constante da vida de Marco Dutra (e de que Caetano Gotardo, que divide com ele diversas das letras cantadas) sempre se faz presente em suas obras. Aqui, tem papel fundamental aliás, e faz óbvio o prazer que ele tem por dedilhar seu piano e compor o que lhe interessa. O momento em que Marat e Sandy cantam (pelo todo, pela montagem cênica e tal, também) é antológico.

P.S.: e o obscurantismo das situações, respingando no do que é escrito no papel: ou não…

P.S.2: além do instante do sonho, com a mãe, com o irmão, que se dão filmados em VHS (coisa com que o diretor vem mexendo), nos 80, e que se dão principalmente numa cozinha de iluminação branca e nebulosa. Algo que remete a sonhos espalhados pela humanidade, com forte apelo psicológico embutido. Coisa que ocorre comigo mesmo, e que só fui notar ser de aspecto mais do que só particular quando a cozinha sombria toma seu lugar em Mulholland Drive (2001), do David Lynch. Momentos que incomodam na “boca do estômago”: sabe-se agora que, na realidade, faz parte de um algum local isolado das não lembranças.

P.S.3: mãos geladas, sim, sim…

Quando Eu Era Vivo, de Marco Dutra. FICÇÃO, COR, DIGITAL, 109MIN, 2014, SP.
Texto publicado sob licença de Cinequanon.art.br