TIRADENTES 2014: PERDA E NECESSIDADE DE AMPARO SÃO O TEMA DE “AMADOR”

Como se fosse o liquido do ventre da mãe que gesta, acolhedor e protetor, para onde homens voltariam sem titubear se lhes fosse permitida a possibilidade – principalmente nas crises que envolvem seres consanguíneos (irmãos, pais), ou nas nascidas de relacionamento amoroso desfeito (e aí notar que em alguma esfera a mulher amada sempre terá um pouco da mãe deixada, e que o rompimento pode levar à necessidade desse retorno ao colo, um passo) -, o mar que ruge como uma leoa inicia e encerra Amador, onde Cristiano Burlan se oferece em alter-ego escancarado para falar de perda da mulher amada. Como em Mataram Meu Irmão – portanto, irmão num, e a figura da mulher, noutro – o mar está presente de forma intensa, nos momentos mais próximos dos maiores questionamentos, as maiores angústias. Mar representação do líquido que poderia reacolher, reproteger… Mesmo que ao pé da letra o litoral tenha sido sua morada.

Se Cristiano acerta em cheio quando relata subliminarmente sobre essa perda e a necessidade de amparo que não terá mais – e daí, tornar-se adulto é reivindicação incontornável -, ao contrário do que obteve com Mataram Meu Irmão (muito mais direto, sem jogos de adivinhação ou metáforas exacerbadas) derrapa em alguns quesitos de construção que foram essencialmente bem resolvidos naquele, e por muitas vezes mais débeis nesse. Ao optar por traçar uma linha narrativa quase investigativa em Mataram…, os espaços para os espasmos de sentimentos reprimidos e feridos foram surgindo, como por fendas entre uma estrada de narrativa sólida, permitindo com que com que os instantes de emoção em tela não estivessem por ali com a obrigação de serem eles os que conduzem – eram coias saídas das fendas afinal de contas. Em Amador, o diretor constrói a narrativa toda em função da exacerbação da perda da amada (e, de quebra, colocando na pista a função do cineasta que se entende num momento em que tudo é mais difícil para a continuação do ofício).

Esse filme atual, mesmo com muita qualidade na sua construção, mesmo com belíssimas opções estéticas (imagens em sépia, as em Super 8…), parece ter se valido de todo o sofrimento para pavimentar a estrada pela qual circula – ao contrário do outro, que somente permitia escapadas desses sofrimentos –, o que acaba pesando no trajeto, freando. O andamento se vê muito mais comprometido, pois havendo a necessidade da ostentação das intimidades, o que era dinamismo no outro se torna por diversas vezes peso que lentifica as explanações. Pensá-lo Fellini o prejudica, pois se há forte carga dramática nas opção dos textos de filósofos e autores essenciais – vão bem quase todas as intromissões desses instantes literários nas bocas das mulheres que se tornam o alvo do cineasta maduro em busca de uma substituta para o amor perdido -, falta uma certa leveza que aquele tinha, mesmo com drama e literatura se fazendo tão presentes quanto. Por muito tempo, a atenção do espectador sofrerá por indecisão de para onde deverá fixar mais fortemente a atenção: e isso se dá pelas opções de caráter metafórico, que acabam por entrar em choque com a “necessidade” de contar as verdades que levaram à confecção do filme – como se fosse conflito de interesses diante do cliente.

E tudo poderia ser melhor – repito que não é ruim, mas bem menos completo como obra com poder de cooptação – se houvesse mais valorização das várias situações imaginadas (a ideia do teste de atrizes é boa, a fala com cada uma das principais, mais próximo do final, também) com movimentos mais “diretos”, menos rebuscados. Por diversas vezes, na tentativa de retirar de cima da história o jeito de “baseado em fatos reais”, o filme espana, gira em falso, em torno de eixo fragilizado. Há, então, um trabalho que suscitará discussões, positivas e negativas: não algo anódino.

Cristiano é um sujeito calado, com jeito de quem sofreu muito na vida – já citei isso em outras ocasiões -, e se algumas vidas valem um filme, a dele parece estar rendendo uma verdadeira carreira. Há autoralismo na sua sequência de cineasta – que progride em qualidade e conhecimento (e dá para continuar pensando assim, mesmo tendo nesse um trabalho de resultado inferior ao anterior, mas que é assim até por conta das ousadias mais extremadas tentadas) de modo ostensivo e evidente -, e pensar num ser humano tomando seus dramas particulares para cutucá-los e remexê-los constantemente, em favor de praticar a arte/ofício pela qual optou, é no mínimo espantoso e admirável. Um autor que usa seu sangue e suas lágrimas para lubrificar seus equipamentos.

Amador, de Cristiano Burlan. FICÇÃO, PRETO & BRANCO, DIGITAL, 95MIN, 2013,SP

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