VERSÁTIL LANÇA CAIXA REFERÊNCIA SOBRE CINEMA NOIR.

por Celso Sabadin

Escuridão, espionagem, detetives atormentados e inesquecíveis mulheres fatais explodem nas telas em belíssimo preto e branco, a partir da Segunda Guerra.  Nem os americanos sabiam que estavam revolucionando a sétima arte e criando uma nova maneira de filmar.

FILME NOIR: O CINEMA DAS SOMBRAS.

Estados Unidos, anos 40. Conscientemente ou não, os filmes lá produzidos começam a passar por grandes transformações estéticas e temáticas. Contrariamente ao maniqueísmo de décadas anteriores, onde não podia haver dúvidas entre quem eram os “mocinhos” e quem eram os “bandidos”, os filmes norte-americanos começavam naquele instante a apresentar protagonistas falíveis,  hesitantes, alguns até de caráter duvidoso. Humanos, enfim. As mulheres, então, se despiam de qualquer confiabilidade, e poderiam se mostrar fatalmente traiçoeiras num piscar de olhos ou num mostrar de meias. E os grandes vilões, quem sabe, talvez não fossem tão malvados assim, no final das contas. Ou no final do filme.

As novelas policiais recheadas de detetives mal ajambrados entocados em escritórios empoeirados passam a ser a grande fonte de inspiração para este cinema.

Em tempos de Guerra e espionagem, onde a realidade já não é tão óbvia, as dúvidas ganham corpo, a desconfiança paira sobre todos, o cinema amadurece e se reinventa deixando para trás a simplicidade da velha luta entre o Bem e o Mal.

Visualmente a mudança também é claramente perceptível. Ou escuramente perceptível: sem grandes verbas para produzir durante a Guerra, quando o dinheiro era investido prioritariamente na indústria bélica, economizar passa a ser a palavra de ordem do cinema americano daquele período. É preciso fazer filmes com menos cenários, filmando menos cenas, e até usando menos luz.

A carência da construção de grandes ambientações é substituída por marcantes jogos de luzes. A simples sombra de uma persiana projetada sobre o rosto do protagonista passa a ser suficiente para criar o necessário clima sombrio que envolverá os personagens.

Os contornos retorcidos de uma antiga escadaria podem servir de gabarito para um efeito visual impactante e econômico, usando apenas focos de luzes e sombras estendidas. Fumaça, muita fumaça na contra luz de incontáveis personagens fumando em cena ajudam na criação de um misterioso clima de charme e de suspense fatal.

Para filmar um número menor de cenas e economizar na produção, a narração em off, onde o protagonista “fala sozinho” e explica o que está acontecendo sem grandes problemas dramatúrgicos, passa a ser um dos maiores aliados dos roteiristas obrigados a criar de forma rápida e barata.

Enquanto tudo isso acontecia na América, do outro lado do Atlântico, a sempre atenta crítica cinematográfica francesa assistia a tudo, extasiada. Havia a percepção de um cinema americano mais denso, mais tenso, mais interessante, mais sintonizado com um mundo que sofria o terror da Guerra. Mais real.

O crítico Nino Frank, nascido na Itália mas atuando na França, publica na revista “L´Écran Français” um artigo chamado “Um Nouveau Genre Policier: L´Aventure Criminelle”, onde analisa esta nova tendência americana de produzir filmes densos e escuros, tanto formal como tematicamente. E os chama de filmes negros. Em francês “film noir”.

Seis destes filmes, divididos em 3 Dvds, são lançados agora pela Versátil em caixa especial. Com extras, trailers de época, entrevistas e um simpático conjunto de postais reproduzindo em tamanho menor os pôsteres originais dos filmes.

Mas certamente o maior atrativo para o cinéfilo é a incrível qualidade das cópias digitais, todas feitas a partir de originais restaurados, que fazem explodir na tela o fantástico preto e branco que os diretores de fotografia daquela época conseguiam obter. Talvez com qualidade até superior à obtida nos próprios dias de estreia destes mesmos filmes nos cinemas.

 

 Confira os seis títulos da caixa:

 

Entre Dois Fogos (Raw Deal, 1948)

 

Belo exemplo de “noir psicológico” onde a trama enfoca não apenas questões policiais, como principalmente a ilusão e a ingenuidade de uma mulher, Pat (Claire Trevor), que se apaixona perdidamente pelo criminoso Joe (Dennis O´Keefe), a ponto de participar ativamente de um plano de fuga para ele.

 

O bom roteiro abre espaço para dois intrigantes desdobramentos fundamentais dentro da história: a paixão que Joe nutre por Ann (Marsha Hunt), sua própria advogada de defesa, e o suspense causado pela informação (habilmente revelada ao público, mas não aos protagonistas), que o plano de fuga de Joe na verdade é uma armadilha preparada pelo seu comparsa Spider (Curt Conway).

 

Na melhor tradição do cinema noir, “Entre Dois Fogos” apresenta fascinantes personagens multifacetados, longe do maniqueísmo do Bem contra o Mal. É riquíssima a relação de amor entre Joe (de quem sabemos apenas que foi um heroico garoto que acabou corrompido pela pobreza) e Ann, que apesar de também vir de origem humilde, conseguiu se formar em Direito e seguir carreira. A cena onde Ann tem seu coração partido ao perceber nos olhos de Joe que ele jamais deixará de ser um assassino é um primor de dramaturgia.

A dura e cruel exposição de não apenas um, mas de dois intensos amores impossíveis é um dos pontos altos do filme.

 

A direção é de Anthony Mann, que mais tarde dirigiria  clássicos como “Música e Lágrimas” e “El Cid”.

 

Curiosidade: até o fechamento deste texto (setembro de 2014), a atriz Marsha Hunt permanecia viva, prestes a completar  97 anos de idade. Ela permaneceu em atividade até 2008.

 

Passos na Noite (Where the Stepwalk  Ends, 1950)

 

Novamente aqui a figura do herói humano, com falhas e defeitos, atormentado por culpas e fantasmas do passado, como bem convém ao estilo noir de fazer cinema. Ele é Dixon (Dana Andrews), um detetive que logo nos primeiros momentos do filme leva uma enorme bronca de seu superior por causa de seus métodos violentos de arrancar confissões dos suspeitos. Não demora muito para o pior acontecer: ao surrar uma testemunha, Dixon acaba matando-a, o que o coloca no inferno de ser assassino e policial dentro da mesma investigação.  A metáfora do homem dividido raramente foi tão explícita.

Afundando ainda mais em seus dilemas, Dixon se apaixona pela bela Morgan (Gene Tierney), viúva do homem que matou.

 

Depois do clássico do noir “Laura”, de 1944, “Passos na Noite” marca a terceira parceria entre Dana Andrews e o

grande diretor e produtor áustro-húngaro Otto Preminger, que trabalharam juntos ainda em “Anjo ou Demônio?” (1945) e “Êxtase do Amor” (46). Preminger também dirigiu Gene Tierney no papel título de “Laura”.

 

Além do envolvente roteiro assinado por Ben Hecht (dos clássicos “Interlúdio” e “Adeus às Armas”), “Passos na Noite” contra com belíssimos planos e movimentos de câmera comandados por Preminger e seu diretor de fotografia Joseph LaShelle (o mesmo de “Se Meu Apartamento Falasse”). Com destaque para o plano de chegada de um carro dentro do elevador de um estacionamento, onde a câmera permanecerá fixa enquanto o elevador transporta o veículo até o andar desejado, causando um efeito de bastante impacto.

Os contrastes de preto e branco também são deslumbrantes.

 

“Passos na Noite” foi baseado no livro de William Stuart, que mais tarde escreveria vários episódios de seriados consagrados, como Bonanza, Perry Mason, Terra de Gigantes, entre outros.

 

Fuga ao Passado (Out of the Past, 1947)

 

Dois monstros da Era de Ouro de Hollywood juntos num mesmo filme: Robert Mitchum e Kirk Douglas. Mitchum vive um ex-detetive que cometeu o maior dos erros: se apaixonar pela mulher do cliente. Clássico.  Fugindo da encrenca na qual se meteu, ele assume uma nova identidade e se muda para o interior, onde pretende levar uma vida pacata como proprietário de um posto de gasolina. Pretendia: claro que ele é descoberto. Mas isso é apenas o início do filme.

 

“Fuga ao Passado” desenvolve uma série de intrigas e contra-intrigas, de traições e reviravoltas, que por vezes são até difíceis de acompanhar. O filme não esconde sua origem literária, o que não seria exatamente um problema não fosse Geoffrey Holmes, o roteirista, também o próprio autor do livro “Build My Gallows High”que o originou: nota-se em Holmes (na verdade, nome artístico de Daniel Mainwaring) um apego excessivo à verbalização e um interesse menor pela linguagem cinematográfica.  Mas existe uma compensação: “Fuga ao Passado” é totalmente permeado por diálogos deliciosos, rápidos, espirituosos e inteligentes. Como por exemplo:

 

“- Você devia ter me matado, pelo que eu te fiz.

– Ainda há tempo”.

Ou

“- Eu não quero morrer.

– Eu também não, mas se eu tiver que morrer, que eu seja o último”.

 

Além de vários outros que só funcionam em inglês.

De qualquer maneira, grandes elementos clássicos do noir estão lá: o herói de personalidade dividida, a mulher fatal, a paixão incontrolável e perigosa, a narração em off.

Uma curiosidade: em seus 97 minutos de exibição, há nada menos que 22 cenas mostrando alguém acendendo um cigarro. Fora os que já apare4cem acesos em cena.

 

A direção é de Jacques Tourneur (de “Sangue da Pantera”), nascido em Paris, mas radicado nos EUA desde criança.

 

A Morte Num Beijo (Kiss me Deadly, 1955)

 

Certamente o filme mais fraco da caixa, “A Morte num Beijo” seria algo como um “noir tardio”, realizado já 10 anos após o término da Guerra, e com roteiro e estilo de filmagem mais próximos dos filmes B de ficção científica, tão em moda naquela década.

 

Num início impactante, vemos uma mulher descalça correndo desesperadamente por uma estrada escura.

Ela é Christina, papel de estreia de Cloris Leachman na tela grande, atriz com mais de 250 créditos entre cinema e televisão, que continua na ativa até hoje, com quase 90 anos de idade.  Ela consegue uma carona com Mike Hammer (Ralph Meeker), que de certa forma se compadece do estado da mulher. Ou se interessa por ela, não fica claro. E é bom que não fique. De repente, um acidente. O carro de Mike é jogado ribanceira abaixo e ele mergulha não só no precipício, mas também no intrigante segredo desta mulher, que foge não se sabe de quem, nem por que.

 

Mike inicia assim uma investigação (sim, coincidentemente ele é um detetive) que percorre vários tipos inusitados seguindo pistas nem sempre muito claras, com um desenrolar de roteiro nem sempre muito convincente.  Porém, uma investigação por si só, empreendida por um detetive de caráter duvidoso, e com duas ou três mulheres fatais pelo caminho não faz necessariamente um bom filme noir. Não raramente “A Morte num Beijo” se esvazia em seu interesse, quer pelo grande número de personagens/investigados nem sempre atrativos, quer por algumas cenas que, ao buscar apenas algum tipo de impacto estético, acabam caindo num vazio dramatúrgico insosso.

Há também problemas de direção e credibilidade de algumas situações que, somadas, acabam sendo meramente dispersivas.  O final, diga-se, também se mostra decepcionante.

 

A história é baseada num dos mais de 50 livros de Mickey Spillani, considerado um dos reis dos romances policiais estilo “pulp”. Além das aventuras vividas no cinema, seu famoso personagem, o detetive Mike Hammer, protagonizou também três seriados de televisão, sendo 78 episódios entre 1958 e 59, outros 44 episódios entre 1984 e 87, e finalmente 26 episódios entre 97 e 98.

 

Destaque curioso para a secretária eletrônica do protagonista, novidade da época, quase do tamanho de um aparelho de ar condicionado.

 

O diretor Robert Aldrich, que mais tarde faria clássicos como “O que Aconteceu com Baby Jane” e “Os Doze Condenados”, não estava nos seus melhores momentos.

 

O Cúmplice das Sombras (The Prowler, 1951)

 

Uma mulher chama a polícia para verificar a presença de um intruso que olha pela sua janela. Dois policiais vão investigar o caso, que rapidamente se mostra apenas uma banalidade de rotina, como tantas outras no cotidiano da polícia. Mas o estrago está feito: os rápidos olhares trocados entre a rica e solitária Susan (Evelyn Keyes) e o pobre e amargurado policial Webb (Van Heflin) logo se transformarão num tórrido romance proibido, com trágicas consequências.

 

Até mais cruel que o drama retratado na história, “O Cúmplice das Sombras” expõe também um drama ainda maior, acontecido fora da tela. O filme é um dos vários produzidos durante o terror do Macartismo, a famosa “Caça às Bruxas” empreendida pelo Senador McCarthy, onde vários talentos criativos eram impedidos de trabalhar apenas pelo fato de serem simpatizantes  (a simples suspeita já bastava) com a ideologia comunista.  Assim, embora não apareça nos créditos, um dos roteiristas de “O Cúmplice das Sombras” é o premiado escritor Dalton Trumbo, e um dos produtores é ninguém menos que John Huston, na época, casado com a atriz principal.

Chama a atenção também o nome do produtor que aparece na tela: um curioso S.P. Eagle, na verdade um provocativo pseudônimo de Sam Spiegel.

 

A direção é de Jospeh Losey, que mais tarde faria grandes filmes como “O Criado” e “O Mensageiro”, entre outros. Foi inclusive durante as filmagens de “O Cúmplice das Sombras“ que Losey foi convocado para depor no chamado Comitê de Atividades Anti-Americanas, comandado por McCarthy. Como “depor”, naquele momento, significava “delatar” os próprios colegas, Losey prefere então se exilar na Inglaterra, onde desenvolveu uma brilhante carreira.

 

Ironicamente, a voz do marido da personagem Susan, em seu programa diário de rádio, é do próprio Trumbo. E o personagem, assim como todos os que eram acusados de comunistas naquela época, também só aparece nas sombras.

 

O Anjo do Mal (Pickup on South Street, 1953)

 

A cena inicial é um show de cinema. Olhares se entrelaçam dentro de um vagão lotado no metrô de Nova York. Há uma bela mulher, um homem jovem, um outro mais velho, e um terceiro homem que se aproxima insinuantemente da moça. Ela parece gostar. Os outros dois só acompanham. Nenhuma palavra é dita. Gestos silenciosos, semblantes enigmáticos e um clima de mistério e sensualidade introduzem estes quatro personagens que permearão toda a trama que ainda está por se desenvolver.

Uma carteira é roubada. Talvez apenas uma entre as milhares de carteiras roubadas diariamente dos incautos passageiros do metrô novaiorquino. Mas não esta. O que a bela, jovem e incauta mulher acaba de perder para o insinuante rapaz, diante dos olhos de dois outros homens misteriosos, pode mudar o equilíbrio do mundo. Se é que o mundo é equilibrado.

 

Inicia-se assim a envolvente história escrita por Dwight Taylor (autor também de vários musicais com Fred Astaire), e roteirizada e dirigida pelo grande Samuel Fuller, de “Agonia e Glória”.

“O Anjo do Mal” oferece uma extensa e variada galeria de tipos inesquecíveis, “onde todos são protagonistas”, como informa o próprio Fuller num dos extras do DVD. Há policiais e ladrões, mas não há mocinhos, nem bandidos. O público pode ser apaixonar tanto por um egoísta batedor de carteiras, como por uma inescrupulosa delatora que entrega seus próprios colegas à polícia. E torce por eles. Na Nova York dos anos 50, cada um tem seus próprios caminhos na busca pela sobrevivência, sejam eles lícitos ou não.

 

Na realidade, como estamos na época do Marcartismo, o que o filme propõe é uma espécie de polarização entre “americanos” e não-americanos”, onde os legítimos sobrinhos de Tio Sam, estejam eles dentro ou fora da lei, sejam eles ladrões, delatores ou prostitutas, merecem sempre a nossa simpatia, a segunda chance e a redenção. Enquanto os não-americanos (os comunistas, claro) são, estes sim, bandidos da pior espécie, assassinos frios e traidores que só merecem a morte.

 

Como se percebe, nem sempre o Cinema Noir é tão anti-maniqueísta do que se supõe.