ITALIANO “A ODISSEIA DE ENÉIAS” RECOMPENSA QUEM EMBARCAR.
Por Celso Sabadin.
Acho que somos todos viciados em sinopses. Sempre queremos saber “o que acontece no filme”. João e Maria se conhecem e se apaixonam em Minneapolis, mas João terá de viajar até o Polo Norte, onde uma nova aventura o espera? Pedro e Antônio são dois antigos colegas de infância, mas a maldade de Jennifer se interporá entre ambos? Na Segunda Guerra Mundial Eliška e Jan se encontram num grupo de resistência tcheca contra os nazistas, unidos por um cruel segredo do passado?
Acredito que fomos condicionados, no passar do tempo, a procurar aquelas quatro ou cinco linhas que resumem a tal “historinha do filme”. Uma espécie de “manual de instruções” para eu saber se vou ou não assisti-lo.
Porém, o cinema é tão maior que isso!
Vejamos, por exemplo, o caso de “A Odisseia de Enéias”, que já está em cartaz em nossos cinemas. Se eu falar que o filme é sobre dois jovens ricos – Enea, proprietário de um restaurante, e seu grande amigo Valentino, que acaba de tirar brevê de piloto – que se envolvem num esquema de tráfico de drogas, fugindo do vazio de uma existência sem desafios, eu não estaria mentindo.
Mas o filme é tão mais que isso!
O roteirista, diretor e ator principal Pietro Castellitto desenvolve aqui um estilo fílmico dos mais atraentes, na medida em que durante todo o tempo de sua trama vai propondo pequenos desafios ao público em cada fala, em cada enquadramento, em cada movimentação de câmera. Todo início de cena se assemelha a um pequeno mistério que exige total atenção da plateia, tirando-a daquela modorrenta zona de conforto dos produtos audiovisuais comerciais predominantes do mercado.
Isso sem citar que o roteiro traz algumas ótimas falas que dá vontade de anotar durante o filme. Como eu não anotei, agora eu só lembro desta: “´Mamãe é a primeira palavra que a gente aprende a dizer, e que de repente a gente não pode mais usar”.
Castellitto pode, por exemplo, desenvolver todo um diálogo sem sequer mostrar um dos interlocutores, simplesmente porque este personagem não terá um desenvolvimento futuro na história. Ou, por outro lado, apresentar já pela metade do filme uma nova personagem fixando insistentemente seu rosto na tela, simplesmente porque a partir daquele tempo ela se tornará determinante na dramaturgia. Ou seja, a câmera de Castellitto fala. E alto. Caberá ao público saber ouvi-la, o que nem sempre é muito fluido e fácil.
Ao retratar o vazio desta juventude romana que passa pela vida entre festas e ausência de rumos, misturando o cotidiano com o onírico, “A Odisseia de Enéias” acaba trazendo para a contemporaneidade algo do clássico “A Doce Vida”, de Fellini. Guardadas as devidas proporções, claro.
Filho do também ator e diretor Sergio Castellitto (que também está no filme, interpretando o pai do protagonista), Pietro já atuou em mais de 10 longas. Como diretor, “A Odisseia de Eneias” é o seu segundo trabalho, após sua estreia em “Duas Famílias”, de 2020.
“A Odisseia de Enéias” foi selecionado para a mostra competitiva principal do Festival de Veneza, mas não ganhou nada. Talvez o júri estivesse mais ligado nas sinopses.