O QUE “O PERDÃO” TEM A VER COM “MARTE UM”?

Por Celso Sabadin.

Assistindo ao filme “O Perdão”, em cartaz nos cinemas brasileiros, me veio à cabeça o nosso admirado “Marte Um”. Não pelo trabalho cinematográfico propriamente dito, mas por questões políticas e sociais.

Explico: um dos principais elogios que se faz a “Marte Um” – e com total razão – é o fato dele enfocar uma família preta completamente fora daquelas estigmatizadas caixinhas excludentes com as quais – quase sempre – o negro é tratado pelo audiovisual brasileiro: favela, tráfico de drogas, gravidez precoce, criminalidade, abandono, caos social. “Marte Um” é o negro retratado com afeto e sensibilidade por um diretor negro e uma produtora – a Filmes de Plástico – igualmente sintonizada com as questões negras. É o negro milhões de anos-luz distante daquilo que o cineasta branco especializado em filmes publicitários pensa dele.

“O Perdão” não tem negros. Tem iranianos. E, com eles, todas as caixinhas excludentes estigmatizadas de sua cultura, incluindo extremo machismo, injustiças jurídicas e fé religiosa cega. Que fique bem claro: não estou dizendo que machismo, injustiça e fé cega não existem no Irã, país que – infelizmente – não conheço pessoalmente (tampouco conheço pessoalmente nenhum iraniano).

Mas, pergunto: por que praticamente todos os filmes que abordam culturas e religiões não ocidentais fazem a mais absoluta questão de enfocar estes – e somente estes – temas? Sim, claro, óbvio, é preciso denunciá-los, como também é preciso denunciar o tráfico de drogas, a gravidez precoce, a criminalidade, o abandono e o caos das nossas comunidades brasileiras socialmente menos favorecidas. Mas por que esta insistência quase doentia neste viés de demonização das culturas e religiões orientais?

Na minha forma de ver, trata-se de um colonialismo cinematográfico, através do qual as hegemônicas potências europeias do cinema (principalmente a França, quase sempre acompanhada da Bélgica, e eventualmente da Alemanha e outras) realizam coproduções com os países onde o filme será rodado (criando assim uma falsa “validação” do oriente) para martelar seus eternos e cínicos conceitos de superioridade cultural.

Para não ser questionada em relação ao tão propalado “lugar de fala”, a coprodução contrata roteiristas e/ou diretores e diretoras de origem oriental (mesmo que radicados na Europa) para reforçar a ilusão de “validação” cultural. As decisões mais importantes, óbvio, ficam a cargo da empresa produtora sediada no Velho Mundo.

Exemplos? “Al Shafaq – Quando o Céu se Divide”, “Papicha”, “Clash”, “Degradé”, “Meu Querido Filho”, “Adeus à Noite”, “O Jovem Ahmed”, “Terminal Sul”, “Les Bienheureux”, “Black”, “Na Linha de Frente”, “A Bela e os Cães”…

Para piorar a situação, este tipo de colonialismo cinematográfico é dos mais hábeis e competentes em (re) produzir aquela estética com “cara de festival”, mimetizando trejeitos e maneirismos típicos de vencedores de prêmios, como planos longos, silêncios reflexivos, cenários de desolação, finais em aberto, uma ou outra criança fofa, cachorros, etc, etc. Troféus em eventos internacionais potencializam a tal validação.

No caso de “O Perdão” (que, cinematograficamente falando, é um belo filme, mas esta já é outra história), chama a atenção não só a coprodução com a França, como principalmente o financiamento de um tal Evangelisches Zentrum für Entwicklungsbezogene Filmarbeit, um fundo evangélico alemão para o desenvolvimento do cinema. Preocupante.

Falta um pouco de “Marte Um” aos filmes iranianos, árabes, tunisianos, egípcios, líbios, sírios, libaneses, etc. Pelos menos aos que chegam no Brasil, pois os esquemas mundiais de distribuição também são viciados. Tais cinematografias jamais serão representativas enquanto se renderem às nocivas coproduções europeias e ajudarem – talvez até inadvertidamente – a espalhar pelo planeta a mensagem hegemônica branca.

Que os árabes, islâmicos, hindus, budistas, xintoístas, todas as religiões de matrizes africanas, etc, etc, etc façam igual a “Marte Um”: criem mecanismos próprios para suas próprias representações.

Aí, sim, teremos um pouco mais de verdade e diversidade nas nossas telas de cinema.

Ah, e um último toque para os legendadores ocidentais: a melhor tradução pra “Allah” não seria “Deus”. É Alá mesmo.

 

 

 

 

 

a tramareaàrespNão façoé exatamente uma crítica cinematográfica, mas uma reflexão políticao filme “O Perdão”

 

A vida de Mina é virada do avesso quando descobre que o marido Babak estava inocente do crime pelo qual foi executado. As autoridades pedem desculpa pelo erro e oferecem a hipótese de compensação financeira. Mina inicia uma batalha silenciosa contra um sistema cínico por ela e pela sua filha. Um olhar magistral sobre a vida de uma mulher iraniana.

 

 

Discute a vingança, a pena de morte, a situação da mulher…

Mas tem essa porr de coprodução com a Frnça que adora essas coisas…

 

Título Original: Ballad of a White Cow

 

Direção: Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha

Duração: 105 min

 

Ano de lançamento: 2020

 

País: Irã, França

 

Gênero: Drama

 

COR

 

Roteiro: Mehrdad Kouroshniya, Maryam Moghadam, Behtash Sanaeeha

 

Fotografia: Amin Jafari

 

Montagem: Ata Mehrad, Behtash Sanaeeha

 

Produtor: Etienne de Ricaud, Gholamreza Moosav

Classificação Indicativa: 14 anos

 

Elenco: Maryam Moghadam, Alireza Sani Far, Pouria Rahimi Sam

 

Curiosidades sobre o filme:

 

 

 

Os personagens principais de “O Perdão” são inspirados por pessoas que Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha realmente conheciam (e especificamente a verdadeira Mina, que é a mãe de Maryam). A diretora explica: “Na verdade, a história não é apenas a de minha mãe, mas também a de meu pai, que também foi executado, por motivos políticos e na ausência de julgamento”.

 

 

 

Existem duas etapas para obter permissão para fazer um filme no Irã. A primeira vem antes das filmagens e é a “autorização de filmagem”. Nessa etapa, uma comissão lê o roteiro e, se todos concordarem, após a opinião dos censores, é concedida a permissão para filmar.

 

 

 

Maryam Moghadam e Behtash Sanaeeha (atores do filme) são um casal na vida real e nunca trabalharam separados. “Todas as decisões tomadas antes das filmagens são tomadas em conjunto, o que cria uma profunda confiança entre nós. Durante as filmagens, quando eu estava na frente da câmera e Behtash atrás, eu sabia que poderia ter total confiança no que ele estava fazendo”